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BRASIL

A universidade pública ameaçada: Empreendedorismo, controle e espoliação no programa educacional de Jair Bolsonaro

Por: Rafael Vieira*, de Niterói, RJ
Reprodução

“É importante marcar que a defesa da permanência das universidades não é um argumento retórico. A Emenda Constitucional nº95 não assegura a existência das universidades federais. […] Em um par de anos não haverá recursos discricionários e, com isso, o processo de desconstituição das universidades públicas será ainda mais acelerado”.
(Roberto Leher, Universidade e Heteronomia Cultural, p.195)

O programa de Jair Bolsonaro, disponível no site do TSE, no que se refere às Universidades Públicas, de início pode impressionar por sua superficialidade, pelo pouco conteúdo e por sua estética, fundada em uma apresentação aparentemente simples de Power Point. São nove slides ao todo sobre educação, alguns deles dedicados à replicação de gráficos e tabelas que servem de base para afirmação posterior de determinadas máximas. De fato, é notório o desconhecimento do funcionamento mais aprofundado das dimensões política, constitucional, institucional e administrativa da educação no país. O programa foca-se sobretudo em enunciados gerais, sem entrar em especificações, ramificações do funcionamento dos órgãos públicos ou sobre como esses enunciados gerais seriam implementados.

Entretanto, apenas uma análise superficial, presa à mistificação jurídica e institucionalista pode se chocar com esse fato. Por um lado, ela é estratégica para garantir flexibilidade de ação na implementação daqueles enunciados gerais, que aparecem como conceitos abertos propícios à atuação concreta de quem tem o poder de decisão. Por outro, e isso é o principal, os próprios enunciados gerais já são preocupantes o suficiente, se levados em conta os impactos possíveis sobre a educação e a universidade pública no país, a atual conjuntura educacional, as ofensivas do capital sobre o fundo público e a educação pública, e articulados com a análise das frações de classe e forças sociais capazes de operar em torno desses enunciados e levar sua implementação adiante.

1- Empreendedorismo

Engana-se quem acha que o programa de Bolsonaro para as universidades é uma mera replicação do obscurantismo característico do programa Escola Sem Partido para o ensino superior. O termo que mais aparece relacionado às universidades é o de “empreendedorismo”, articulado centralmente a uma percepção que vê as mesmas como peça chave da produção de conhecimento voltado para o desenvolvimento capitalista.

Um dos traços da racionalidade neoliberal [1] se expressa na generalização da forma-empresa para todas as esferas da vida social incidindo sobre a própria definição do sujeito. A empresa, como paradigma hegemônico de organização da produção do capitalismo no curso do século XX, é tomada como referência para se pensar a ação do sujeito em sociedade e sua própria ação sobre si. O empreendedor [2] é simultaneamente o empresário que se insere na concorrência mercantil movido pelo desejo de acumular objetivando a forma empresa como organização da produção, e mesmo como aquele que se concebe como empresa e como empreendedor de sua vida.

A noção de empreendedorismo é mobilizada tendo em vista uma concepção do sujeito que se pretende formar nas universidades, no caso o estudante. O sujeito é visto pela razão neoliberal como uma empresa de si mesmo (DARDOT & LAVAL, 2016, p.133-136 e p.321-338), e a educação, como provedora de capital humano (LEHER, 2018, p.33 e p.49), seria central no processo de valorização desse sujeito-empresa no mercado. Para isso a aquisição do conhecimento-mercadoria ou da mercadoria-conhecimento valorizaria essa empresa na concorrência permanente por espaços de valorização.

A primeira vez que as universidades são mencionadas em seu programa, se dá nos seguintes termos: “As universidades precisam gerar avanços técnicos para o Brasil, buscando formas de elevar a produtividade, a riqueza e o bem-estar da população. Devem desenvolver novos produtos, através de parcerias e pesquisas com a iniciativa privada. Fomentar o empreendedorismo para que o jovem saia da faculdade pensando em abrir uma empresa” (p.46).

Essa curta passagem pode ser desdobrada a partir de variados aspectos.

As universidades – e a educação em geral – são vistas, dentre outros aspectos como espaço de formação (adestramento) de uma força de trabalho[3] qualificada e barateada, que será responsável pela elevação da produtividade, destinada a fomentar a reprodução da sociabilidade em marcos neoliberais. Se levarmos em conta a Reforma do Ensino Médio, o programa Escola Sem Partido, as mudanças na Base Nacional Curricular Comum e o programa de Bolsonaro, a concepção de educação que daí emerge é associada à instrução. Ao mesmo tempo em que subsumem a educação à instrução, há em projetos como o Escola Sem Partido uma tentativa de deslocamento da educação dos espaços públicos (como as escolas e universidades) para a órbita da família e da Igreja. Quaisquer conteúdos que tenham potencial crítico são sublimados para que seja dada prioridade absoluta a uma educação voltada à aquisição individual de conhecimentos técnicos destinados a constituírem-se como insumos para a produção capitalista em sua forma contemporânea. O estudante é visto como destinatário a adquirir tais conhecimentos, manuseá-los e adequá-los à realidade ao seu redor, se possível dando a eles uma nova conformação destinada à reprodução das relações existentes. O modelo de educação que daí emerge é tecnicista, instrumental e voltado para a formação da força de trabalho.

Vinculado à centralidade conferida ao desenvolvimento de novos produtos, um dos conceitos que organizam sua concepção de ciência e tecnologia, nas quais as universidades têm um papel-chave, é o de inovação. Se a inovação, atrelada às transformações tecnológicas sempre foram fundamentais ao capitalismo, atualmente seu peso se acentua na imbricação entre trabalho material e imaterial, este último como expressão do conteúdo informacional da forma-mercadoria contemporaneamente (ANTUNES, 2011, p. 176-178).

Apesar de seus significados em distintos contextos, “aplicada no contexto organizacional, a inovação está atrelada à concepção de utilidade – é criatividade posta em prática – e, mais propriamente, significa criatividade posta a serviço do processo de criação de valor para as organizações” (FONTENELLE, 2012, p.101). A inovação se insere num culto permanente ao que é exaltado como o novo, sendo a criatividade o vetor essencial para a produção daquilo que seria o “novo” ou a inovação.

Vocabulário recorrente no mundo corporativo contemporâneo, o termo está associado à incorporação de novos conhecimentos que possam ser inseridos no mercado em suas relações de competição e concorrência. A inovação está vinculada a uma necessidade permanente de novas descobertas que permitam às empresas adquirir espaços privilegiados na concorrência entre capitais, ou lhes garantir fatias ou acesso a novos mercados de forma a potencializar as tendências monopólicas e oligopólicas existentes no capitalismo contemporâneo. A inovação, expressa nesses termos, atrela-se ao ajustamento do conhecimento ao circuito de uma produção mercantil acelerada e em permanente demanda por saberes adequados a reprodução dessa forma social. E a tecnologia e o conhecimento produzido (nas universidades e fora delas) são elementos importantes nesse processo. Segundo Jean Marie Vincent “A produção material e a produção de serviços necessitam crescentemente de inovações, tornando-se por isso cada vez mais subordinados a uma produção crescente de conhecimento que se convertem em mercadorias e capital” (VINCENT apud ANTUNES, p. 177).

Ao discutir sobre ciência, tecnologia e inovação, o programa afirma que: “O modelo atual de pesquisa e desenvolvimento no Brasil está totalmente esgotado. Não há mais espaço para basear essa importante área da economia moderna em uma estratégia centralizada, comandada de Brasília e dependente exclusivamente de recursos públicos” (p.48). A pesquisa, a ciência e a tecnologia são submetidas a imperativos econômicos, vistas elas mesmas como uma “importante área da economia moderna”. O conhecimento produzido, visto como mercadoria intercambiável e capaz de potencializar lucro, é encarado como essencial para a criação de novas mercadorias e como suporte para operação e criação de novas tecnologias. A hegemonia do capital fictício (chamado por alguns, com particularidades, de capital financeiro) tem um de seus pilares na busca pela criação incessante de novos mercados destinados a dar vazão aos capitais acumulados. E a produção de tecnologia é um elemento essencial nesse tipo de lógica social.

Por isso as universidades são vistas como um terreno fértil para “parcerias” com a iniciativa privada. As universidades seriam condicionadas a buscá-las, pela intensificação do privatismo em seus espaços internos e pelo estrangulamento cada vez mais acentuados pelos cortes de verbas da Emenda 95, além do vetor imposto pelo aumento da transferência de recursos públicos para os conglomerados educacionais. E as empresas encontrariam espaço para expandir essa relação, uma vez que a universidade é vista como fábrica potencial de mão de obra e conhecimento capaz de produzir novas tecnologias ou formas de conhecimento potencialmente mercantilizáveis. O desatrelamento das universidades, da ciência e da tecnologia dos recursos públicos, citados na página 48, permitem por um lado a reserva de frações cada vez maiores do fundo público para ser gerido pela iniciativa privada, e também amplia a submissão da produção do conhecimento à mercantilização e ao empresariamento.

Ainda no âmbito das tais “parcerias”, trata-se de criar, segundo o programa, seguindo o modelo de outros países (EUA, Israel, Taiwan, Coréia do Sul e Japão): “’hubs’ tecnológicos onde jovens pesquisadores e cientistas das universidades locais são estimulados a buscar parcerias com empresas privadas para transformar ideias em produtos” (p.48). Logo após, o termo empreendedorismo aparece novamente ao se afirmar que “nossa intenção é criar um ambiente favorável ao empreendedorismo no Brasil” (p.48).

Por fim, novamente o binômio universidades-empreendedorismo é realçado ao ser afirmado que: “As universidades, em todos os cursos, devem estimular e ensinar o empreendedorismo. O jovem precisa sair da faculdade pensando em como transformar o conhecimento obtido em enfermagem, engenharia, nutrição, odontologia, agronomia etc, em produtos, negócios, riqueza e oportunidades” (p. 49).

Não deixa de ser irônico que um candidato que durante sua atuação parlamentar e na própria campanha presidencial tenha se esforçado por extirpar e censurar o debate sobre gênero nas escolas e universidades afirmar categoricamente que pretende que todos os cursos ensinem empreendedorismo. Gênero para ele é ideologia, empreendedorismo não.

A transformação do conhecimento em mercadoria é tratada aqui como objetivo do programa, mas simultaneamente incorporado à própria definição do sujeito-estudante. “Estimular” e “ensinar” o empreendedorismo é um meio de formação de sujeitos que transformarão seus conhecimentos em negócios, na busca da valorização de sua empresa-de-si. A ênfase e os exemplos do programa recaem sobre a área tecnológica e biomédica permitindo-se antever o aprofundamento do abismo entre exatas/biomédicas e humanas, atualmente existente no que se refere à financiamento  e incentivo públicos por exemplo. As exatas/biomédicas são vistas sobretudo como áreas em que a inserção do conhecimento no circuito de valorização é acelerada pelo papel exercido por esse tipo de conhecimento no circuito da produção capitalista como pela estruturação desses cursos. As breves menções às humanas são feitas sobretudo nos momentos em que o programa explicita as formas de controle de conteúdo.

2- Controle sobre o conteúdo

Um dos eixos do programa é seu anti-comunismo tacanho, o que permite antecipar alguns elementos do controle de conteúdo pretendido. As tentativas de controle no interior do seu programa giram em torno do que chama de doutrinação (p.46), que nos discursos de seus agentes é qualificada como qualquer ideia que traga algum tipo de contestação aos fundamentos da ordem existente tal como compreendida pelo monolitismo conservador de seus formuladores. Seus apoiadores mais ferrenhos, no espaço universitário e fora dele, se caracterizam por uma cruzada contra autores como Marx, Judith Butler, Paulo Freire, Antonio Gramsci, dentre outros e outras. Além das menções ao “marxismo” e ao “gramscismo” em seu programa, Paulo Freire é citado explicitamente no trecho sobre educação nos seguintes termos: “Além de mudar o método de gestão, na Educação precisamos revisar e modernizar o conteúdo. Isso inclui a alfabetização, expurgando a ideologia de Paulo Freire, mudando a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)” (p.46). O programa de Bolsonaro aqui lembra o Mobral, programa de alfabetização da ditadura empresarial-militar criado para tentar conter os métodos de educação popular propostos por Paulo Freire, que fazia do estudante sujeito e agente do processo educacional, ao invés de mero objeto como pretendeu o MOBRAL (e pretende o governo Bolsonaro, que percebe a educação como instrução). O termo “expurgar”, aliás, remete à própria ditadura.

As mudanças já estabelecidas na BNCC procuraram retirar a obrigatoriedade de diversas matérias nos currículos obrigatórios das escolas, sobretudo aquelas que permitem ou exigem uma abordagem crítico-reflexiva.

Em sua atuação parlamentar e no bloco de poder em torno de seu governo, estão também os defensores do programa Escola Sem Partido, que atuam no parlamento e fora dele numa tentativa de interditar o debate sobre gênero do espaço público. Estes atores têm tentado classificar como “ideologia de gênero” quaisquer tentativas de questionamento dos padrões e papéis de gênero hegemônicos e uma percepção biologizante sobre sexo e gênero. Buscam assim anular o debate no espaço público sobre o tema e reforçar os papéis dominantes de gênero calcados na família patriarcal (VIEIRA, 2016a; VIEIRA 2016b).

Se a tentativa de banir os debates sobre gênero do universo educacional é explicitado pelo Programa Escola Sem Partido, certamente não se resume ou se resumirá a essa tentativa. O projeto está atrelado à tentativa de conter a luta por auto-emancipação de sujeitos, em sua inter-relação, que são vistos como potenciais questionadores do status quo. O “combate ao marxismo”, como expressão do movimento dos trabalhadores, é um dos motes de seu programa. Em falas públicas suas e do general Mourão, futuro vice-presidente, tem se indicado a reafirmação do mito da democracia racial como programa e projeto[4], além das históricas falas públicas contra as cotas. A negação de qualquer conflito, ainda mais em sua dimensão estrutural que se apresentam de forma mais intensa em sociedades de capitalismo dependente, está vinculada ao desejo mais violento de reafirmação dos fundamentos da ordem existente.

As lutas sociais garantiram até o momento duas derrotas momentâneas aos defensores do Escola Sem Partido. Uma no Congresso, com o arquivamento do projeto em 2018. Outra no Supremo Tribunal Federal no julgamento da liminar sobre a lei de Alagoas sobre o tema e na votação do pleno no caso das faixas anti-fascistas nas universidades que antecipam os argumentos do projeto de lei. Entretanto, convém não confiar nesses órgãos, que já mostraram sua subserviência a diversos retrocessos atualmente postos. É possível que com a posse do novo parlamento, ainda mais conservador que o atual, se tente uma ofensiva nos primeiros meses de governo ao qual é importante estar atento. Além disso, independentemente da aprovação do mesmo, o governo tende a incentivar práticas de delação a professores e alunos, e de controle de conteúdo, num ambiente típico de regimes autocráticos já antecipados por discursos de Bolsonaro após a vitória. De qualquer forma, diversos impactos já foram causados no estabelecimento de um clima de pânico e de censura velada que tem obrigado docentes e discentes a fazerem mediações extra-acadêmicas em suas atividades cotidianas.

3- Verbas e organização educacional

Para além da desvinculação do orçamento público para o financiamento das universidades, um dos eixos centrais do programa de governo de Bolsonaro está na articulação entre a discussão sobre a destinação das verbas e a atual organização da educação no país. Seus eleitores têm replicado um aspecto levantado pelo seu próprio programa, onde insinua-se um atual excesso de preocupação com o ensino superior e uma despreocupação com o ensino infantil, fundamental e médio (p.45). Isso incide na discussão sobre o montante de verbas atualmente direcionado para o ensino superior, a ser transferido potencialmente para as outras esferas do ensino. Segundo o programa (p.47): “Atualmente os diferentes sistemas de educação do Brasil não conversam entre si. As três instâncias funcionam de maneira isolada: o Governo Federal foca mais no ensino superior, os governos estaduais na educação média/técnica, e os municípios no ensino fundamental”. Dois slides antes, a afirmação de que “precisamos inverter a pirâmide” (p.45).

Esse tipo de estratégia é tipicamente mistificadora, pois parte de um dado da realidade (a insuficiência do financiamento para o ensino infantil, fundamental e médio), e o distorce, atribuindo essa responsabilidade ao ensino superior que na percepção do programa é super-financiado. Nenhum comentário para o volume de verbas direcionadas à educação em relação ao conjunto do orçamento nacional, e o subdimensionamento dessas verbas se comparados ao volume direcionado ao pagamento da dívida pública e encargos da dívida. Nenhum comentário sobre os estudos que indicam o estrangulamento que vem sofrendo atualmente o ensino superior, sobre a precarização nas universidades ou mesmo que aponte a distribuição atual nos ensinos infantil, fundamental e médio e suas necessidades. Nenhuma menção ao Plano Nacional de Educação que estabelece a ampliação do investimento público em Educação para 10% nos próximos anos, que apenas faria com que retomasse os patamares anteriores ao golpe de 64. Mesmo num terreno formal, o programa desconsidera até mesmo o artigo 211 da Constituição que vincula a União ao ensino superior. E dá prioridade aos municípios no que se refere ao ensino fundamental e infantil e aos estados no ensino médio, sem desconsiderar o que chama de um papel redistributivo, supletivo e de assistência técnica da União. Seu programa explicita que não se trata de nenhuma ampliação de recursos para a educação, atualmente insuficientes e submetidos ao arrocho estabelecido pela Emenda 95 (antiga PEC 241 na Câmara e PEC 55 no Senado), com o apoio do ex-deputado. Segundo o programa, em uma caixa de texto com o objetivo de chamar a atenção: “é possível fazer muito mais com os atuais recursos!” (p.41).

De fato há um subfinanciamento à educação infantil, fundamental e média por parte do governo federal, mas isso não se resolve cortando verbas do ensino superior para deslocá-las para o infantil, básico e médio. No mínimo, é possível questionar o programa sobre a necessidade de ampliação dos recursos destinados à educação, a serem direcionados para o ensino infantil, fundamental e médio e garantir melhorias no ensino superior. Mas essa questão é inviabilizada de antemão pelo próprio programa que corrobora com os princípios da Emenda 95, de congelamento do aumento de recursos para áreas sociais, de aprofundamento da austeridade e de adesão aos interesses do mercado financeiro e do capital fictício que lucra com o atual sistema da dívida e com a própria política econômica hegemônica.

No que se refere à organização da educação no país, o programa de Bolsonaro menciona o ensino a distância como alternativa, sem mencionar como e de que forma pretende fazê-lo. Em sua campanha, afirmara que pretendia implementar a educação à distância desde o ensino fundamental, se estendendo também ao ensino superior. Para além da precarização e perda de qualidade do ensino que isso tende a acarretar, a replicação do ensino a distância facilita o controle de conteúdo pelo poder central, que incidiria diretamente sobre o processo de produção do mesmo. Isso aliás, é explicitado por Bolsonaro, que vê nessa estratégia uma forma de “combater o marxismo”. Segundo ele mesmo durante a campanha: “Conversei muito sobre ensino a distância. Me disseram que ajuda a combater o marxismo. Você pode fazer ensino a distância, você ajuda a baratear”.[5]

Seu programa menciona abertamente o ensino a distância como alternativa para áreas de difícil acesso, sem mencionar a qualidade desse ensino em seu aspecto integral ou a necessidade de construção de escolas nessas áreas. Articulando o tema à sua fala, o ensino a distância é visto também como estratégia de intensificação do ajuste fiscal. Além disso, analisando os atuais movimentos do capital no plano educacional, a própria produção e replicação desse conteúdo é uma área tendencialmente acessada pelas empresas que produzem material de ensino a distância em associação com o governo que articula esse conteúdo a suas diretrizes de “combate ao marxismo”.

 

Considerações finais

Se, como lembra Elaine Behring (2016, p.24), a disputa pelo fundo público é uma das expressões das lutas de classes no mundo contemporâneo, a questão posta pelo programa adquire centralidade num quadro de ofensiva do capital (DEMIER, 2017, p. 83-106) para tentar expandir seu acesso ao fundo público como um dos eixos de garantia de retomada e/ou elevação dos patamares de acumulação diante da crise. O programa de Bolsonaro amplia as formas de espoliação em torno da política social e de manejo e saque sobre o fundo público. Mas não se resume a isso. Há uma tentativa de acentuar a submissão da educação à formação de uma força de trabalho precária, e subsumi-la às formas contemporâneas de extração de mais-valor e do avanço das mesmas.

Além dos aspectos levantados no texto, focados no programa de Bolsonaro disponibilizado no site do TSE, é fundamental retomar uma observação feita na introdução sobre as máximas gerais mobilizadas em torno de seu programa. Há um programa formal (disponibilizado no site do TSE) que serve de orientação a um programa real, que operará sobre aqueles princípios gerais. O programa real já tem sido posto em funcionamento por sua equipe de transição, e um do foco de seus ataques é e será a própria universidade pública. Duas propostas que gravitam em torno de sua equipe dizem respeito à cobrança de mensalidade em universidades e o estabelecimento de vouchers, ambas medidas que ampliarão a mercantilização das universidades e da educação. Sua equipe também tem tentado elaborar estratégias que permitam a Bolsonaro burlar a democracia interna das universidades, escolhendo para o cargo de reitor não o candidato mais votado, mas aquele mais adequado aos princípios ideológicos do governo. Segundo uma reportagem, estas medidas ainda não foram explicitadas para não gerar reações e desgastar o futuro governo.[6]

As universidades serão espaços em que algumas disputas centrais serão travadas a partir de janeiro. E o futuro governo parece consciente disso, quando sua equipe de transição informou o receio de um levante nas universidades federais em reunião no MEC.[7] Isso se dá simultaneamente ao processo pelos quais iniciaram uma campanha de fake news desqualificando as universidades públicas e mobilizando seu séquito de seguidores a intensificar os mecanismos de delação e controle de conteúdo pretendidos.

A defesa da universidade pública precisará ir além de seus próprios espaços, sendo preciso rejeitar qualquer forma de isolacionismo. Sem uma unidade dinâmica com os espoliados em luta não será possível resistir de maneira efetiva aos ataques que se anunciam à universidade pública e aos espaços de liberdade conquistados pela classe trabalhadora e pelos movimentos sociais em nossa história recente e pretérita. Além de resistir, será preciso atuar de forma decidida no processo de reconstrução das lutas sociais no país, para além da ofensiva burguesa atual e das ilusões da colaboração de classes.

*Rafael Vieira é professor da Universidade Federal Fluminense e militante do PSOL.

Foto: Jair Bolsonaro e o futuro ministro da Educação. Reprodução/Facebook

NOTAS

[1] A adesão ao neoliberalismo é explicitada no próprio título do programa, uma referência indireta a “O caminho da servidão” de Hayek, um dos expoentes do pensamento neoliberal e da escola austríaca.

[2] Essa forma de conceber o empreendedor, embora encontre referências distantes em Say ou em Schumpeter, tem especificidades. Cf (DARDOT & LAVAL, 2016, p.151-155)

[3] A força de trabalho, entretanto, não é entendida como tal para os apólogos do empreendedorismo. Mistificando as disparidades inerentes à relação entre as classes sociais, todos são vistos como empreendedores de si mesmos, substituindo a categoria de trabalhador (vista como geradora de antagonismos) pela de um empreendedor que busca auto-realização no mercado.

[4] Para uma análise mais aprofundada do tema, ver: SCALDAFERRI, Lucas Ribeiro. Consciência negra e novas resistências perante a eleição de um presidente racista no Brasil. Disponível em:  https://esquerdaonline.com.br/2018/11/19/consciencia-negra-e-novas-resistencias-perante-a-eleicao-de-um-presidente-racista-no-brasil/. Acesso em 13/12/2018.

[5] https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-defende-educacao-distancia-desde-ensino-fundamental-22957843. Acesso em 12/12/2018.

[6] Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,equipe-de-bolsonaro-quer-cobranca-de-mensalidade-em-universidades-federais,70002557697. Acesso em 15/12/2018.

[7] https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/equipe-de-transicao-de-bolsonaro-teme-levante-das-universidades-federais-23248228?utm_source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=O+Globo&fbclid=IwAR1bJqbLE3l6t03HLX2oCw1pTwZymF-jPXx1d8zZs7GShgStgFvmkkgkVTw. Acesso em 20/12/2018

 

Referências Bibliográficas

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2011.

BEHRING, Elaine. A condição da política social e a agenda da esquerda no Brasil. SER Social, Brasília, v. 18, n.38, p.13-29, jan.-jun./2016.

DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DEMIER, Felipe. Depois do Golpe: A dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017.

FONTENELLE, Isleide. Para uma crítica ao discurso da inovação: saber e controle no capitalismo do conhecimento. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v.52, n.1, jan./fev. 2012, p.100-108.

LEHER, Roberto. Universidade e heteronomia cultural no capitalismo dependente: Um estudo a partir de Florestan Fernandes. Rio de Janeiro. Consequência, 2018.

PARTIDO SOCIAL LIBERAL. O caminho da prosperidade. Disponível em: http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2018/propostas-de-candidatos. Acesso em 12/12/2018.

SCALDAFERRI, Lucas Ribeiro. Consciência negra e novas resistências perante a eleição de um presidente racista no Brasil. Disponível em:  https://esquerdaonline.com.br/2018/11/19/consciencia-negra-e-novas-resistencias-perante-a-eleicao-de-um-presidente-racista-no-brasil/?fbclid=IwAR1BFucZmxeFjtEzEyiuqG1NK81GNEkGJQs1gHubkP23tnMtzYXbq1Y8dL4. Acesso em 13/12/2018.

VIEIRA, Rafael B. Para uma crítica do projeto de lei 193/2016, que inclui na LDB o Programa “Escola Sem Partido”. Disponível em: http://blogjunho.com.br/para-uma-critica-do-projeto-de-lei-1932016-que-inclui-na-ldb-o-programa-escola-sem-partido/ . Acesso em 20/12/2018.

__________. “Ideologia de Gênero” e censura no Programa Escola Sem Partido. Disponível em: http://blogjunho.com.br/ideologia-de-genero-e-censura-no-programa-escola-sem-partido/ Acesso em: 20/12/2018.