Rumo a um semibonapartismo reacionário? Alguns poucos parágrafos de conjecturas

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

 “Uma sala de parlamento tem hoje a mesma importância de um museu, [e] não há hoje um povo que não clame por um César.” (Francisco Campos, autor da Constituição de 1937)

O que esperar da combinação de um governo fascista com um regime democrático-blindado? A importante questão foi posta pela companheira e dirigente marxista Glória Trogo. Sua resposta exige uma cuidadosa reflexão, alimentada por pesquisa teórica, empírica e discussões coletivas. Por ora, pode-se, no máximo, tentar perceber algumas tendências presentes.

A “crise orgânica”, expressa pela perda de legitimidade e força dos partidos tradicionais da burguesia (com destaque para o PSDB), parece ter como um de seus resultados a formação de um futuro governo baseado na relação direta entre seus componentes e a “massa da burguesia”, dispensando as mediações partidárias habituais da política burguesa (e o PSL não é um partido orgânico da burguesia brasileira, estando mais apto a funcionar como tropa de choque do führer tropical). Como cogitou a própria Glória Trogo, há ainda a chance de que o governo fascista, ao invés de trabalhar pela recomposição partidária da burguesia, aja justamente em sentido contrário, procurando asfixiar de vez, talvez via lawfare e “combate à corrupção”, as tradicionais agremiações burguesas, contribuindo para uma reorganização partidária de sabor fascistizante, totalmente submissa a um Executivo arbitral e hipertrofiado.

Verifica-se, portanto, a possibilidade, já nos próximos meses, de uma autonomização relativa do aparelho governamental em face às próprias classes dominantes, as quais procurarão influenciar o governo a partir de relação diretas – não partidárias – com certos líderes do governo fascista, como Paulo Guedes. A ocupação de militares em postos-chaves do futuro governo (a começar pela Vice-presidência) e a criação de um superministério da Justiça, com a nomeação de Sérgio Moro para comandá-lo, indica a tendência tanto ao avanço do cesarismo togado, com a elaboração de uma legislação antiliberal que visa a enfraquecer certas garantias democráticas, assim como à intensificação da coerção por parte do aparelho estatal militarizado. Pode ser, é claro, que estas novas configurações governamentais e seus novos homens não desempenhem os papéis para os quais parecem servir plenamente, e para os quais parecem terem sido formatados e convocados. Os novos ministérios, fardados e togados, continuariam, assim, a operar dentro do arranjo institucional vigente até então, isto é, dentro dos marcos da democracia liberal-blindada. No entanto, a emergência de certos personagens políticos nos últimos anos na política brasileira, e os papéis assumidos por eles no desenrolar da trama, evidencia que no Brasil atual tudo parece ocorrer dentro de uma lógica extremamente funcional, tal qual nos textos de Tchékhov, onde nada parece ser supérfluo: “se em um conto aparece uma espingarda, ela tem que disparar”.

Nesse sentido, talvez não seja equivocado trabalhar com a possibilidade de surgimento, no próximo período, de um regime semibonapartista reacionário, dotado de uma linha econômica ultra neoliberal e localizado entre a decadente democracia liberal blindada a emergência de um regime político propriamente neofascista, o qual, a princípio, não parece ser necessário à classe dominante na atual correlação de forças da sociedade.

Um eventual avanço qualitativo da mobilização/organização das bases fascistas pequeno-burguesas e, portanto, da violência paraestatal por elas exercida (sempre tolerada pelo aparelho estatal, cuja violência, oficial, também tende a se exacerbar) significaria um elemento que pressionaria o semibonapartismo reacionário e ultra neoliberal a caminhar em direção a um regime neofascista propriamente dito. A dinâmica de todo esse processo aqui conjecturado, e trabalhado de modo meramente hipotético nestes poucos parágrafos, depende, é claro, da resistência oferecida pela classe trabalhadora e pelo conjunto dos setores explorados e oprimidos, com destaque para o movimento de mulheres – hoje, o mais avançado na perspectiva anti-Bolsonaro.

A despeito das hipóteses elencadas acima, o certo é que, pelo que hoje já se apresenta no cenário político nacional, torna-se urgentemente necessária a construção de uma Resistência Democrática, a qual deve ser impulsionada por uma Frente Única Antifascista enraizada nos locais de trabalho, escolas, universidades, sindicatos e comunidades periféricas. Não há tempo a perder. O futuro já começou. Eles não passarão. Nós passaremos.

Foto: EBC