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CULTURA

A casa que Lars von Trier construiu

Por: João Paulo de Oliveira Moreira* **, de Niterói, RJ
Reprodução
[Contém spoiler]

Lars von Trier (1956-) é um laureado cineasta dinamarquês, de extensa e impressionante filmografia, entre curtas e longas-metragens em que abordou questões e pulsões candentes ao nosso tempo, tais como: maldade, impotência, melancolia, depressão, arte, sexualidade, morte, entre inúmeros outros temas pertinentes e inquietantes.

Nos anos 1990, Trier participou ativamente de um dos mais importantes movimentos cinematográficos dos últimos tempos, o Dogma-95 [1]. A partir de um manifesto lançado em Copenhague, no ano de 1995, por Thomas Vinterberg e o próprio Lars von Trier, são defendidas propostas de um cinema menos industrial, mais realista e de resgate a produção anterior à indústria cultural. Apresento aqui algumas das regras ou “votos de castidade”, defendidas enquanto preceitos estéticos no manifesto:

  1. As filmagens devem ser feitas no local. Não podem ser usados acessórios ou cenografia (se a trama requer um acessório particular, deve-se escolher um ambiente externo onde ele se encontre).
  2. O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa. (A música não poderá ser utilizada a menos que ressoe no local onde se filma a cena).
  3. A câmera deve ser usada na mão. São consentidos todos os movimentos – ou a imobilidade – devidos aos movimentos do corpo. (O filme não deve ser feito onde a câmera está colocada; são as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme tem lugar).
  4. O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial. (Se há muito pouca luz, a cena deve ser cortada, ou então, pode-se colocar uma única lâmpada sobre a câmera).
  5. São proibidos os truques fotográficos e filtros.
  6. O filme não deve conter nenhuma ação “superficial”. (Homicídios, Armas, Sexo, etc. não podem ocorrer).
  7. São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos. (O filme ocorre na época atual).
  8. São inaceitáveis os filmes de gênero.
  9. O filme final deve ser transferido para cópia em 35 mm, padrão, com formato de tela 4:3. Originalmente, o regulamento exigia que o filme deveria ser filmado em 35 mm, mas a regra foi abrandada para permitir a realização de produções de baixo orçamento.
  10. O nome do diretor não deve figurar nos créditos. Para que um filme fosse considerado pertencente ao movimento, uma cópia deveria ser enviada para ser analisada em Copenhague e somente assim a obra ganharia o “selo dogma”.

Este movimento surgiu num cenário mundial de devastadora ofensiva neoliberal, com políticas macroeconômicas e de ajuste que exigiam o desmonte de direitos trabalhistas adquiridos através de intensas lutas históricas, consorciado ao fomento de uma sociabilidade ultraindividualista e voltada para a lógica autoexpansiva do capital. No cinema, presenciamos ao longo dos anos 1990, a expansão frenética de determinados padrões de filmes holywoodianos, como as comédias românticas “mamão com açúcar” (Sintonia de Amor, 1993; Mensagem para você, 1998), animações milionárias (O Rei Leão, 1994; Pocahontas, 1995; Toy Story, 1995) e blockbusters (Jurassic Park, 1993; Independence Day, 1996).

Concomitantemente, emergiram importantes experiências estéticas alternativas as mencionadas acima, e aqui não tem nenhuma valoração de qualidade ou inferioridade as mega produções cinematográficas, apenas constato que o jovem cinema francês [2] com a presença cada vez maior de diretoras mulheres, árabes e magrebinos; A Nouvelle Vague Taiwanesa e a estética da incomunicabilidade e da fragmentação no cinema de Tsai-Ming Liang; A crítica ao fundamentalismo em Mohsen Makhmalbaf e a reflexividade expressa na câmera de Abbas Kiarostami; A onda hanryu sul-coreana abrindo as feridas da guerra; Representaram experiências e comprometimentos com a arte, política e a cultura daquele período, distintos daquilo que era produzido pelos grandes estúdios hollywoodianos.

Seguindo a linha contestatória antiestablishment e anti-holywoodiana, o movimento Dogma-95 buscou pavimentar uma estética de extrema-direita, a partir de uma reconfiguração conservadora vinculada a regras limitadoras na produção dos filmes, juntamente a uma visão de mundo regressiva, salvacionista e negacionista de outras experiências técnico-estéticas, tais como a Nouvelle Vague Francesa, o Free Cinema Britânico e o Neorrealismo italiano, conforme explicitado pelo diretor Harmony Korine:

Folha – Por que a conversão ao Dogma?

Harmony KorineDogma é uma ação de resgate do cinema, visando salvá-lo. É uma reação ao fracasso da novas ondas dos anos 60, um movimento romântico e burguês de “autorismo”, com exceção de Godard. Todo mundo deveria fazer ao menos um filme seguindo o Dogma. É uma purificação por meio do cinema. [3]

É neste contexto que devemos compreender a obra de Lars von Trier, sem perder de vista que o diretor não é um mero participante do movimento Dogma-95, mas sim um dos formuladores dos “votos de castidade”, conforme buscou reatualizar em 2005, propondo mais quatro regras a serem acrescentadas: 1- A gravação dos filmes deve ser feita em formato digital; 2- As filmagens devem ocorrer na Escócia; 3-  As filmagens não podem ultrapassar o prazo de 6 semanas; 4- O custo total do filme não pode ultrapassar a quantia de um milhão de libras esterlinas.

O diretor também ficou celebrizado por declarações de leniência ao nazismo [4] e pela brutal misoginia presentes nos sets de filmagem [5] e nos filmes Dogville, Anticristo, Ninfomaníaca 1 e 2 e seu mais recente, A casa que Jack construiu. No caso de Anticristo, um júri ecumênico no Festival de Cannes premiou o filme com um “antiprêmio”, por considerá-lo a obra mais misógina de Lars von Trier [6]. Wendy Ide, do jornal inglês The Times, por exemplo, afirmou: “Lars von Trier, nós entendemos. Você realmente, realmente não gosta de mulheres. […] Há uma subcorrente puritana em seu trabalho que quer punir as mulheres por serem entidades sexualmente ativas”. [7]

Não irei me ater ao conjunto da sua obra cinematográfica ou estabelecer comparações entre os filmes, algo fundamental para compreender o quanto a banalização da misoginia através do aniquilamento do ego dos personagens masculinos que promovem toda e qualquer barbaridade com as mulheres, a mutilação e impossibilidade do prazer feminino, é utilizada enquanto um recurso estético, e expressa a sua visão de mundo e da arte, qual seja: a “destruição destruidora” e a completa ausência de determinações, ou seja, o caos. [8]

Após assistir A casa que Jack construiu (2018), seu último filme, consolidou-se a minha avaliação acerca destes elementos enquanto constituintes de sua obra. Este filme segue uma construção narrativa similar a algumas de suas películas anteriores, destacadamente a divisão por atos, agora “incidentes” (assassinatos praticados por Jack), da personagem principal interpretado de maneira convincente por Matt Dillon.

Jack é um engenheiro com apreço pela arquitetura, que pratica a violência por prazer e acreditando que está produzindo arte. O filme é narrado pela personagem principal, intercalando conversas com Virgílio (alusão ao poeta conhecido por obras épicas que remontam a ancestralidade e a tradição romana), interpretado por Bruno Ganz, que cumpre o papel de apresentar um contraponto ao serial killer. A personagem narra seus atos defendendo a sua visão de mundo, de que a morte produz arte. De que destruição produz arte. A narrativa de Jack é a justificativa do próprio trabalho e da contestação da arte contemporânea [9] pelo diretor, no qual transformou o seu cinema num espaço no qual a sua visão de mundo tem voz através dos protagonistas.

E a destruição é a “casa” que Lars von Trier constrói. Seus recursos estéticos e textuais não podem obnubilar a real expressão daquilo que ele entende por arte, cinema e mundo: Caos e destruição. Jack somente causa sofrimento aos outros, e aqui, Jack assume o alterego do próprio diretor, cuja casa nunca é construída definitivamente, apenas derrubada no início de cada construção. Não comportando, portanto, uma interpretação de que este filme é uma metáfora sobre os demônios que assombram os criadores.

No primeiro incidente, temos a primeira vítima de Jack. Uma mulher à deriva na estrada, com o macaco quebrado e solicitando ajuda para sanar o seu problema. A personagem interpretada por Uma Thurman não parava de causar incômodo à Jack enquanto este dava carona para ela, justamente pelo fato de não parar de falar. A repulsa por uma mulher que falava, se expressava, era irônica e emitia as suas opiniões de maneira contundente, se tornaram inadmissíveis para Jack, a ponto dele desferir o macaco contra a testa dela e assim iniciar a sua cruzada de serial killer. Nesse caso, a morte vem acompanhada do silenciamento instantâneo da mulher.

No segundo incidente temos a tomada pelo gosto de matar. Uma mulher, de meia-idade, viúva que somente abre a porta de sua casa ao ser seduzida por um possível aumento da pensão do marido. Uma “parasita”, na visão do assassino, que vive através da pensão de seu falecido marido. Um estrangulamento. No terceiro incidente em diante, temos a completa banalização da perversão, com assassinatos recheados de requintes de crueldade e sadismo. Matar os filhos de uma mulher para depois matá-la não é uma mera crueldade, mas sim a possibilidade de dizer que o poder de tirar a vida de quem a produz, no caso as mulheres, está com os homens. Algo corroborado no patético diálogo do ato seguinte em que Jack pergunta retoricamente a sua vítima: “Você sabe como é difícil ser homem?” ou “As mulheres sempre são vítimas”. “Você tem lindos seios”, é o que Jack diz a sua vítima, no que ela responde que ele sempre era grosseiro com ela. É com a mutilação daquilo que era considerado belo na vítima que Jack se regojiza antes de matá-la. Vale mencionar que Trier sabe muito bem utilizar recursos técnicos e narrativos, de maneira a mesclar o real com o imaginário, confundindo por vezes a crítica e o público sobre o seu caráter escancaradamente misógino e destruidor. Posto isso, o diretor teve a “habilidade” de não trabalhar apenas com o assassinato de mulheres, como no incidente três e os absurdos do incidente cinco, no que consiste muito mais num recurso de roteiro e propaganda do que uma brecha para interpretações não-misóginas, uma vez que Lars von Trier sabe muito bem como jogar com o espetáculo.

Por fim, ressalto que o machismo, a misoginia e a estética do choque, presentes nas diversas obras do dinamarquês, assim como diversos outros elementos já mencionados, também constituem a agenda de uma nova direita nacional e internacional, que tem repúdio ao avanço dos direitos das mulheres conquistados através de lutas históricas. Esta nova direita sabe se utilizar muito bem da sociedade do espetáculo para chocar e permanecer em voga, portanto, mapear as raízes e capilaridades do que constitui esta plataforma conservadora é tarefa fundamental para combatê-la, e acredito que no campo estético, o movimento Dogma-95 pode fornecer interessantes e preliminares pistas.

FOTO: Cena do filme A casa que Jack construiu, de Lars Von Triers. Reprodução.

*João Paulo é doutorando em história social na Universidade Federal Fluminense. Professor de história na rede particular de Niterói-RJ, torcedor do Fluminense e do Império Serrano.
** Este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla e ainda preliminar sobre a estética da extrema-direita, o cinema dinamarquês e a psicanálise. Agradeço as conversas com Rogério Nascimento de Oliveira e André Vieira, mas isento-os de qualquer equívoco ou imprecisão.

NOTAS

1 – O primeiro filme a receber o certificado Dogma dos votos de “castidade” foi Festa de Família, de Thomas Vinterbeg (1998), seguido de Os idiotas (1998), de Lars von Trier. A posteriori, outros diretores se incorporaram ao movimento: Søren Kragh-Jacobsen, Anders Thomas Jensen, Kristian Levring, Jean-Marc Barr, Anthony Dod Mantle, Paprika Steen, Fran Ilich e Harmony Korine.

2 – Termo utilizado por Michel Marie, em “Os últimos 20 anos do cinema francês”, In: Cinema mundial contemporâneo, (Orgs.) Fernando Mascarello e Mauro Baptista. 2ª edição, Campinas-SP: Papirus, 2012.

3 – Entrevista com Korine. 9 de setembro de 1999. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq09099918.htm <Acessado em 24 de novembro de 2018>.

4 – Ver: Lars von Trier constrange Cannes com declaração nazista. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1905201111.htm <Acessado em 24 de novembro de 2018>.

5 – Em entrevista a jornalistas, o diretor chamou sua protagonista em Dançando no Escuro, a cantora Björk, de louca, e declarou ter sido uma experiência terrível dirigi-la. Boatos dos bastidores diziam de embates intermináveis entre o ego dos artistas e suas diferenças criativas. Björk chegou a dizer publicamente em seu blog que Trier teria inveja das mulheres, indispensáveis para dar alma a seus trabalhos e, por isso mesmo, teria de destrui-las durante as filmagens. Catherine Deneuve, colega de elenco da cantora, chegou a afirmar à época que o processo de filmagem teria sido tão traumatizante que talvez demorasse uma década para que Björk voltasse a fazer cinema. (https://cinemacomrapadura.com.br/colunas/316591/lars-von-trier-um-diretor-muitas-polemicas/)

6 – MACKAY, M. “Lars von Trier denies woman-hating in controversial filme”. CNN, Entertainment, 04 jun 2009. Disponível em <http://articles.cnn.com/2009-06-04/entertainment/antichrist .lars.von.trier_1_von-trier-politiken-cannes-film-festival?_s=PM:SHOWBIZ> Acessado em 24 de novembro de 2018.

7 – IDE, W. “Antichrist at the Cannes Film Festival”. The Times, London, Film, 18 maio 2009. Disponível em <http://www.thetimes.co.uk/tto/arts/film/article1886977.ece>. Acessado em 24 de novembro de 2018.

8 – Em uma dada cena de Anticristo uma raposa em meio ao seu autodilaceramento exclama fantasmagoricamente: O caos reina!

9 – Este questionamento fica bem nítido com a comparação em dado momento do filme entre o cubismo e um cadáver. A pulsão de morte predomina ao longo de muitas das obras de Trier.