O mal como normal: golpe, lei e direitos

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Marx, ao analisar a ofensiva de Luís Bonaparte contra a Segunda República francesa, assinalou que, naquela exasperada Paris de 1851, a indiscrição dos golpistas fizera com que “a sombra do golpe de Estado” se tornasse “tão familiar” aos parisienses “sob a forma de fantasma” a ponto de os mesmos já não terem se assustado quando o espectro lhes apareceu finalmente “em carne e osso”.1 De tanto verem a conspiração ser tramada à luz do dia, de tanto ouvirem falar no iminente golpe, e de tanto vê-lo desejado pelos escribas do capital, os franceses acabaram tomando-o com um acontecimento tanto natural quanto inexorável. De tanto a exceção ser invocada para supostamente salvar as regras, de tanto os supostos defensores das regras agirem excepcionalmente, e de tanto a sedição ser descrita jornalisticamente como solução, o estado excepcional das coisas pôde se transformar, ao fim e ao cabo, como o estado ordinário delas. E assim foi, majoritariamente, aceito.

Tendo em tela os acontecimentos decorridos no Brasil de 2016 para cá, talvez não seja equivocado afirmar que a desfaçatez das manobras golpistas, diariamente descritas como inquestionáveis pela grande imprensa, tem produzido nas amplas massas populares uma passivização assustadora, na medida em que o mal, de tanto exibir sua maldade, e de tanto ser apresentado como a mais pura encarnação do bem, pode ser gradativamente aceito acriticamente pelos sujeitos desprovidos da crítica, para os quais o jugo da nova ordem ultraneoliberal é descrita como um jugo fácil de carregar, e o fardo da vida sem direitos como um fardo leve. Tudo vai mal, mas tudo aparece como se fosse normal. Tudo.

Quanto aos setores mais conscientes da população, o que parece ter lugar é uma certa resignação diante de um caminho construído por ímpias forças que, de tão fortes momentaneamente, podem, cinicamente, apresentá-lo como se fosse o inquestionável caminho dos justos. Qualquer disfarce serve, qualquer mínimo rebuço parece ser suficiente para que as trevas sejam vistas como raios de luz. Tudo já parece decidido previamente, e qualquer nota dissonante da harmonia golpista que, porventura, possa ocorrer logo há de ser veementemente criticada pelos jornalistas dos mass media, e, o mais celeremente possível, silenciada pelos golpistas forenses de plantão. Às vezes, literalmente de plantão.

Até mesmo um prosaica norma jurídica liberal, como a presunção da inocência, outrora inquestionável pela quase totalidade dos doutos juízes do capital, agora parece ser impossível de ser assegurada em tempos em que a vampiresca burguesia brasileira, temerosa de qualquer fato que possa vir a minimamente constranger sua sanha por sangue, suor e direitos, manda às favas as suas próprias normas jurídicas liberais e faz troça dos constitucionalistas que reivindicam, nada mais nada menos, que a sacralidade da sua própria constituição, isto é, a sacralidade da constituição burguesa. Aos amigos, tudo; aos inimigos, nem a lei. Este parece ser o lema da classe dominante brasileira e seus prepostos nas editorias, tribunais, e na caserna.

A última das artimanhas de um dos bonapartes de toga que, instigado pela histérica imprensa, e devidamente orientado pelos bonapartes fardados – os quais se reuniram para discutir se uma decisão judicial deveria ou não ser cumprida –, impediu a libertação de Lula não é senão a prova de que, nesses tempos de golpismo impudente e deslavado, a constituição e o direito só possuem validade quando forem convenientes para aqueles cujo projeto é a constituição de um país onde a maior parte da população esteja, finalmente, desprovida de qualquer direito. Entre a concepção e a concretização deste projeto, entre o sonho e a realização desta bárbara distopia burguesa, existe, entretanto, a história, existe a luta, a vida. Existe a resistência. Resistir é preciso. Esta é a nossa única lei. Este é o nosso único lema. O resto é resto.

1.MARX, K. O 18 brumário de Luís Bonaparte. MARX, K. O 18 brumário de Luís Bonaparte [e Cartas a Kugelman]. Tradução de Leandro Konder e Renato Guimarães. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, p. 105.

Foto: Jose Cruz, EBC