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Quem nasceu primeiro? O “escola sem partido” e a eleição de Jair Bolsonaro

Por: Fernanda Moura*, do Rio de Janeiro, RJ
Lula Marques / Fotos Públicas

Neste domingo, 28 de outubro de 2018, logo após a notícia da eleição de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência da República, começou a circular nas redes a imagem postada pela deputada estadual recém-eleita por Santa Catarina Ana Caroline Campagnolo (PSL), em uma rede social, pedindo que alunos enviassem ao seu WhatsApp denúncias contra professores que comentassem negativamente a eleição de seu colega de partido. Professores com medo buscavam orientações sobre como reagir. Muitos dos comentários afirmavam que agora, após a eleição de Bolsonaro, começaria o “macarthismo” contra os professores. Ainda que seja evidente que a perseguição aos docentes será muito intensificada daqui para frente, é importante lembrar que a perseguição aos professores não está começando agora. Importante, inclusive, para que possamos começar a entender como o fascismo chegou ao poder no Brasil em 2018.

Muito antes de Bolsonaro ter qualquer chance de se tornar sequer candidato, a perseguição aos professores já vinha acontecendo. O Movimento Escola Sem Partido nasce em 2004, criado por Miguel Nagib, procurador do estado de São Paulo atuando em Brasília. Na mitografia de fundação do Escola Sem Partido, Nagib é apenas um pai extremamente preocupado com a “doutrinação” que sua filha teria sofrido na escola no ano anterior, quando seu professor de História teria comparado a trajetória de Che Guevara à de São Francisco de Assis.

Na história real, Nagib era membro do Instituto Liberal de Brasília e articulista do Instituto Millenium [1]. Em um dos artigos que escreveu para esse instituto [2], deixava claro que seu interesse não era combater a suposta “doutrinação” nas escolas, mas defender a difusão da ideologia neoliberal na educação brasileira.

Naquele momento, logo após a eleição de um governo de esquerda em que o Brasil vivia uma onda de otimismo com significativa melhoria das condições de vida, não havia espaço para o combate à “doutrinação esquerdista”; e o movimento permaneceu no ostracismo, apesar de grandes veículos de mídia terem tentado alçá-lo à posição de um movimento sério. Uma reportagem de capa da revista Veja, e um editorial do jornalista Ali Kamel, no jornal O Globo, foram responsáveis pelos únicos 15 minutos de fama que o ESP encontrou no período de 2004 a 2010.

Em 2011, no entanto, os grupos conservadores encontraram algo que dialogava muito mais com a maior parte da população brasileira do que a suposta doutrinação comunista: o material de combate à homofobia rotulado por esses grupos de “Kit Gay” [3] . Um dos principais responsáveis por espalhar versões fantasiosas sobre o material fora o então deputado Jair Bolsonaro. Desde então, a ideia de que a esquerda tentaria “transformar os estudantes em gays e lésbicas” dentro das escolas tem sido difundida na sociedade, principalmente em missas e cultos.

O combate à chamada “Ideologia de Gênero”, termo que surgiu dentro da Igreja Católica [4], foi absorvido pelas igrejas evangélicas e se tornou o principal mote da chamada “Bancada da Bíblia” no Congresso Nacional. Aqui, é relevante lembrar que a maioria dos propositores de PLs ESP são ligados ao fundamentalismo religioso [5], e que o discurso da “ideologia de gênero” vem sendo utilizado em mobilizações da direita em todo o mundo, principalmente na América Latina.

O tema voltou à tona em 2014 no processo de votação do novo Plano Nacional de Educação, na qual o espantalho da “ideologia de gênero” foi utilizado para desviar a atenção para as questões essenciais que circundavam o Plano, como: o próprio combate às desigualdades de gênero; o percentual do PIB destinado à educação; e a possibilidade do repasse de verbas públicas para a educação privada. Neste mesmo ano, o deputado estadual Flavio Bolsonaro (RJ) encomendou a Nagib um projeto de lei de censura aos professores que sugeriu batizar de Programa “Escola Sem Partido” (PL ESP). O deputado foi então o primeiro político a apresentar um PL ESP em uma casa legislativa, o que foi imediatamente copiado por seu irmão Carlos Bolsonaro, que o fez na Câmara de vereadores do Rio de Janeiro. Faz-se evidente a profunda ligação do Escola Sem Partido com a família Bolsonaro.

Importante lembrar que no ano anterior, durante as jornadas de junho, os jovens haviam tomado as ruas exigindo, dentre outras coisas, educação de qualidade. E, logo em seguida, os professores da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, ambos representados pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (SEPE-Rio), fizeram greves massivas, com enorme apoio popular, contra o desmonte da educação pública levado a cabo pelas medidas neoliberais implantadas pelas duplas Claudia Costin/Eduardo Paes e Wilson Risolia/Sergio Cabral, respectivamente. É possível então relacionar a criação dos PLs ESP a uma tentativa de cercear a luta dos professores do Rio de Janeiro pela educação pública.

Enquanto produziam seus ataques contra os professores, a família Bolsonaro construiu pra si a imagem de protetores das crianças e dos jovens frente aos seus temíveis professores “doutrinadores” que segundo eles “desvirtuam” a juventude com sua defesa do comunismo [6] e sexualização precoce. Essas ideias foram defendidas durante a eleição de 2014 e durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 no qual os grupos conservadores, dentre eles o clã Bolsonaro, votou “pela família”, “por Deus”, “pelo Escola Sem Partido” e “contra a Ideologia de Gênero”.

Esses grupos conservadores não se deram por satisfeitos com a saída do PT do governo. A ideia então difundida era a de que não teria bastado o impeachment, uma vez que o petismo supostamente continuaria operante na máquina pública devido ao “aparelhamento” supostamente conduzido pelo PT. [7] Assim, “o MEC” e os professores continuariam “petistas” e mantendo um plano da esquerda para destruir o capitalismo através do ensino da Ideologia de gênero, o que eles apresentam como sendo o famigerado “marxismo cultural”. Seria preciso então ir atrás destes professores. Foi através dessa narrativa de cruzada, promovendo pânico moral contra os professores, que o Movimento Escola Sem Partido cresceu e a família Bolsonaro pavimentou seu caminho rumo à presidência: vendendo a imagem de “defensores da família brasileira” contra o inimigo que eles mesmos inventaram.

O Escola Sem Partido e a família Bolsonaro se retroalimentam. Em 2016, já com mais de 50 PLs de censura espalhados em todo o Brasil, o ESP decidiu começar a influir mais abertamente nas eleições. Eu seu site, o movimento começou a compartilhar os santinhos de candidatos que assinaram o termo de compromisso com o movimento se comprometendo a propor ou a tocar os PLs ESP já apresentados em suas respectivas casas legislativas quando eleitos. Dentre os candidatos estavam obviamente membros da família Bolsonaro, representantes do Movimento Brasil Livre (MBL) e muitos fundamentalistas religiosos. Tendo eleito seus representantes, o ESP pôde se espalhar ainda mais por todo o país. No dia 15 de agosto de agosto de 2017, o MBL puxou um dia nacional de mobilização pelo Escola Sem Partido, e o ano fechou com um balanço de mais que o dobro de PLs ESP pelo Brasil.

Nestas eleições de 2018, com mais de 150 projetos ESP em todo Brasil e a crença de que há doutrinação de esquerda acontecendo nas unidades escolares difundida na sociedade, o ESP voltou a atuar abertamente sobre as eleições. Novamente muitos dos seus candidatos indicados foram eleitos. Uma delas foi a procuradora aposentada Bia Kicis, cunhada de Miguel Nagib, eleita deputada federal. Kicis era uma das líderes do movimento “Revoltados OnLine” ao lado de Marcelo Cristiano Reis e Alexandre Frota – este último também eleito como deputado estadual em São Paulo. Quem não se lembra quando, logo após a posse de Michel Temer, estes três foram o primeiro grupo a ser recebido pelo novo ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM). Evidentemente, o ESP foi um dos pontos da pauta do encontro, conforme os próprios admitiram em vídeo gravado na frente do ministério naquela ocasião.

Outra pessoa eleita pela máquina do ESP foi a já citada Ana Caroline Campagnolo. A professora de História da educação básica, que se tornou conhecida após ter movido (e perdido) um processo judicial contra sua ex-orientadora de mestrado, se tornou uma das principais militantes em defesa do ESP e foi convidada para difamar a conduta de seus colegas em inúmeras palestras e audiências públicas. Mesmo já tendo lecionando com a camiseta de seu candidato, Jair Bolsonaro, como denunciou um de seus ex-alunos, logo após a divulgação do resultado da eleição, forneceu seu celular para que alunos denunciassem seus professores “doutrinadores”. Vale lembrar que o jornal Gazeta do Povo, uma espécie de imprensa não oficial do Escola Sem Partido e da Família Bolsonaro, já havia aberto um canal para receber denúncias antes mas foi obrigado a recuar depois que vários professores começaram a se autodenunciar. Mesma estratégia que está sendo utilizada pelos professores alemães nesse momento de investida da extrema direita contra eles. [8] Importante destacar também que esse “disque-denúncia” para receber denúncias anônimas contra professores já está previsto no próprio PL. ESP[9] apresentado na Câmara pelo deputado Izalci Lucas.

Outros vários parlamentares foram eleitos com apoio do ESP para diferentes cargos espalhados por todos os estados brasileiros; mas aqui nos interessa particularmente o posicionamento do ESP quanto à presidência da república. Apesar de ter havido três candidatos que defendiam explicitamente a existência do Escola Sem Partido como lei – Bolsonaro, Henrique Meirelles e Cabo Daciolo (este último tendo inclusive apresentado um PL do tipo na Câmara logo antes de se licenciar para concorrer às eleições), apenas um entre eles era de fato o escolhido pelo movimento como sendo seu legítimo representante: Jair Bolsonaro.

Nos últimos dias, Bolsonaro tem anunciado fusões em ministérios essenciais e quem ocupará cada uma das pastas. O Ministério da Educação ainda permanece uma incógnita, mas dois novos nomes começaram a aparecer como tendo sido cogitados para o ministério: Miguel Nagib e Guilherme Schelb.  Ambos formados em direito, ambos procuradores (o primeiro do estado de São Paulo e o segundo da República), ambos defensores da ideia de que há doutrinação comunista nas escolas e que “ideologia de gênero” é uma ameaça real. Como Schelb ainda não havia aparecido nesta história, cabe aqui um parêntese: é ele o autor no modelo de notificação extrajudicial criado para que responsáveis ameacem professores, manual que é sempre difundido nas redes do Escola Sem Partido [10]; e, assim como Nagib, dá palestras em que difunde o pânico moral e o ódio aos professores.

Fica assim claro que, a partir deste momento, o Escola Sem Partido se tornou oficialmente uma política de Estado. Até então, em sua maior parte, os PLs ESP acabaram vetados pelo Poder Executivo ou derrubados pela Justiça (apenas uma minoria entrou em vigor); mas o discurso de ódio [11] difundido contra os professores já era suficiente para impedir que estes pudessem exercer sua liberdade de ensinar e garantir a liberdade de aprender dos alunos. Podemos imaginar o que acontecerá daqui para frente agora que este movimento chegou ao poder central.

Nos últimos anos, os professores da educação básica, além dos baixos salários e das condições precárias de trabalho, ainda tiveram que resistir à campanha de ódio da qual foram vítimas. Estes foram sistematicamente constrangidos, difamados, assediados, perseguidos, demitidos, agredidos e ameaçados de espancamento, tortura, estupro e de morte. A tendência é que tudo isso se intensifique.

Urge repetir o movimento que fizemos na última semana das eleições de dialogar com a população sobre quem é Bolsonaro. Precisamos retornar as ruas para explicar que ideologia de gênero não existe [12], que não existe doutrinação comunista nas escolas e que professores não são inimigos. Não será possível luta política nesse país sem combate ao discurso do Escola Sem Partido. Até lá, sindicatos, movimentos sociais, associações acadêmicas, grupos de pesquisa e instituições de ensino precisam criar uma rede de apoio e solidariedade em torno dos professores, principalmente os da educação básica, sempre os mais vulneráveis a toda sorte de ataques.

*Fernanda Moura é professora de História da rede pública de educação básica e integra o coletivo Professores Contra o Escola Sem Partido.
Foto:  Lula Marques / Fotos Públicas

NOTAS

1 – PENNA, Fernando e SALLES, Diogo da Costa.  A dupla certidão de nascimento do Escola Sem Partido: analisando as referências intelectuais de uma retórica reacionária. In: Arquivos, documentos e ensino de história: desafios contemporâneos. MUNIZ e LEAL (orgs.). Fortaleza: EdUECE, 2017.
2 – https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com/2016/06/03/a-ideologia-do-escola-sem-partido/
3 – MOURA, Fernanda e SALLES, Diogo da Costa. O Escola sem Partido e o ódio aos professores que formam crianças (des)viadasRevista Periódicus, n. 9, vol. 1, maio-out. 2018.
4 – JUNQUEIRA, Rogério D. “Ideologia de gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária – ou: a promoção dos direitos humanos se tornou uma “ameaça à família natural”? In: Ribeiro, Paula R. C.; Magalhães, Joanalira C. (orgs.). Debates contemporaneoseducacao para a sexualidade. Rio Grande, RS, Ed. da FURG, 2017, pp. 25-52. (livro completo no link)
5 – MOURA, F. P. de. “Escola Sem Partido”: relações entre Estado, educação e religião e os impactos no ensino de história. 189 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino de História) Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
6 – https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com/2018/10/05/o-espantalho-da-doutrinacao-comunista-no-brasil-ontem-e-hoje/
7 – CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 1.859/2015. Acrescenta Parágrafo único ao artigo 3º da Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) – Apensado ao PL 7180/2014. Brasília: 10 jun. 2015d. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1346799&filename=PL+1859/2015>. Acesso em: 18 out. 2016.
8 – https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com/2018/10/29/como-professores-alemaes-combatem-as-tentativas-de-censura-da-extrema-direita/
9 – CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 867 de 2015. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1317168.pdf. Acesso em: 28/10/2016.
10 – http://www.deolhonosplanos.org.br/pfdc-inconstitucional-notificacao-genero/
11 – PENNA, Fernando. “O ódio aos professores”. In: AÇÃO EDUCATIVA (org.) A ideologia do Movimento Escola Sem Partido – 20 autores desmontam o discurso. São Paulo: Ação Educativa, 2016.
12 – https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com/2018/10/19/nao-existe-ideologia-de-genero/

 

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