Eu venho refletindo, incomodado, com um termo sendo usado por diversos setores da esquerda para se referir a declarações do Bolsonaro desde as eleições e agora, também, em relação à fundamentalista religiosa Damares, ministra da nova pasta “mulher, família e direitos humanos”. A famigerada “cortina de fumaça” se refere a algo que serve como isca, sendo, na prática, um mal menor, cujo objetivo é desviar as atenções de outra coisa que seria, em tese, mais importante.
Muito tem se falado sobre a “tática de guerra” do Bolsonaro, parecida com a do outro desgraçado, presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que consiste em, basicamente, causar uma grande confusão nos meios de comunicação tradicionais, desferir declarações polêmicas e, agora no governo, desferir uma grande onda de ataques com o objetivo de nos deixar atordoados e sem reação.
Quando a gente se atém a essa forma, à tática, exclusivamente, deixamos de lado o conteúdo concreto que é uma grande ofensiva burguesa internacional. Todo bom marxista sabe que separar forma e conteúdo é um erro gravíssimo. Qualquer tática aplicada pelos neofascistas deve ser analisada em consonância com os movimentos da luta de classes internacional.
Capitalismo, crise e opressão
Nos últimos dez anos, a gente vive, mesmo com a quebra na correlação de forças mais recente, uma grande efervescência nas lutas contra as opressões. Em países centrais, como os Estados Unidos, assistimos a movimentos como Black Lives Matters e, agora, à virada no Parlamento Americano, com o Congresso mais feminino e multiétnico da história americana. Às mulheres indianas, às mulheres argentinas, às mulheres brasileiras e à potência do movimento negro. De todos os ataques que Temer tentou passar, conseguimos barrar todos os que diziam respeito aos direitos reprodutivos, à cura gay, entre outros. As mulheres foram a linha de frente da greve geral de 2017 e do #Elenão contra Bolsonaro nas eleições.
Junho de 2013 foi parte de um processo de ascenso das lutas a nível internacional, somado aos indignados da espanha, occupy wall street, primavera árabe, entre outros. Esse ascenso foi derrotado e abriu caminho para a brutal ofensiva burguesa que vivemos agora, evidentemente, de maneira desigual internacionalmente, combinado com um processo de reajuste dos blocos imperialistas pós-crise de 2008. O que importa mais concretamente para o que quero discutir aqui é que eles querem nosso sangue, suor e lágrimas para pagar a conta da bagunça causada pela crise de 2008.
A teoria unitária da italiana Cinzia Aruzza tem muito a dizer sobre todos esses processos: não é correto tratar as relação entre capitalismo e opressões com uma relação meramente oportunista e contingente. Reprodução e produção são momentos da totalidade da reprodução do capitalismo. As relações de gênero se tornam, através de um processo histórico, parte constituinte dessa totalidade. Alguém consegue imaginar um mundo onde o trabalho reprodutivo seja propriamente remunerado e valorizado tal qual o trabalho produtivo (mesmo que para padrões de uma sociedade capitalista)? O capitalismo não pode arcar com o custo da reprodução e, na melhor das hipóteses, o Estado assume parte disso.
É indispensável, também, entender o componente racial da acumulação primitiva e, portanto, da constituição histórica do capitalismo. Sobre o Brasil, Caio Prado Jr., entre outros, oferecem pistas valiosíssimas para entender como o racismo é um elemento estrutural da sociedade brasileira. “Nosso” capitalismo se construiu sobre o suor e sangue do povo negro e deles depende para subsistir, eternamente, condenado ao papel de feitoria do imperialismo.
Conclusões preliminares
Se, por um lado, isso tudo quer dizer não basta lutar contra a opressão, é preciso lutar contra o capitalismo, isso também quer dizer, com o reforço das tendências da realidade, que a luta anticapitalista é indissociável do combate a todo tipo de opressão, não apenas por questões morais, mas também por questões diretamente estratégicas (vale dizer, para os trotskistas moral revolucionária e estratégia são indissociáveis de qualquer forma) no que toca: as relações que constituem o capitalismo, a composição da classe trabalhadora e o dinamismo dos setores mais oprimidos da classe.
Se as opressões são elemento estruturante das relações capitalistas, a burguesia internacional não retomou os patamares de lucro pré-2008 e os setores oprimidos são vanguarda internacional da luta de classes, não é mais difícil somar 2+2 do que entender o que se passa (por mais que, ainda assim, seja um raciocínio bastante simplista).
Os avanços dos direitos dos setores oprimidos colocam em risco as relações de classe, em especial nos países da periferia do capitalismo mundial. No marco de uma crise internacional e da necessidade de estabelecer patamares mais profundos de exploração, pautas de igualdade de gênero e racial são ameaças. Além disso, nossa classe é feminina, negra e LGBT, os ataques econômicos aos direitos da classe trabalhadora atiçam a luta dos oprimidos. Para a burguesia, é preciso derrotar e varrer esses setores da arena da luta de classes.
Ainda que Bolsonaro não fosse a opção inicial do capital, içado pelo fundamentalismo evangélico, esses fatores se aprofundam pelo pânico moral/sexual de uma pequena burguesia acuada pela crise e tomada por uma consciência fascistizante.
“Pablo Vittar e o PT foram longe demais”
Desde 2013, as chamadas “pautas de costumes” tomam a cena: a cura gay de Feliciano (antessala de junho de 2013, diga-se de passagem), a retirada das discussões de gênero do PNE, as “emendas da opressão” em diversos PMEs Brasil a fora, passando por uma série de ataques aos direitos reprodutivos das mulheres, até chegar ao Projeto Escola Sem Partido.
O Projeto Escola Sem Partido se baseia em um pânico moral pequeno-burguês, uma cruzada contra alguns mínimos avanços nos direitos de cidadania das pessoas trans (aqui podemos falar literalmente em cidadania, passamos a poder ter documentos em 2018) e pautas feministas nas escolas – curiosamente, o tal “marxismo cultural” talvez seja a verdadeira cortina de fumaça nesse caso.
Inconstitucional, o projeto não foi aprovado, mas desencadeou o mais próximo, até o momento, de um movimento fascista organizado a nível nacional: pais e estudantes organizados para fiscalizar e perseguir professores que se posicionam sobre temas absolutamente democráticos – liberdade de expressão que está de acordo com a Constituição Federal de 1988 – apoiados por setores organizados da extrema-direita bolsonarista.
O PT precisa ser devidamente imputado por todos esses processos. Desde a eleição de Lula, os fundamentalistas são parte da base do governo, assim como o PP (antigo partido de Bolsonaro). A carta ao povo de Deus de Dilma e o desmonte do kit escola anti-homofobia. A listagem é infinita e a aplicação do ajuste fiscal no primeiro mês de 2015 é parte dela. A conciliação de classes petista chegou ao limite com o fim do ciclo de crescimento econômico e a burguesia cobrou a conta. Seus erros políticos abriram espaço não para o neoliberalismo de Aécio, mas para o neofascismo de Bolsonaro.
Damares e a cortina de fumaça
Bolsonaro surfou no pânico moral/sexual e o instrumentalizou em sua campanha. Atropelou o favorito da burguesia Geraldo Alckmin, que amargou a pior votação da história do PSDB. Nada disso é meramente efeito de uma cortina de fumaça. Com a nova república em pleno derretimento e dando lugar a uma reestruturação reacionária do regime político, estamos em meio a uma verdadeira guerra ideológica na qual personagens como Olavo de Carvalho escolhem ministros do Governo Federal.
Essa guerra está em curso e faz vítimas: mulheres, negros, LGBTs, indígenas, quilombolas e professores. As reformas neoliberais vêm em conjunto com um pacote de retrocessos no âmbito dos “costumes”, que buscam desmoralizar, derrotar e destruir fisicamente a vanguarda antibolsonarista. Tudo isso faz parte de um todo funcional aos interesses do imperialismo, parte de um processo histórico (e não necessariamente conspiratório).
Apesar de histórias como a do “Jesus na goiabeira” serem bastante caricatas, não é possível tratar a fala de Damares “menino veste azul e menina veste rosa” como uma cortina de fumaça. Trata-se de uma posição política do governo pelo combate a uma suposta “ideologia de gênero”, cuja denúncia deve ser entendida como eixo central da hierarquia de palavras de ordem a serem levantadas pelos revolucionários e não uma tentativa de desviar o foco da reforma da previdência.
Além da necessária luta contra os absurdos óbvios, os revolucionários devem buscar se conectar com os setores mais dinâmicos da luta contra Bolsonaro, só assim podemos fortalecer a mobilização contra o governo “fascistizante” e fazer avançar o processo de superação política do petismo, que não se coloca à altura dos desafios do movimento de massas.
Existe um contexto no qual, de fato, os absurdos de Damares se tornam cortina de fumaça: quando não disputamos a pauta democrática dos oprimidos com um programa anticapitalista. Toda essa análise construída até aqui aponta como os elementos da realidade se imbricam para formar uma ofensiva global do governo Bolsonaro e apenas um programa anticapitalista é capaz de disputar esse processo total. Apenas esse programa é capaz de combinar a luta por direitos sociais e econômicos com a guerra cultural no terreno dos “costumes” e forjar um campo político que dê a batalha até as últimas consequências. Os oprimidos são quem mais sofrem com o retrocesso de direitos como a reforma da previdência. Exemplos como o feminismo dos 99% são mais urgentes e atuais do que nunca, as mulheres já vêm apontando o caminho.
Sem sombra de dúvidas, levantar esse programa não é tarefa apenas dos oprimidos, mas do conjunto da resistência ao longo do governo, evitando abrir qualquer flanco para a ofensiva que vem em todas as frentes. É preciso combinar as pautas e separar os absurdos sem sentido, mas sem jamais incorrer em formalismos na análise ou economicismos na política. Combinado a isso, a luta em defesa das liberdades democráticas também segue na ordem do dia, mais do que nunca.
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