Há governos que se perdem na tirania; há outros que se anunciam tiranos. O governo de Jair Bolsonaro se situa na segunda categoria. O modo como, desde o início, aponta para as universidades é um indicador dessa tendência. Eis o tema deste artigo. Escrito no calor da hora, ele expressa a crescente sensação de temor vigente nas instituições de ensino superior, caracterizada pela constante preocupação com as pretensões do bolsonarismo, notadamente no instante em que o país se encontra na soleira do novo governo.
Bolsonaro e as universidades
Parte-se, aqui, do que tem sido verbalizado, sobretudo por Jair Bolsonaro. Há todo um percurso de declarações (feitas no facebook, em órgãos tradicionais da imprensa etc.) e, por meio desse percurso, descobre-se um pouco do que ele pretende com relação às universidades. Um de seus mantras é o da cobrança de mensalidade nas universidades federais, dentro do espírito das orientações do Banco Mundial e recuando ao modelo de educação paga da ditadura Pinochet.
Para que não se receba as piores notícias, é conveniente ficar alerta, pois os primeiros sinais são inquietantes. O líder do PSL – e nisso é acompanhado por seus assessores – argumenta que o custo elevado e a ocupação de grande parte das vagas dos cursos universitários por estudantes com origem em camadas sociais afortunadas exigem essa decisão, no que faz pouco caso do texto da Constituição, que, no caso em tela, afirma o ensino público e, neste terreno, veda a cobrança de mensalidade; ao mesmo tempo, ele desconsidera as mudanças que ocorreram no âmbito das instituições acadêmicas nos últimos anos, com a entrada de estratos das camadas populares; e, principalmente, faz pouco caso da necessidade de mais investimentos públicos nas universidades se, de fato, há pretensão de ser ter um país que, efetivamente, seja capaz de avançar – social, cultural e cientificamente.
Jair Bolsonaro enfatiza que “as universidades têm de produzir”. Ele precisa explicar mais satisfatoriamente o que significa essa expressão vaga e dúbia. Significa que elas devem se voltar às demandas da produção capitalista? Aliás, as instituições públicas de ensino superior seguem produzindo. A tríade ensino-pesquisa-extensão, a despeito das dificuldades impostas pelos governantes, perdura como o aspecto definidor das universidades públicas do país. O que parece incomodar é que a produção universitária não necessariamente comunga com as exigências empresariais, ainda que uma parte dela já o faça.
Talvez por isso, a intenção do governo que assume de, efetivamente, realizar ingerências extremas nos processos de escolha da administração superior das universidades federais brasileiras. A existência de administrações dóceis, possivelmente, pode ser um caminho para que os planos governamentais consigam prosperar em um ambiente que os Bolsonaros consideram como terminantemente hostil à retórica e as práticas do seu grupo.
Nos últimos tempos, as instituições universitárias públicas se viram ameaçadas. Mas dessa vez o problema é mais sério. Falando ininterruptamente contra a autonomia das universidades públicas, Jair Bolsonaro ameaça dela retirar exatamente essa prerrogativa.
Além disso, o presidente recém-eleito esbraveja contra o movimento estudantil e suas entidades, e nessa forma furiosa de se relacionar com o mundo universitário, ele revela que pretende “aparar” as universidades. O que significa aí o verbo aparar? Segurar? Cortar? Nos dois casos, há uma ameaça subjacente, até porque, para o capitão, a instância universitária não é lugar de protesto, atitude felizmente comum à psique estudantil. Esse prenúncio não se restringe ao direito de organização, expressão e mobilização dos estudantes, que, não raro, são tratados pelos Bolsonaros como uma gente ociosa, vazia e inoperante. Essa ameaça se estende aos direitos de manifestação e expressão dos docentes, regra geral, tratados como perigosos doutrinadores a serviço do “marxismo cultural”.
No caso dos docentes, há outras ameaças, dentre elas o da cisão dos ganhos da titulação com relação aos vencimentos, o que implica na quebra de uma remuneração, hoje, inteira e indissociável. De fato, a equipe econômica bolsonarista quer restringir os ganhos ou vantagens com a titulação a uma simples gratificação. Observa-se, então, que apetece ao novo condomínio governamental erguer uma obra de destruição da vida universitária, que, em si, compreende pesquisa, ensino, extensão, ativo impulso intelectual e independência de pensamento, direito de organização de docentes, discentes e servidores, bem como espírito e prerrogativas de autonomia.
Nesse cenário, uma atitude de inércia da universidade pode lhe custar à própria vida como instituição autônoma. Eis a novela trágica! Enquanto rolam os seus capítulos, há de se indagar: para o campo acadêmico e científico não há escapatória? Lances imprevisíveis estão por vir, mas alguns deles são prognosticáveis e podem ser pensados e confrontados. Uma possibilidade bastante plausível para essa reflexão-ação nasce de como o bolsonarismo tem abordado esse tema. Decorre disso, o empenho em decifrá-lo.
No correr da luta, as universidades precisam seguir produzindo doses generosas de sabedoria, mas elas carecem preservar seu caráter autônomo, condição da pesquisa e da produção dessa resultante. Elas precisam, igualmente, de autonomia financeira e administrativa, critério altamente recomendável para que a primeira condição se realize.
Universidades e luta de classes
Uma das artes mais difíceis é a de se preservar aquilo que se conquistou. As instituições universitárias estão diante desse desafio.
Lidar de modo criativo com a complexidade do atual momento da luta de classes implica admitir que a luta de classes não é uma primazia do século XIX ou XX, mas, também, um aspecto decisivo do século XXI, que restaura os elos com o passado, ainda que sem, necessariamente, repeti-lo, afinal a história não é uma construção estática e está afeita a mutações.
Com acento diferente, a luta de classes resiste como um campo aberto em que as grandes questões, em última análise, se decidem. Essa revelação não traz nenhum segredo. Ela se mostra na análise cuidadosa de um parto que há de incidir sobre as classes e as instituições ao longo do próximo período. O ataque à aposentadoria, aos direitos sociais como um todo e, especificamente, a ofensiva anunciada contra a universidade pública, não são pontos separados, mas itens que se ajustam a mesma agenda conservadora. Frente à torrente bolsonarista em curso, é preciso constituir um sistema de freios e contrapesos, questão que passa por criar uma coalizão para defender a esfera universitária que se estenda além de seus muros. As entidades de professores, servidores e estudantes não podem deixar de lado a tarefa de unir as organizações operárias, populares, estudantis e de intelectuais profissionais ante o imperativo de conservar a integridade dos direitos sociais, culturais e científicos. Trata-se, certamente, de uma unidade de extraordinário alcance, mas a história não nos legou outro método mais interessante.
Se esse sistema de freios e contrapesos for corretamente acionado, as universidades resistirão. Neste caso, caberá ao bolsonarismo, permeado de ressentimentos, o papel de poeira inglória; do contrário, o espelho mágico não as salvará, sugando-as para um mundo justo e fabuloso, e as universidades, enfim, se converterão em paisagens tristes e delgadas.
Foto: EBC
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