No último setembro foram realizadas no Sesc Ipiranga, em São Paulo, as leituras cênicas das peças “Eles não usam Black-tie”, “Chapetuba F. C.”, e “Revolução na América do Sul” seguidas de debates mediados por dramaturgos contemporâneos que reavivaram questões e polêmicas fundamentais para o teatro brasileiro. Queremos compartilhar algumas reflexões sobre elas.
É curiosa certa postura recorrente por parte de artistas, pesquisadores do teatro e interessados em geral, onde se concorda sobre a importância histórica do Teatro de Arena, mas com as devidas ressalvas. Argumenta-se que o discurso engajado das obras limitou a inventividade das formas teatrais, consideradas muito didáticas, tradicionalmente dramáticas, como se estivessem instrumentalizadas pela própria força dos temas sociais dramatizados – principalmente a partir de 1956, com a chegada dos jovens artistas Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho. Outra crítica bastante difundida é a de que o que era apresentado tinha como público somente estudantes da classe média paulistana, sendo ingênuo em seus propósitos e com pouca repercussão na sociedade. As explicações caminhariam não para a desvalorização ou a negação da produção do Arena, mas fundamentalmente para os seus limites – o que não acontece com outras experiências históricas do teatro, como o Teatro Oficina, por exemplo.
Encenadas respectivamente em 1958, 1959 e 1960, as três dramaturgias marcam uma virada na forma de se escrever teatro no Brasil. Foi no interior das práticas experimentais do Laboratório de atuação, organizado por Boal, em 1956 no Arena, e do Seminário de dramaturgia, de 1958, que nasceram os textos. Uma nova forma de se pensar teatro estava sendo estruturada, em consonância com os debates modernistas do início do século XX. De acordo com o teórico Peter Bürguer, a arte modernista recusa o esteticismo e a categoria de “instituição arte” para ir ao encontro de outras esferas da vida, como ele mesmo diz, a arte modernista está interessada na práxis vital. Portanto, o radicalismo experimental, o interesse pelos temas centrais da sociedade brasileiras, o engajamento político e, portanto, a tomada de posição diante da própria realidade, assim como o modo de produção compartilhado e discutido por todos os artistas do grupo, só podem ser entendidos nesse desejo de superação do “puramente estético” para a criação de novas formas que fossem capazes de romper o teatro e transbordar para a vida. O teatro naquele momento era transformado em uma verdadeira arena de batalha, e isso era um dos grandes trunfos estéticos dessas peças, ao contrário do que se costuma afirmar. A produção poderosa da canção brasileira imediatamente posterior a esse período, a chamada “MPB”, nasce também muito influenciada por esse projeto teatral. É notável o risco estético que os artistas se propunham.
Não à toa, a professora Iná Camargo Costa intitula um de seus livros mais conhecidos de “A hora do teatro épico no Brasil”, reiterando a associação do teatro com as lutas sociais de seu tempo. Como teatralizar greves? Conflitos de um time de futebol de várzea pressionado pelo capital? Como teatralizar o processo eleitoral, a capitulação de parte da esquerda pela máquina dos grandes partidos? A miséria e as desigualdades da sociedade brasileira?
A forma estética que os artistas tinham domínio na época era a dramática, mas as forças dos temas escolhidos tensionaram essa forma até o limite, gerando o que vemos em “Revolução na América do Sul”: uma dramaturgia fragmentada, com uma série de canções e coros, inspirada no teatro de revista brasileiro e também no chamado teatro épico-dialético. Os experimentos seguintes caminham numa radicalização. Teremos “Mutirão em novo sol” e “A mais-valia vai acabar, seu Edgar”, ambas peças de 1961, que se integraram a movimentos sociais estudantis e camponeses, na busca por novos públicos. Nessas duas peças os artistas em questão se envolveram: Boal e Guarnieri na montagem de Mutirão de São Paulo, e Vianinha, autor de “A mais –valia”, já imerso na construção dos Centros Populares de Cultura da UNE.
Na visão de Iná, o pressuposto do teatro épico é a sua associação com os movimentos sociais. Portanto, não estamos falando só de uma questão formal, não apenas de uma politização dos temas tratados, de uma influência brechtiana ou não. Estamos considerando que essas três peças do Teatro de Arena mobilizaram uma profunda mudança na forma de se pensar a função social da arte, em uma transformação estético-política que trouxe consequências concretas para o teatro brasileiro e que – é bom ressaltar – foram punidas historicamente por isso.
A reprodução de um discurso que faz questão de menosprezar o potencial desse teatro está, mesmo sem querer, intimamente ligado a história oficial contada a partir do golpe de 1964 – e que se intensificou nesses anos de domínio econômico e político do neoliberalismo.
Os chamados “limites” do Teatro de Arena estão inseridos num contexto de intenso combate ideológico, em uma conjuntura complexa, de disputas entre vários agentes políticos, como o governo norte-americano amedrontado com a revolução Cubana, a guerra fria e a intensificação das lutas sociais, o fortalecimento da indústria cultural no país e a postura reacionária de setores da burguesia brasileira, do exército e da Igreja católica. Foram essas forças que se articularam para dar o golpe de 1964. Ao mesmo tempo, um campo progressista – também em disputas internas – formado por movimentos sociais relevantes como as ligas camponesas, o movimento operário, o sindicalismo e a figura de João Goulart com pautas progressistas que ganhavam força nessa conjuntura, assim como a própria militância do Partido Comunista.
Nesse contexto, o Teatro de Arena fomentou o interesse de investigar a fundo temas da realidade brasileira, como o campesinato e o proletariado, as desigualdades econômicas, os impasses para uma maior mobilização social, o imperialismo, além do interesse em desnaturalizar as ideologias da burguesia, como o individualismo, a meritocracia e desnaturalizar as próprias instituições burguesas.
A punição histórica a esse projeto estético-político veio tanto ideológica como materialmente. Na mesma noite do golpe militar de 1964, o prédio da UNE no Rio de Janeiro, sede do CPC, foi incendiado; a peça “Os Azeredo mais os Benevides” de Vianinha, com direção de João das Neves, foi impedida de estrear; foi decretada imediatamente a prisão de líderes de movimentos sociais. Sobre o aniquilamento físico desse projeto, é simbólica a fala do cineasta Orlando Senna quando relata a sua prisão em 1964, onde, sob tortura, teve a única cópia do seu filme (feito para a encenação de “Mutirão em novo sol” no CPC da Bahia) queimada por militares. Por outro lado, do ponto de vista ideológico, tivemos a censura como prática comum do Estado, acompanhada de uma intensa campanha anticomunista e a entrada ostensiva da produção cultural americana.
Aquilo que, nos anos que se seguiram, se costumou considerar como fragilidade nessas peças (inclusive por seus próprios autores), curiosamente, faz eco à história contada pelos vencedores, pra citar Benjamin. É claro que é preciso olhar de forma crítica para a presença de cenas machistas e homofóbicas, sem cair em anacronismos (diga-se de passagem que muitos grupos de teatro negro, feminista e lgbt tem cumprido um papel bastante corajoso nesse sentido, estético e politicamente). Entretanto, criticar a forma dramática, por exemplo, como sendo um limite em si desses textos – principalmente dos dois primeiros – não constitui um argumento crítico sustentável. Falaremos por isso que Tchecov, Ibsen, Hauptmann estão ultrapassados por utilizarem a forma dramática em tensão com os temas sociais? Esse argumento só seria válido se colocarmos o chamado “teatro pós-dramático” como superação estética – apagando qualquer chama de pensamento dialético sobre os processos históricos ligados à arte. Além disso, acreditar em qualquer superação, sabendo que a esmagadora maioria da população brasileira nem mesmo sabe o que é a arte pós-dramática é um tanto narcísico. É preciso dizer que o drama não é esteticamente “inferior” em si. Podemos criticar o drama como sendo uma forma estética essencialmente burguesa, que reitera a ideologia dominante ao colocar um indivíduo com pleno poder de ação no centro da cena, em disputa dialógica com outros personagens. Se o Arena tensionou o drama, indo para além dele, isso aconteceu dentro da práxis teatral, pelo interesse em encenar conteúdos que a forma dramática não dava conta de comportar plenamente.
É injusto, portanto, afirmar que a estética e a temática do Arena tenham sido superadas pelos seus “limites”. O que vemos é precisamente o contrário: uma força temática e formal impressionantemente atual. Há que se dizer que, se foi superada historicamente, isso se deu, em grande parte, por questões políticas. Por isso, é fundamental que voltemos nossa atenção para esses textos, por sua coragem e vitalidade.
Por fim, é preciso dizer que o teatro brasileiro precisa reencontrar aquela coragem. Os anos de ditadura e neoliberalismo transformaram em tabu temas desde sempre caros às esquerdas, como a exploração do trabalho e a desigualdade. Amparados pela ideia de que a arte, quando fala de política, é menos arte, abandonamos discussões fundamentais para se pensar a nossa sociedade e a nossa vida. Se querem nos fazer acreditar que a politização da arte diminui o seu valor estético, gostaríamos de fazer o raciocínio inverso: tergiversar sobre esses assuntos fundamentais, com hermetismos e esteticismos, é um tipo de covardia. E essa covardia, certamente, é um subproduto da derrota da esquerda e da vitória da produção ideológica burguesa.
FOTO: Flávio Migliaccio e Milton Gonçalves na peça ‘Chapetuba Futebol Clube’, do Teatro de Arena. Foto: Hejo. Cedoc-Funarte
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