O jornalista do The Washington Post Jamal Khashoggi encontrava-se desaparecido desde o dia 2 de outubro. Nessa data ele entrou no Consulado da Arábia Saudita em Istambul, Turquia, para solicitar um certificado de estado civil, necessário para seu casamento com uma cidadã turca, Hatice Cengiz. Após sete horas e meia sem notícias de seu noivo, Cengiz informou à polícia turca, que iniciou a investigação sobre o desaparecimento. Natural da Arábia Saudita, o jornalista era neto de turcos.
Na terça-feira, 16 de outubro, uma autoridade turca afirmou que investigadores encontraram evidências de que o jornalista havia sido assassinado no próprio consulado, em uma ação envolvendo um grupo de agentes sauditas que chegaram à Turquia no mesmo dia do seu desaparecimento. Fontes citadas pela rede de televisão CNN informaram que este grupo foi coordenado por um oficial da Agência de Inteligência Presidencial muito próximo do círculo do príncipe herdeiro Mohammed Bin Salman (MBS). A Agência é o principal serviço de Inteligência da Arábia Saudita.
Jamal fugiu da Arábia em julho devido à perseguição que sofreu do regime por suas reportagens críticas ao governo saudita, com destaque às matérias sobre a participação do país na Guerra do Iêmen. Ele mudou-se para os EUA e tornou-se colunista do The Washington Post.
No dia 17 de outubro, o jornal turco Yeni Safak revelou gravações da passagem do jornalista pelo consulado saudita. Segundo essas gravações, Khashoggi foi ameaçado e interrogado, torturado e depois decapitado.
Repercussões internacionais
Tentando controlar uma crise diplomática potencial, Trump enviou seu secretário de Estado, Mike Pompeo, a Riad, no dia 17 de outubro. Em um primeiro momento, Trump afirmou que o rei Salman negou “firmemente” saber o que aconteceu com o jornalista, assim como seu paradeiro. Trump declarou que “Ele (o rei) não sabia realmente. Talvez, não quero entrar na sua cabeça, mas para mim soou que talvez possam ter sido assassinos sem escrúpulos. Quero dizer, sabe-se lá”.
Trump vem resistindo às pressões do Congresso para impor sanções ao reino saudita, alegando que restringir-lhes a venda de armas seria contraproducente. Qualificou as relações com o reino saudita como “excelentes”. Recordemos que Riad foi primeira capital que ele visitou como presidente.
Mas no último final de semana, Trump ameaçou pela primeira vez impor um “castigo severo” ao país se ele for responsável pela morte do jornalista. Riad simplesmente respondeu que contra-atacaria com uma “maior ação”, chamando a atenção dos EUA sobre sua importância geopolítica e energética. A Arábia Saudita tem sido um contrapeso ao Irã e o principal aliado dos EUA no mundo árabe.
Antes da ameaça, Trump explicava a importância das relações comerciais entre os países ao declarar que “[Os sauditas] gastam 110 bilhões de dólares [416 bilhões de reais] comprando nosso equipamento militar e outras coisas. Se nós não o vendermos a eles, dirão ‘muito obrigado, vamos comprar da Rússia ou da China’. Isso não nos ajudaria quanto aos postos de trabalho e às encomendas que nossas empresas perderiam”.
No dia 18 de outubro, o jornalWashington Postpublicou seu último artigo, onde ele defende a liberdade de imprensa. Seu título é “O que o mundo árabe mais necessita: Liberdade de Expressão”[1]
A verdade revelada
No dia 20 de outubro, as autoridades árabes reconheceram que a morte do jornalista ocorreu dentro do seu consulado, mas alegaram que esta resultou de uma discussão no interior do local, entre o jornalista e indivíduos não identificados pelas autoridades, e não uma execução planejada.
Contrariando essa versão, a emissora britânica de TV Sky News revelou no dia 23 de outubro que partes do corpo “esquartejado” do jornalista saudita foram encontradas na casa do cônsul árabe, onde ele teria sido enterrado. O presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, discursou no parlamento qualificando o ocorrido como um “assassinato selvagem e planejado”.
Suas fontes seriam policiais turcos, que disseram à agência Reuters que 15 agentes sauditas, entre eles um perito forense, chegaram a Istambul em dois aviões no dia em que Khashoggi foi ao consulado e partiram do país à noite. A já citada gravação de áudio revelaria que ele foi torturado e assassinado. Segundo o jornal turco Yeni Safak, Khashoggi “teve os dedos da mão cortados” enquanto ainda estava vivo e, finalmente, foi “degolado”.
Essa operação teria sido dirigida por Salah Mohamed al Tubaigy, um especialista forense da Direção Geral de Segurança saudita. Na gravação, ainda segundo o jornal turco, ouve-se o cônsul saudita, Mohamed al Otaibi, queixar-se do que estava acontecendo: “Façam isto em outro lugar. Vocês vão me arrumar problemas”. O legista Salah Mohamed al Tubaigy então responde: “Se quiser continuar vivo quando voltar para a Arábia Saudita, fique quieto”.
Khashoggi teria suportado com vida sete minutos de tortura. Depois, o legista começou a despedaçar o corpo enquanto escutava música com fones de ouvido. “Quando faço este trabalho, escuto música. Vocês deveriam fazer o mesmo”, diz Tubaigy aos colegas na gravação, segundo o Middle East Eye (MEE), um veículo próximo ao Governo do Qatar.
O motivo da Turquia não divulgar a gravação, que seria uma prova irrefutável da execução, deve-se a que a mesma teria sido obtida de forma ilegal, provavelmente através de microfones escondidos ou utilizando algum funcionário saudita como agente duplo dos serviços secretos turcos, o que viola a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. Esta estabelece a inviolabilidade de consulados e embaixadas e proíbe a polícia turca de realizar buscas no consulado sem autorização do governo saudita. Este as liberou somente duas semanas depois do desaparecimento de Khashoggi, e depois de numerosas negociações entre Ancara e Riad.
União Europeia e ONU exigem medidas
A chanceler alemã, Angela Merkel, e o ministro do Exterior do país, Heiko Maas, condenaram veementemente a morte de Khashoggi através de uma declaração conjunta em que afirmavam que “Esperamos transparência da Arábia Saudita quanto às circunstâncias da morte” (…) “Os responsáveis devem ser responsabilizados. As informações dadas sobre o ocorrido no consulado em Istambul não são suficientes.”
Maas ainda colocou em questão a venda de armas para a Arábia Saudita. “Enquanto as investigações estiverem em curso, enquanto não soubermos o que aconteceu, não há base para alcançar decisões positivas sobre a exportação de armas para a Arábia Saudita”, disse à emissora ARD. Angela Merkel ratificou a declaração em entrevista coletiva. Segundo a Reuters, afirmou que “Com relação às exportações de armas para a Arábia Saudita, elas não podem ocorrer nas atuais circunstâncias”.
Riad é o segundo maior cliente da indústria de defesa alemã, depois da Argélia. Até 30 de setembro de 2018, as exportações atingiram o valor de 416,4 milhões de euros.
A chefe da diplomacia da União Europeia (UE), Frederica Herminismo, declarou que “Reforçamos nosso compromisso com a liberdade de imprensa e a proteção de jornalistas no mundo todo” e cobrou “explicações razoáveis” sobre as circunstâncias da morte, fruto de uma “violação chocante” da convenção de Viena de 1963 sobre relações consulares. Se a convenção proíbe investigações nos consulados, também estabelece como quebra de protocolo que se realizem execuções extrajudiciais nos mesmos.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu uma investigação adequada e que os culpados sejam responsabilizados.
Vários meios de comunicação norte-americanos publicaram nesta semana que a Arábia Saudita poderia reconhecer o crime, mas atribuindo-o a elementos “incontrolados” dentro dos serviços secretos, que teriam agido sem o conhecimento da cúpula saudita. A diplomacia norte-americana também parece trabalhar neste sentido. Por mais improvável e inverossímil que seja a versão, ela oficialmente poupa o príncipe saudita de responder pela bárbara execução. Os sauditas devem fazer um relatório sobre a morte de Jamal Khashoggi, cuja conclusão seria que ela foi resultado de um interrogatório que teria “dado errado” em uma operação realizada “sem autorização e transparência”, e garantindo que os envolvidos “serão acusados”.
Nesse sentido, o rei Salman determinou ao Ministério Público saudita que abra uma “investigação interna” sobre o desaparecimento de Khashoggi, com base na informação a ser obtida pela equipe árabe enviada a Istambul, disse uma fonte do governo saudita à agência Reuters.
Negócios prejudicados
As relações políticas entre a Turquia e Arábia Saudita vem se deteriorando nos últimos anos, mas os laços econômicos permanecem fortes. A Arábia Saudita é um importante mercado para as exportações turcas e numerosas empreiteiras da Turquia atuam no reino. Além disso, muitos empresários sauditas investiram na Turquia em empresas e imóveis e cerca demeio milhão de turistas sauditas visitam anualmente o país euroasiático, principalmente a região do mar Negro.
Mas a repercussão do caso fez com que várias empresas privadas adotassem medidas de represália. Representantes de Viacom, The New York Times, The Economist, CNBC, Financial Times e Bloomberg anunciaram que sua retirada da conferência de investidores Future Investment Initiative, também chamada de “Davos do deserto”. Somaram-se ainda Uber, Viacom, Ford, JP Morgan, BlackRock e Blackstone e Virgin. Esta última anunciou a suspensão das negociações sobre o investimento de 1 bilhão de dólares (3,8 bilhões de reais) na Arábia Saudita. Um comunicado do seu proprietário Richard Branson afirmava que a comprovação da execução mudaria completamente a capacidade de qualquer ocidental de realizar negócios na Arábia Saudita.
O caso também levou a empresa de consultoria norte-americana The Harbour Group a anunciar o fim de seu trabalho de assessoria para Riad. Esse é o golpe mais duro no reino árabe, que tenta ao mesmo tempo controlar o estado com mão de ferro e apresentar-se a investidores do ocidente como um paraíso para investimentos lucrativos.
Relações hipócritas e inescrupulosas
O que essa tragédia revela ao mundo não era novidade. Todo mundo que mantinha relações políticas ou negócios com a Arábia Saudita sabia (e sabe) o papel criminoso e reacionário que a sua monarquia cumpre no Oriente Médio. Mas todo mundo sempre fez vistas grossas. Este fato torna as inúmeras declarações de autoridades ou empresas um possível jogo de cena para parecer que pressionam Riad rumo a uma solução da crise, ainda que todas as evidências apontem ao príncipe herdeiro do trono, que está preventivamente poupado das declarações oficiais sobre as investigações.
Há décadas a Arábia Saudita é a maior produtora de petróleo do mundo e possui uma das mais importantes reservas do planeta. Por isso é, também, o país mais poderoso entre os países árabes, sendo seu centro financeiro, apesar de sua força militar não acompanhar esse poderio na mesma proporção.
Não por acaso, após tomar posse, o primeiro giro internacional de Trump incluiu a visita à Arábia Saudita visando reforçar suas relações e acordos com o reino. Pouco depois, a Arábia Saudita decretou um boicote aos Emirados do Qatar por suas relações com o Irã. Em seguida, tentando superar as dificuldades econômicas provocadas pela queda do preço do petróleo, o novo e ambicioso príncipe herdeiro, Mohamed bin Salman (MBS) lançou um pacote econômico e uma ofensiva política interna disfarçada de luta contra a corrupção para concentrar ainda mais poderes em suas mãos. Mais de 200 pessoas foram presas, incluindo ministros e/ou bilionários, dentre eles 11 príncipes da família real e o homem mais rico do mundo árabe, Bin Talal Bin Abdulaziz Al Saud, além do irmão de Bin Laden, dono de uma das maiores empresas de construção civil do país.
Ato seguido, forçou a renúncia do primeiro-ministro do Líbano, o milionário Hariri, quando de uma viagem de emergência a Riad, a convite do rei Salman. Seu crime teria sido o de liderar uma coalizão de governo da qual faz parte importante o Hezbolah, aliado do Irã, o que é intolerável para os sauditas neste momento. A seguir, o chefe do governo libanês permaneceu em Riad, sem se que saiba ao certo sua condição (prisioneiro ou “convidado” do regime) e o governo saudita ordenou que seus cidadãos no Líbano abandonassem imediatamente aquele país.
Sob a liderança de MBS, a Arábia Saudita intervém desde 2015 na guerra civil no Iêmen, o país mais populoso e miserável da Península Arábica, contra uma facção apoiada pelos iranianos. Dois anos depois já tinha resultado em mais de dez mil mortos, dezenas de milhares de feridos, milhões de refugiados e deslocados, toda essa barbárie patrocinada por Riad ao custo de quase 200 bilhões de dólares.
Apesar disso tudo, as relações das grandes empresas e dos países imperialistas com a Arábia Saudita eram “normais”. É verdade que o assassinato de Jamal Koshoggi gerou toda ordem de protestos e abriu uma séria crise diplomática. Mas revelou principalmente a hipocrisia do discurso das potências imperialistas sobre a “democracia”, a “paz”, e a liberdade de expressão e imprensa. Ela mostrou que o que vale mesmo são os interesses econômicos que ditam toda ordem de relações inescrupulosas. Assim é o mundo capitalista.
[1] https://www.washingtonpost.com/opinions/global-opinions/jamal-khashoggi-what-the-arab-world-needs-most-is-free-expression/2018/10/17/adfc8c44-d21d-11e8-8c22-fa2ef74bd6d6_story.html?fbclid=IwAR3V83Rp6S6fzb_LGHZEbmZ3oV6qDAUf65wnVwjVAl-GXhJ8OnhDHfLxQOY&noredirect=on&utm_term=.af72e3f3ad7a
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