O preço social da intervenção militar

Aderson Bussinger

Advogado, morador de Niterói (RJ), anistiado político, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ e diretor da Afat (Associação Fluminense dos Advogados Trabalhistas).

O General Walter Braga Souza Netto, que foi também comandante militar no Haiti, reuniu no último 27 de dezembro deste ano graduadas autoridades no Palácio Duque de Caxias, na região ferroviária da Central do Brasil, para anunciar oficialmente o encerramento da Intervenção militar no Estado do Rio de Janeiro, após 10 meses de decretada pelo presidente denunciado por corrupção Michel Temer.

A cerimônia tentou dar “ares e pompa de sucesso” a uma operação militar caríssima, na casa de R$ 1,2 bilhão, e que apenas trouxe para o combalido Rio de Janeiro o “mais do mesmo”, qual seja: violência policial-militar, em vez de um programa social consistente que enfrente realmente as mazelas de um sistema social-econômico injusto, o que -bem sabemos perpetua-se no Brasil há séculos.

No miserável Haiti, por exemplo, foi realizada uma semelhante intervenção militar durante mais de 10 anos pelo Exército brasileiro, sob a bandeira (e interesses) da Minustah. Mas, afinal, ao longo destes 319 de regime militar intervencionista no Rio, uma amostra estadual do que pode ser um regime militar completo, os donos de empresas transportadoras ficaram aqui mais aliviados, tendo em vista a redução anual de 20% no número de roubos de carga. Assim como os empresários do milionário setor de turismo de luxo, os “ capitães” do comércio atacadista e varejista carioca (sobretudo de alimentos) devem ter dormido mais aliviados durante este período intervencionista. Estes últimos por não terem seus imensos depósitos de gêneros de primeira necessidade sido alvos de saques por famintos desempregados, o que pode também ser creditado ao “ sucesso da intervenção”, assim como no Haiti também o Exército conteve, à bala, muitos saques e revoltas de famintos, preservando assim a propriedade.

“Mas não foi somente isto”, refutarão imediatamente os ‘cidadãos de bem’ defensores da intervenção no Rio (e no Haiti), pois “o balanço de conclusão dos trabalhos militares intervencionistas”, argumentam orgulhosos, também aponta corretamente ter reduzidos em torno de 6, 7 e 8 por cento a quantidade de roubos de rua, a pedestres e os roubos de carros. Os homicídios (notificados) caíram também para em torno de 6 por cento. Verdade também.

Sou, como sabem, um critico deste tipo de “solução militar violenta” que se opera aqui no Rio. Assim como estive no Haiti, representando a OAB Federal, em missão de direitos humanos em 2007 e lá definitivamente me convenci do quanto estas intervenções constituem em ações político-militares seletivas e violentas, que servem mais a interesses políticos-financeiros do que propriamente à segurança da maioria da pulação pobre.

Creio que realmente cabe sempre questionar qual o custo social de toda esta tradicional política militarista no tema da segurança pública, pois também foi informado oficialmente – o que já sabíamos há tempo – que as lesões corporais seguidas de morte e as mortes – assassinatos de um jeito ou de outro – cometidas pela intervenção militar no Rio de Janeiro, aumentaram 33 por cento no último ano, assim como mais de 90 policiais foram mortos, o que conduz inevitavelmente à conclusão de que conseguiu-se, em verdade, obter 6 por cento de diminuição na taxa de eliminação de vidas de cidadãos praticada por civis em troca de 5 vezes mais este percentual (30,3) em eliminações de vidas de cidadãos ( em maioria absoluta de negros) praticadas por autoria de militares operadores da intervenção.

Valeu a pena? Quem, de fato, está pagando a conta social desta intervenção? Seriam as mortes causadas por policiais desprezíveis ante a diminuição de homicídios? E se, ao contrário, estes recursos da intervenção (de mais de R$ 1 bilhão) fossem aplicados na construção de modestas creches no Alemão, Maré ou Rocinha, para que os pais e mães de milhares de crianças pudessem ter mais paz e segurança quando saíssem para o trabalho, ou então para procurarem emprego?

O que socialmente resultou do investimento de outros R$ 500 milhões gastos outrora na ocupação militar anterior da favela da Maré, lugar onde morou a nossa Marielle? O quanto se poderia minimamente fazer (com muito menos recursos) em termos de saúde e educação nestas áreas? Como se satisfazer com segurança para poucos, enquanto nos bairros pobres impera o terror de Estado ou então o terror do tráfico, sob os olhos seletivos das forças policiais? Como ter segurança apenas alguns, se não há segurança e paz para todos? Quem responderá, afinal, por estes 30,3 por cento de aumento de mortes causadas por agentes da lei? Ninguém, ou quase ninguém, pois também impôs-se à competência da justiça militar nestes casos.

Bem, por fim, isto a elite empresarial do Rio de Janeiro e a classe média não querem sequer refletir e se preocupar, porque a primeira está mais preocupada com a segurança de seus notáveis e rentáveis negócios comerciais e a segunda – a dita classe média assustada e “encantada” recentemente com o militarismo – satisfaz-se com a maior sensação de segurança nos bairros mais iluminados da Zona Sul carioca, enquanto acredita que políticas autoritárias, intervencionistas e militaristas possam resolver aquilo que a desigualdade e a injustiça social secularmente nos impõe.

*Aderson Bussinger Carvalho é Advogado e conselheiro da OAB-RJ.

Foto: Exército Brasileiro homenageou os soldados mortos durante a Intervenção Federal no Rio de Janeiro. Familiares receberam em nome dos combatentes a Medalha Sangue do Brasil, em uma cerimônia na Vila Militar, em Deodoro.Foto Tomaz Silva/Agência Brasil