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Sobre militarização, milícias e o atentado contra Marielle Franco

Por: Lia Rocha, do Rio de Janeiro, RJ

No dia 14 de dezembro de 2018, data em que o assassinato da vereadora do PSOL Marielle Franco completava nove meses sem nenhum autor ou mandante apontado ou preso, o General Richard Nunes – Secretario de Segurança do Estado do Rio de Janeiro – deu uma entrevista ao Estadão afirmando que o que levou “ao assassinato da vereadora e do motorista [foi] essa percepção de que ela colocaria em risco naquelas áreas os interesses desses grupos criminosos” [1]. Mais uma vez o general apresentava sua versão para o atentado: que Marielle “com certeza” foi assassinada por milicianos, que sua morte não teve relação com a intervenção federal, [2] nem foi crime de ódio e, por fim, que “provavelmente” haveria participação de políticos no crime [3]. Mais uma vez, suas declarações não foram acompanhadas de nenhum dado, nenhuma prova, indício e, mais importante, nenhuma ordem de prisão para envolvidos no caso.

Essa declaração, proferida nove meses depois do atentado e pouco mais de quinze dias para o fim do ano e da intervenção federal no Rio, foi insuficiente em termos de prestação de contas à sociedade sobre um crime que despertou indignação e comoção nacional e internacional. Na verdade, foi leviana, irresponsável e desrespeitosa com aqueles que exigem justiça para Marielle Franco e Anderson Gomes.

Porém, para além da insuficiência e leviandade da declaração, ela joga luz (e produz sombras) sobre as configurações do poder no Rio de Janeiro e as relações entre poder institucional, forças policiais e milícias. As milícias são grupos armados poderosos, que atuam em diversas favelas do Rio de Janeiro [4] e se caracterizam por dominar territórios através de grupos armados, coagir moradores e comerciantes desses territórios para exploração econômica (seja através da cobrança direta ou através da intermediação de serviços como venda de terrenos, venda de bujão de gás, fornecimento de água, serviço de tv a cabo, entre outros), buscar legitimação social através do discurso de “combater o tráfico de drogas” e, por fim, contar com a participação de agentes armados do estado [5]. As duas últimas características (busca por legitimação social e participação de agentes estatais) são os principais elementos que diferenciam as milícias das quadrilhas de tráfico de drogas.

As milícias já contaram com grande aceitação popular, inclusive por parte de políticos importantes [6], mas depois da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) realizada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em 2008, presidida por Marcelo Freixo (então deputado estadual pelo PSOL em seu primeiro mandato), seu prestígio começou a declinar. Todavia, declarações como a do General Richard mostram que, mais importante do que o falado sobre as milícias no Rio, é aquilo que é ocultado: a permanente e enraizada relação das milícias com parlamentares e governantes da cidade e do estado, e seu evidente e histórico caráter de violência política.

O citado General afirmou que “provavelmente” há envolvimento de políticos na morte de Marielle; todavia, o que ele deixou de dizer foi que milícias e “políticos” de um certo campo formam um mesmo emaranhado. São parte de um mesmo grupo com atuação política e armada, que controla territórios para explorar economicamente sua população, e que apresenta (e elege) candidatos como parte do processo de controle e exploração econômica.

O relatório final da CPI indicou que parlamentares de diversos partidos, como, por exemplo, (P)MDB, DEM, PR, PTB, PT do B, PMN e PDT, seriam ligados às milícias. [7] Além de cadeiras no parlamento, políticos que têm grande votação em áreas de milícia ocupam outros espaços institucionais importantes. Entre os casos mais conhecidos temos o ex-deputado estadual e atual conselheiro do Tribunal de Contas do Estado Domingos Brazão (que ainda não foi objeto de investigação policial, mas é sempre citado na imprensa como suspeito de comandar milícias) e o vereador de Belford Roxo conhecido como Fabinho Varandão (PRP), preso no dia 18 de dezembro de 2018 por suspeita de chefiar uma milícia na região [8]. Este último foi candidato a deputado estadual na eleição do ano passado com o apoio de Jair Bolsonaro e Wilson Witzel, configurando indício importante de que a milícia pode ser um elemento que conecta o antigo ao novo grupo de poder do estado.

Existem diversos outros elementos que evidenciam o cruzamento entre política institucional e milícia no Rio de Janeiro, mas falta espaço para citá-los. Contudo, o mais importante é destacar a importância das milícias e das polícias no Rio de Janeiro em nossas caracterizações, e também em nossa política.

Violência policial e milícias no Rio de Janeiro costumam ser tratados (também pela esquerda) como assunto secundário, aparecendo em nossas preocupações neste momento porque adquiriram um caráter “político” – como no caso da execução de Marielle. Assim, denunciamos as milícias e a subordinação que impõem à população negra e moradores de periferias e favelas dizendo não se tratar de assunto secundário, mas (como geralmente ocorre quando escolhemos essa formulação) apenas reconhecemos que se trata de algo que moralmente não deveria ser menor – mas factualmente o é.

A violência das milícias não é política apenas quando instrumentalizada para o assassinato de figuras públicas institucionais. Ela é política quando impede que moradores de bairros por elas dominadas se organizem politicamente (o impedimento a partidos de esquerda de fazer campanha em partes da Zona Oeste é fato conhecido); ela é política quando agride e executa milhares de pessoas com o apoio dos aparatos estatais; ela é política quando disponibiliza tantos trabalhadores às condições mais precárias de trabalho, moradia, transporte e acesso a serviços públicos para maximizar sua exploração; ela é política quando garante a perpetuação desses grupos em posições institucionais, através dos conhecidos “currais eleitorais”.

Não se trata de uma falsa equivalência entre a morte de Marielle e qualquer outro crime. Sua execução é um grave atentado político contra uma das principais lideranças da esquerda da cidade do Rio de Janeiro, além de uma liderança em ascensão cuja trajetória, infelizmente, nunca veremos realizada. No entanto, é um erro de caracterização atribuir caráter político à milícia apenas a partir de sua instrumentalização como potencial braço armado de um grupo político – a milícia não é acessório, ela é o grupo político, e sua denúncia exige dar o devido relevo a sua violência cotidiana.

Especialmente desde o fim das eleições, o receio do crescimento do fascismo (e, no caso, da instrumentalização da milícia por grupos fascistas) nos dificultou notar que é sobre a parcela da classe trabalhadora que mora em favelas e periferias que recairá mais fortemente as consequências do aumento do autoritarismo, das arbitrariedades e dos abusos, inclusive a partir do fortalecimento das milícias. Possivelmente de forma ainda mais intensa do que a já experimentada até então. “Não soltar a mão de ninguém” significa, também, compreender essa diferença e não colocá-la em segundo plano – ao contrário, torna sua denúncia nossa principal tarefa.

1 Milicianos mataram Marielle por causa de terras, diz general

2 Em 18 de fevereiro, cerca de um mês antes do assassinato de Marielle, o presidente Michel Temer anunciou uma intervenção federal na área de segurança do estado do Rio de Janeiro, com a anuência do governador Luiz Fernando Pezão. Para gerenciar a intervenção – e se responsabilizar portanto por policias militar e civil como pelo sistema penitenciário estadual – foi indicado o General Braga Netto. No decreto assinado por Temer e aprovado no Congresso Nacional três dias depois, o cargo de interventor foi caracterizado como de “natureza militar”. Mais sobre o assunto ver: Leite et al. (2018) “Militarização no Rio de Janeiro: da ‘pacificação’ à intervenção”, Mórula Editorial.

3 Milícia com certeza está envolvida na morte de Marielle, diz general e Morte de Marielle Franco teve participação de milicianos, garante general Richard Nunes

4 Segundo levantamento do Ministério Público Estadual entre 2010 e 2017 o numero de localidades com atuação de milícia na cidade passou de 41 para 88.

5 Pesquisas sobre as milícias sintetizam sua atuação nos itens mencionados, sobretudo as realizadas por Ignacio Cano (Uerj) e sua equipe. Ver CANO, Ignacio, e IOTT, Carolina. “Seis por meia dúzia.” In: Segurança, tráfico e milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll (2008) e CANO, Ignacio e DUARTE, Thais. No sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011). Laboratório de Análise da Violência (LAV-UERJ), 2012.

6 Como César Maia e Eduardo Paes.

7 CPI das Milícias do Rio termina com 226 indiciados; lista inclui ex-secretário, deputado estadual e vereadores

8 Vereador de Belford Roxo, RJ, é suspeito de chefiar milícia