As revoluções tardias são as mais radicais

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Aqueles que fazem revoluções pela metade, não fazem senão cavar uma sepultura onde serão enterrados.
Antoine de Saint-Just, Relatório à Convenção, 3 de março de 1794

Nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade.
Antoine de Saint-Just – 1767-1794

Uma esquerda para o futuro precisa de uma nova estratégia. Derrotas táticas exigem balanços da tática. O que vivemos em 2018 não foi uma derrota eleitoral tática. Derrotas estratégicas impõem balanços da estratégia. Trata-se do mínimo de honestidade intelectual e coerência política. Há conclusões terríveis, porém, inescapáveis, diante de nós. A principal é a compreensão da necessidade da revolução brasileira.

Quem pensa que a derrota eleitoral foi tática se agarra na ilusão de que, por exemplo, se Ciro Gomes tivesse sido o candidato, teria sido possível derrotar Bolsonaro no segundo turno. Este contrafactual é um cálculo sem consistência. Confirmou-se, infelizmente, que a rejeição ao neofascista era menor que a rejeição ao PT, depois de treze anos e meio no governo. Esta foi a contradição incontornável da luta eleitoral.

Na perspectiva da história, a principal lição dos últimos três anos é que não será possível transformar a sociedade brasileira através de negociações de um projeto de reformas com a classe dominante. Essa estratégia não passou pelo laboratório da história. Foi, irremediavelmente, enterrada. É cruel, mas é assim.

Insistir na mesma estratégia, e esperar resultados distintos, seria teimosia obtusa. Pensamento mágico é acreditar que a força do desejo é o bastante para mudar a realidade. A burguesia brasileira não está disposta a acordo algum. Tolerou o PT no contexto da conjuntura, muito excepcional e inédita, de um mini-boom de crescimento econômico, turbinado pela demanda de commodities, potencializado pela ascensão chinesa. Mas o alinhamento com uma fração do imperialismo liderada pelos EUA não é efêmero.

Quando um não quer, dois não se entendem. O custo de um acordo seria a capitulação. Foi assim quando o PT estava no governo e será, também, assim com toda a esquerda na oposição, e ameaçada de ser, judicialmente, perseguida, senão, politicamente, desarticulada. Correndo o risco de que algumas lideranças sejam assassinadas, e nossas organizações destruídas. Será, também, pura ilusão imaginar que as instituições do regime – Ministério Público, Justiça, Congresso – serão suficientes para conter os “excessos” autoritários dos que vão assumir o poder em janeiro de 2019. Dependerá da capacidade de mobilização social da esquerda e dos movimentos sociais a defesa das liberdades democráticas.

Quem não sabe contra quem luta não pode vencer. A estratégia da burguesia brasileira para retirar o capitalismo semiperiférico da estagnação prolongada é atrair investimentos externos e impor padrões de superexploração “asiáticos”. Portanto, não está disposta à concessão de reformas “europeizantes”. Trata-se de reversão de direitos e não extensão de reformas. Não é um plano para um governo Bolsonaro de quatro anos. Estamos diante de um projeto de reposicionamento global do Brasil no mercado mundial e no sistema de Estados. E demonstram disposição de impor mudanças no regime político, avançando até o bonapartismo, e criminalizando a oposição de esquerda.

Duas lições programáticas, portanto, se impõem, depois da derrota estratégica. A primeira é que não haverá transformação social no Brasil sem rupturas. A segunda é que o futuro da esquerda depende da sua capacidade de implantação entre os trabalhadores e oprimidos, a imensa maioria da sociedade brasileira que, mais cedo do que tarde, se colocará em movimento.

Os fatores objetivos determinantes da derrota eleitoral parecem ter sido cinco: (a) a estagnação com viés de queda da renda, com o impacto da inflação dos serviços, e o aumento dos impostos, que empurraram a classe média para a direita; (b) a perplexidade entre amplas franjas dos trabalhadores de que a vida piorava com o desemprego agravada pela desmoralização de que os governos do PT seriam corruptos; (c) o aumento da violência urbana, das taxas de homicídio, e o fortalecimento do crime organizado que deslocaram grandes massas populares para a extrema-direita; (d) a reação de um setor mais retrógrado da sociedade, mais racista, misógino e homofóbico, ao impacto da transição urbana, geracional e cultural da sociedade; (e) por último, mas não menos importante, o giro da burguesia para o choque fiscal selvagem e, finalmente, para o apoio a Bolsonaro, diante da estagnação crônica, mesmo depois de dois anos de governo “gradualista” de Temer.

A classe dominante se apoiou na classe média para impor a situação reacionária que culminou com a eleição de Bolsonaro. A extrema direita com retórica neofascista será o instrumento para tentar impor uma derrota histórica à classe trabalhadora. A espada na mão do capitão que tem “a mão que não treme”. Acontece que é pura ilusão imaginar que se pode impor “a frio” uma derrota histórica semelhante à de 1964. A vitória nas urnas terá que medir força com a luta nas ruas. A subestimação do que é a nova classe trabalhadora, um gigante social em uma sociedade, plenamente, urbanizada, mais concentrada, mais instruída, porém, grotescamente, desigual e injusta, poderá ser fatal. Não estamos nos anos sessenta. Haverá resistência. Uma esquerda para o futuro deve confiar na classe trabalhadora. Não merece a confiança da classe quem não confia nela.

Os governos do PT desconsideraram o mal estar da classe média com a inflação nos serviços, o aumento dos impostos, a queda do salário médio da alta escolaridade e pagou um preço descomunal: o impeachment de Dilma que abriu o caminho para Temer e para a prisão de Lula. Bolsonaro cometerá um erro simétrico, se desconsiderar o peso social da classe trabalhadora brasileira. Não se pode impor uma regressão social brutal sem incendiar uma resistência avassaladora.

A conclusão estratégica incontornável é que a revolução brasileira será uma revolução, historicamente, atrasada, portanto, um processo, dramaticamente, conflituoso. O paradoxo da situação brasileira é que a burguesia brasileira rompeu com o governo de colaboração de classes do PT, e não o contrário.

Quando o PT, sob a orientação de Lula, depois de doze anos de concertações, venceu, pela quarta vez, as eleições presidenciais em 2014, e Dilma Rousseff nomeou Joaquim Levy para ser o Ministro da Fazenda, estava sinalizando a disposição de fazer o ajuste fiscal que era exigido pelos pesos pesados da classe dominante. Um ano depois, em dezembro de 2015, Levy se demitiu e a “Avenida Paulista” girou para o apoio ao impeachment.

Essa decisão colocou em movimento forças sociais reacionárias que se radicalizaram à direita em forma irrefreável. Acontece que esta estratégia reacionária não pode se impor sem uma radicalização ainda maior, contrarrevolucionária. Será necessário inflingir uma derrota social aos trabalhadores, e uma destruição política às organizações da esquerda.

Esta tragédia não aconteceu porque o PT é corrupto, embora a direção do PT não seja inocente. Porque se deixou financiar durante vinte anos pelo caixa 2. Mas essa é a narrativa conspiratória da Lava Jato para, se possível, avançar até a ilegalização do PT. Em toda organização e luta política, das mais simples às mais complexas, estão presentes demagogos empenhados em se aproveitar das circunstâncias. O PT não esteve imune à presença de aventureiros e canalhas. São conhecidos. Afinal, foram os primeiros a fazer acordos de delação premiada.

O argumento democrático-radical parece poderoso – o PT decidiu o seu destino quando tolerou o enriquecimento de alguns de seus líderes – mas não é. É ingênuo, politicamente, infantil. Oportunistas e arrivistas não são senão a poeira da história.

Dilma Rousseff não foi derrubada, somente, porque a classe média se enfureceu com a corrupção. Foi derrubada porque os trabalhadores não estavam dispostos a defender o seu governo. Se estivessem, a dinâmica iniciada em junho de 2013 teria sido a antessala de uma situação pré-revolucionária. O Brasil teria se “venezualizado”.

Revoluções não acontecem, evidentemente, porque há revolucionários que as desejam. Foi sempre a impossibilidade de mudanças negociadas que abriu o caminho para irrupção de massas que denominamos de revolução. Um processo revolucionário só se abre quando a gravidade da crise social é tão grande que muitos milhões de pessoas, até então indiferentes aos destinos coletivos, despertam com invencível disposição de luta para a luta política. Uma revolução é um processo, não somente uma insurreição.

O terreno das transformações históricas é sempre um campo de disputas que estão, por um longo período, mais ou menos dissimuladas, até que explodem de maneira vulcânica. As placas tectônicas da vida econômica e social estão ocultas embaixo do edifício de uma ordem política que parece estável. Não obstante, movem-se.

Na história das sociedades, como na vida das pessoas, não há mudança que não desperte oposição, não há luta que não encontre reação. Revolução e contrarrevolução são inseparáveis na história contemporânea. Revoluções são uma das formas de transformação das sociedades contemporâneas. Precipitam-se quando fracassam as mudanças pela via das negociações. Estes deslocamentos ora permitem o sucesso de reformas, pela via de conquistas/concessões, ora impõem o recurso à mobilização revolucionária. Enganam-se aqueles que denunciam as revoluções como responsáveis pela contrarrevolução, quando o que a história ensina é, exatamente, o contrário.

A história nos deixou uma lição cruel. O PT foi derrubado porque a classe dominante não estava mais disposta a tolerar um governo de colaboração de classes, depois da demissão de Levy. Se o PT tivesse radicalizado à esquerda, a burguesia teria girado para a oposição mais cedo. Os métodos não teriam sido somente reacionários, teriam sido contrarrevolucionários.

Claro que os governos do PT deveriam ter avançado com medidas mais duras contra o capital. Se o tivesse feito, no calor das mobilizações de junho de 2013, teria preservado e ampliado o apoio na classe trabalhadora e entre os oprimidos. A luta teria sido feroz. Mas as condições de vitória teriam sido muito melhores.