Azul não é cor de menino, rosa não é cor de menina; cores não têm gênero

Por: Lucas Brito, de Brasília, DF

Ministra em discurso de posse

A Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que também é pastora, protagonizou mais um lamentável episódio envolvendo preconceitos e questionamentos à diversidade humana. Em um vídeo que viralizou na internet na manhã desta quinta-feira (03), Damares Alves diz que “menino veste azul e menina veste rosa”, isso em tom jocoso e ao lado de uma bandeira do Estado de Israel. Qual o sentido disso?

Os movimentos LGBTI e feminista querem impor uma “ideologia de gênero”?

Primeiro, é necessário afirmar que não é uma pauta do movimento feminista ou LGBTI acabar com a possibilidade de as pessoas se identificarem enquanto homens e mulheres. A dita “ideologia de Gênero” é um termo inventado para desacreditar a compreensão crítica sobre a construção social do gênero, tanto homem, quanto mulher.

O advogado argentino que se intitula enquanto pró-vida (ou seja, contra o direito das mulheres à interrupção do fluxo gestacional), Jorge Scala, escreveu um livro que tem sido amplamente repercutido em palestras, reuniões e artigos no Brasil e em outros países. O nome do livro é “ideología de género: o el género como herramienta de poder”. Nele, o advogado apresenta uma visão daquilo que seria a tal “Ideologia de gênero”. O objetivo do autor seria de alertar a sociedade sobre o corpo teórico encoberto que está por trás de tal “ideologia”. Para isso, ele defende algumas ideias como fundamentais.

Nascemos homens ou mulheres?

As afirmações do advogado começam por dizer que a gênese da “Ideologia de Gênero” estaria em uma concepção de que os gêneros são socialmente construídos. E a combate reafirmando a concepção biologizante traduzida popularmente em “Homem nasce homem e mulher nasce mulher”, negando os imperativos sociais na construção do gênero. E esse faz a crítica, de forma desinformada e desonesta, como se a construção social dos gêneros criasse as condições para que as pessoas, não importando seu sexo biológico, pudessem escolher o gênero ao sabor do desejo diário; “hoje quero ser homem, amanhã quero ser mulher”. (Scala, 2010)

Sim, os gêneros são socialmente construídos. A própria fala da Ministra revela o processo social de construção e também imposição do gênero. Determinar a cor das roupas dos meninos, a cor das roupas das meninas, bem como o tipo de brincadeiras e comportamentos adequados a ambos os gêneros são parte desse processo. É sobre isso que a teoria crítica sobre o gênero descobriu. Nenhuma criança do sexo biológico macho nasce com vontade própria de usar azul, brincar de carrinho; enquanto crianças do sexo biológico fêmea também não nascem com sua vontade determinada por usar rosa e brincar de bonecas ou de cozinheira, passadeira ou lavadeira.

Isso não impede, de forma alguma, que meninas brinquem com bonecas e meninos com carrinhos. Mas basta observar o comportamento da família, dos amigos, ou até dos estranhos na rua para observar como a construção do gênero é uma tarefa desempenhada por todos em nossa sociedade.

Mulher hoje, amanhã quem sabe?

Uma deturpação recorrente sobre a teoria crítica do gênero é a que afirma que a ideologia de gênero defende que as pessoas troquem de gênero como quem troca de roupa.

Não é por que os gêneros são socialmente construídos que eles se tornam epidérmicos, supérfluos. Pelo contrário, a construção social dos gêneros é algo das mais sólidas, até por ser de responsabilidade de todos, em que todos se engajam e que, quando algo sai do script, é encarado com o misto de medo e ódio.

É possível uma igualdade entre homem e mulher?

Em segundo, Scala afirma que a dita “Ideologia de Gênero”, ao igualar ambos os sexos macho e fêmea como dotados da mesma capacidade de desenvolver ambos os gêneros homem e mulher, seria um atentado ao matrimônio. Na visão do autor, o matrimônio não pode se dar com base na igualdade entre os sexos, visto que o objetivo do matrimônio seria de complementar no casal as diferenças e desigualdades entre os sexos. (Scala, 2010).

Aqui a tese do advogado, que também está presente no discurso de Damares e, agora, na política do governo, escancara sua real preocupação: a igualdade entre homens e mulheres. Eles têm medo da igualdade. Não defendemos que homens sejam iguais às mulheres, ou negros iguais aos brancos e assim por diante. Não! Nós defendemos a diversidade.

Contudo, em nossa sociedade, as diferenças são transformadas em desigualdades. E no que toca o próprio gênero, diferenças são criadas para legitimar as desigualdades. Quando uma criança ganha de presente uma vassoura como brinquedo, o interesse não é de fazer jus ao seu destino natural enquanto mulher, mas para materializar a desigualdade dos papeis sociais entre homens e mulheres em nossa sociedade, onde recai sobre as mulheres o peso do trabalho doméstico.

Nossa bandeira é para que os diferentes possam ser tratados como diferentes para que essas não se tornem desigualdades.

A família está ameaçada?

Em terceiro lugar, o autor avança ao dizer que fundada, aí estaria o grande atentado à família, pois “se todo es família, nada es família”, ou seja, que a diversificação dos arranjos de família seria nada mais que a sua própria destruição, pois esses novos estariam sendo assentados sobre a destruição daquilo que ele chama de “núcleo mais íntimo” do ser humano, as diferenças sexuais, o que daria sentido ao matrimônio. Como conclusão, para o autor, a “ideologia de gênero” é um plano ideológico para mudar as concepções morais de toda a sociedade. (Scala, 2010).

A família viveu um intenso processo de transformação ao longo do século XX até aqui. Impulsionado, sobretudo, sobre os impactos negativos no patriarcado e nas maiores liberdades sexuais. Isso deve ser comemorado.

Não queremos acabar com as famílias, mas reconhecer que elas são lugares de afetos, cuidados e amores. A família tradicional serve à lógica da dominação, seja internamente entre seus membros, seja externamente como células de reprodução do comportamento de submissão na sociedade, o que nos faz aceitar exploração do sistema e suas opressões.

O que tem destruído esses laços de afeto nas famílias é o ódio defendido por Damares e os demais do bloco neoconservador. Basta vermos o que que foi o último Natal, como uma série de exemplos de laços rompidos ou estremecidos, o que proporcional sofrimento psíquico em muita gente.

Ou, do ponto de vista mais geral, as constantes formas de violências no âmbito familiar, onde ocorrem feminicídios e lgbtfobias constantes.

Esses discursos, do Scala ou da Damares, são parte da estratégia de (re)naturalização do gênero, todavia, não pode deixar de ser compreendia como uma reafirmação escancarada do próprio processo de construção do gênero em nossa sociedade. Ou o gênero é construído socialmente, ou é determinado biológica e naturalmente. Vejamos, na sociedade, essa já é a visão dominante. Sexo e gênero são vistos como a mesma coisa, apesar de termos conseguido avançar muito nos últimos tempos.

Isso não é de hoje

As cruzadas morais/sexuais são recorrentes ao longo da história moderna da sociedade. O mundo ocidental moderno já conheceu outros exemplos históricos de pânico moral/sexual. Por exemplo, a Inglaterra e os Estados Unidos no final do século XIX vivenciaram um intenso processo de disputa política da sexualidade, onde a dominação da vida erótica foi abertamente renegociada. Para isso, foram utilizadas campanhas educacionais onde se defendia abertamente contra a masturbação, especialmente dos jovens, bem como estimulavam a castidade antes do casamento; a literatura pornográfica foi caçada, pinturas e obras de arte contendo nu foram atacadas (RUBIN, 1984).

Rubin destaca que “As consequências desses grandes paroxismos do século XIX ainda estão presentes entre nós. Elas deixaram uma marca profunda nas atitudes em relação ao sexo, nos procedimentos médicos, na educação das crianças, nas preocupações dos pais, na ação da polícia, na legislação sobre o sexo” (1984).

Já na década de 50, nos EUA, a cruzada moral ocorrida se concentrou em um inimigo mais bem corporificado, o homossexual. Para além de pregar contra a masturbação e a intensificação da perseguição de prostitutas, o Estado se encarregou de combater e chamar toda a sociedade a se proteger daquilo que denominaram por “ameaça homossexual” (RUBIN, 1984).

Também a Rubin nos conta que “pouco antes e pouco depois da Segunda Guerra Mundial, o ‘criminoso sexual’ se tornou objeto do temor e da vigilância pública. Muitos estados e cidades, inclusive Massachussets, New Hampshire, Nova Jersey, Estado e cidade de Nova York e Michigan iniciaram programas para colher informações sobre essa ameaça à segurança pública. O termo ‘criminoso sexual’ às vezes era aplicado aos estupradores, às vezes aos ‘molestadores de crianças’ e, finalmente, passou a designar, em linguagem cifrada, os homossexuais” (1984).​

O episódio dos ataques lançados contra a exposição Queermuseum está inscrito nesse rol de exemplos históricos comuns, onde a vida erótica, a sexualidade e, consequentemente, o papel social dos gêneros são aberta e politicamente debatidos na sociedade, tal como no final do século passado e os anos 50 nos EUA, para citar esses dois exemplos.

O MBL, um dos incentivadores neodireitistas brasileiro, foi o principal movimento organizado por trás da campanha de ódio à referida exposição. Atacaram-na sob o pretexto de defesa da moral, mas, assim como no exemplo dos EUA, o fizeram ao nível de alarde contra uma “ameaça” ao conjunto da sociedade, e para isso a defesa das crianças foi o argumento central.

O corpo ideológico por trás dessa ação é o mesmo que condena qualquer desvelamento da sexualidade na infância e que associa homossexualidade com pedofilia. O caso do “Kit Gay”, já comentado acima, é perfeito para entender o conjunto de ideias neoconservadoras compondo a atmosfera da cruzada moral contemporânea.

Outro exemplo muito importante sobre o desenvolvimento do pânico sexual/moral hoje, no Brasil, é o do projeto de “Escola Sem Partido”. Tal projeto, hoje em debate no Congresso Nacional, já foi aprovado na Assembleia Legislativa de Maceió e segue sendo debatida em muitas outras casas legislativas ao redor do país.

Em suma, o projeto prevê a censura dos professores nas escolas. Sob o argumento de que as escolas passaram a ser ambientes de “doutrinação marxista” de jovens por parte dos professores, os defensores do projeto realizam uma grande cruzada, buscando legitimação legal na aprovação de tal lei.

Contudo, vale destacar um elemento. Em uma das Sessões Plenárias da Comissão Parlamentar, onde tramita o projeto atualmente na Câmara dos Deputados, o Deputado e pastor deixou evidente o real objetivo do projeto. Ao utilizar seu poder de fala no espaço, o parlamentar disse que, independente de o projeto ser aprovado ou não, e mesmo que seja vetado pelo STF, eles já teriam ganhado, pois o medo já teria sido disseminado na sociedade e nas escolas e que agora os professores estariam com medo de seguir a doutrinação marxista e de “ideologia de gênero” nas escolas.

Esse é o mais nítido objetivo verbalizado: instalar o pânico moral por meio dos temas da sexualidade, gênero e visão crítica da sociedade, chegando ao questionamento da ciência, tendo em vista que defende o ensino das teorias criacionistas nas escolas, tendo o mesmo valor formal que as descobertas científicas, dentre elas as mais importantes na história da humanidade até aqui.

Resistir para existir! Meninos vestem rosa, meninas vestem azul

2019 deverá entrar para a história como o ano da resistência.

Tanto para o exercício da dominação usando do caos, o medo e o endeusamento dos líderes, quanto para a desresponsabilização do Estado nas tarefas de cuidado (com idosos, crianças, doentes), as pautas neoconservadoras são fundamentais. Por isso, estamos na mira do novo governo. Diante disso, devemos resistir.

A infeliz fala de Damares Alves deve ser rechaçada. O Mídia Ninja já está convocando um ato simbólico e nacional de repúdio ao preconceito e à negação da diversidade promovidos pelo governo.

Dia 10 de janeiro meninos vestirão rosa e meninas azul. Bora?