Nos últimos dias, assisti às três temporadas da série The Good Place. Ao concluir o segundo episódio, pensei que seria uma série boba, cheia de ideias do senso comum e estereótipos sobre o certo e o errado. Ao contrário do que eu pensava, entretanto, a série é genial e muito criativa. Decidi escrever esse texto sobre o que me surpreendeu e as reflexões em mim provocadas.
Sem spoilers: não vou revelar os eventos da série, mas, para compreender a discussão, é preciso ao menos assistir ao trailer.
Apresento aqui a minha interpretação e opinião pessoais, sem pretender ser “a interpretação correta” nem refletir as intenções do autor.
Ruptura e continuidade: a constante transformação da série
Logo no início, algumas ideias do senso comum são questionadas, mas outras permanecem firmes, como a noção de que existe um Lugar Bom (Céu) e um Lugar Ruim (Inferno).
Entretanto, com as reviravoltas (plot twists) as ideias vão sendo construídas e desconstruídas e a história se reinventa. O próprio “universo” da série é desmoronado para dar lugar a outro que eventualmente também desmorona. As personagens também se transformam, mas com um fio de continuidade. Suas características se mantém e mudam ao mesmo tempo, uma ideia que certamente desagradaria House e sua famosa frase “As pessoas não mudam”.
Neste sentido, é diferente do filme Matrix, em que o “universo” do filme desmorona duas vezes, mas são desmoronamentos semelhantes.
Personagens fortes e multidimensionais
Kristen Bell, a atriz que interpreta a Eleanor, mostra que tem muita qualidade. É impressionante a quantidade de caras e bocas que Kristen consegue fazer. Apesar de ser, a princípio, o estereótipo de pessoa egoísta, mesquinha e manipuladora, ela é muito simpática e conquista quem está assistindo.
Quero dar ênfase à Janet. Eu nunca vi, em outra série ou filme, um autômato que fosse convincente e com personalidade própria sem ser unidimensional. Janet não é um ser humano fantasiado de androide, como o C3PO, dos filmes Star Wars, ou como Sonny, do Eu, Robô. Pelo contrário, ela evolui com o tempo, revelando várias facetas, embora continua nitidamente sendo um autômato. Aliás, a atriz D’Arcy Carden merece um prêmio pela atuação na série: ela interpreta a Janet Boa, a Janet Má, a Janet Neutra e, em um episódio, a Eleanor, o Chidi, a Jahani e o Jason. Ela rouba a cena.
Chidi Anagonye (William Harper) é um professor de ética entediante, mas que também conquista corações – especialmente quando tira a camisa. Sua existência é o próprio questionamento à ideia de que é possível sempre fazer o que é certo: quando precisa tomar uma decisão, ele paralisa, pois fica pensando em todas as possíveis consequências. Entretanto, ele também se transforma.
Michael e Jahani também são personagens interessantes. A minha única decepção foi Jason, que é unidimensional e sem graça (minha opinião).
O que é o certo e o errado?
A discussão sobre o que é certo e o que é errado permeia toda a série. De fato, são apresentados vários dilemas questionando valores de várias filosofias éticas, sem entretanto esvaziar o sentido e a importância de que as pessoas busquem fazer o que é certo.
Em uma de suas aulas, Chidi explica que há três grandes vertentes na Ética.
A ética deontológica qualifica as ações em si como boas ou más, desejáveis ou indesejáveis. Um exemplo é dizer que devemos agir de acordo com a Regra de Ouro, ou seja, fazendo ao outro o que gostaríamos que fizessem com a gente. Algumas regras podem ser consideradas como princípios, como “matar é errado”, “não devemos nunca mentir”, enquanto outras são estabelecidas por contrato (como as leis ou um acordo mútuo entre duas ou mais pessoas). É a vertente defendida por Immanuel Kant.
A ética da virtude avalia o certo e o errado pelas qualidades que elas promovem nos seres humanos. Por exemplo, afirmar que uma pessoa deve ser justa, confiável e honesta. Assim, o certo e errado não é determinado pelo que alguém faz, mas pelo que alguém é. Essa vertente pode ser encontrada em Sócrates e Aristóteles.
A ética consequencialista dá valor às ações de acordo com suas consequências. Por exemplo, quando se diz que devemos agir pelo bem da humanidade, para criar igualdade social ou acabar com a miséria e o sofrimento humano. Essa vertente foi definida por Jeremy Bentham, mas suas ideias podem ser encontradas na filosofia chinesa.
A história mostra exemplos defendendo, questionando e contradizendo cada uma das três vertentes.
Logo na primeira temporada, Eleanor faz uma ação muito ruim contra uma pessoa (e que, “sem querer”, faz mal a toda a vila) para salvar a pele de outra (consequencialismo). Mais à frente, Eleanor percebe que suas boas ações de nada adiantam porque ela busca o próprio bem (deontologia). Em outro momento, ela diz que busca fazer o bem porque, sempre que quer fazer algo errado, uma voz diz que ela não deve (virtude).
Ir ao Lugar Ruim no lugar de outra pessoa é uma boa ação? Uma pessoa pode tornar-se boa após a morte? Ela deve ser “salva”? É certo enganar pessoas que pretendem fazer mal a outras pessoas? E se alguém faz tanto o bem às outras pessoas que se torna infeliz? E se o “bem” que alguém faz a outrem torna esta uma pessoa ruim, egoísta, mesquinha? É correto quebrar as regras do sistema – até mesmo do sistema que julga as pessoas após a morte? E se esse sistema for errado?
Existem vários questionamentos, implícitos e explícitos, alguns até escondidos nas piadas ou nas personagens.
Apesar de tudo isso, percebi duas ideias constantes na série. A primeira é que as pessoas são capazes de ajudar umas às outras a serem pessoas melhores. É possível mudar para melhor, mas muitas vezes isso só é possível com ajuda ou em um determinado contexto.
A segunda é que o que determina o que é certo ou errado é a relação entre as pessoas. A série remete implicitamente à empatia, ou seja, em sentir satisfação com a realização das outras pessoas.
Um exemplo lindo disso foi quando Eleanor encontra uma carteira e a devolve ao dono. Este fica emocionado com a atitude, pois havia algo muito importante para ele na carteira – e não era o dinheiro. Meus olhos se enchem de lágrimas só de lembrar.
“Os fins justificam os meios”
Deixo aqui uma pequena ressalva à série. Muitas vezes, a ideia de que “os fins justificam os meios” é associada ao consequencialismo, mas de uma forma equivocada. Sem dúvida, o questionamento a essa frase é válido, especialmente quando os fins são particularistas, o que transforma a ética num “vale-tudo”, o seu exato oposto.
Por exemplo, o uso da tortura pode ajudar um policial a desvendar um crime, mas permitir o uso da tortura pela polícia causa muitos danos à sociedade em geral – por exemplo, gera o medo de abusos e de que pessoas inocentes sejam torturadas para confessarem crimes que não cometeram.
Em geral, entende-se que a criação de certas regras ou princípios são importantes para guiar as pessoas no “caminho certo”, ou seja, para evitar que se justifique más ações sendo que, na verdade, os objetivos são individualistas.
É com esse raciocínio, por exemplo, que Leon Trotsky e Rosa Luxemburgo, que são guiadas pelo objetivo de emancipar a humanidade, defendem alguns princípios como a defesa da democracia do proletariado e da luta contra toda forma de opressão e exploração.
Trotsky, em “A moral deles e a nossa”, explica:
“Um meio somente pode ser justificado por seu fim. Mas o fim, por sua vez, precisa ser justificado. […]”
“Devemos entender, então, que para alcançar esse fim tudo é permitido?”, pergunta sarcasticamente o filisteu, demonstrando que não entendeu nada. É permitido, respondemos, aquilo que leva realmente à emancipação da humanidade. […]”
“[…] Permitidos e obrigatórios são aqueles e apenas aqueles meios que unem o proletariado revolucionário, enchem seus corações de um ódio implacável à opressão, ensinam-nos a desprezar a moral oficial e seus arautos democráticos, imbuem-nos da consciência de sua missão histórica [a revolução socialista], aumentam-lhes a coragem e o espírito de autossacrifício na luta. Justamente por isso é que nem todos os meios são permitidos.”
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