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As eleições do Golpe (ou o Golpe das eleições): da democracia blindada à democracia dos blindados

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Quem me dera acreditar

Que não acontece nada

De tanto brincar com fogo

Que venha o fogo então”

(Renato Russo, em Fábrica)

Ao atingir seu ápice, retirando progressivamente direitos, a democracia blindada brasileira, cada vez mais apartada do povo, minou sua própria legitimidade social e, portando, perdeu sua funcionalidade ao capital enquanto forma de dominação política. Assim, em seu fastígio, o regime vigente criou as condições para a sua própria queda, que agora se avizinha, ou pelo menos se coloca como uma possibilidade concreta.

Por um lado, desde o Golpe de 2016, a democracia blindada, ao levar ao paroxismo seu conteúdo contrarreformista, isto é, ao se lançar de modo inclemente sobre as conquistas sociais da Constituição de 1988, foi impelida a sustar, também, uma série de direitos civis e democráticos, a suspender uma gama de liberdades as quais compunham boa parte do sustentáculo consensual do regime. O ativismo arbitrário dos procuradores e juízes, em parceria com a grande imprensa e sob a crescente tutela militar, foi fundamental para que os interesses do capital fossem rapidamente atendidos num contexto de crise econômica e política.

Na medida em que as liberdades eram cerceadas, fortaleceu-se o outro sustentáculo do regime, o da força. Depois que o sufrágio universal de 2014 foi cassado, as manifestações contra Temer foram praticamente proibidas pelas bombas e balas de borracha, a liberdade de opinião de docentes (e mesmo de reitores universitários) passou a ser uma liberdade vigiada, Marielle foi executada, Lula foi preso, e os homens de toga e os de farda passaram a decidir, com as pesquisas de opinião na mão, quem poderia ou não participar do processo eleitoral. Parafraseando Dostoiévski, é como se, por Deus estar morto, tudo fosse possível, até mesmo um juiz de primeira instância orientar a polícia federal a descumprir uma decisão de soltura do então candidato petista expedida por uma instância superior – no que foi plenamente atendido. Assim, ao fazer o que tinha que fazer, isto é, ao avançar na instalação do que seria, a priori, “apenas” um Estado liberal sem direitos sociais, a democracia blindada brasileira foi obrigada a desenvolver seus componentes bonapartistas, a fortalecer o poder dos togados e blindados em detrimento do poder dos políticos eleitos, a tonificar sua musculatura autocrática com anabolizantes forenses e castrenses, o que faz como que, agora, ela própria se metamorfoseie celeremente em um Estado autoritário sem direitos de qualquer espécie. Das entranhas da democracia liberal blindada parece nascer uma democracia dos togados, ou mesmo uma democracia dos blindados.

Por outro lado, precisamente por acelerar bruscamente nos últimos dois anos a ofensiva contra os direitos sociais e impor uma austeridade sem precedentes, aumentando o desemprego, a violência, desagregação social e levando as condições de vida dos trabalhadores a um estado próximo ao da indigência, a democracia blindada cortou praticamente qualquer lastro, qualquer mediação minimamente representativa, com as massas populares. Para estas, o regime político democrático-blindado passou a ser visto como não mais do que um monopólio de um bando de rapaces e corruptos, interessados apenas em suas próprias fortunas, libações e orgias financeiras. Deste modo, sua eficácia enquanto forma de gestão política da exploração social declinou de um modo que parece irreversível, já que não só o Rei está nu, como todos os súditos enxergam sua nudez. No entanto, como é de hábito em tempos conservadores, quando as ideias socialistas não encontram capilaridade no tecido social e a consciência dos subalternos se encontra por demais rebaixada, a aparência da coisa foi tomada como a essência da própria coisa, o que é nesta apenas epidérmico e superficial foi, erroneamente, visto como central e determinante, e a visão do corpo nu não pôde ir além da própria nudez, tal qual a mera visão das árvores impede a observação do bosque. Por meio da ideologia anticorrupção, o conteúdo de classe, burguês, da própria corrupção foi (e é) obnubilado, e seus praticantes, ao invés de serem vistos pelas massas como políticos corruptos que, a serviço da burguesia, retiram direitos, foram (e são) enxergados como simples e autônomos corruptos, cujos atos ilegais – e não os legais, a retirada de direitos e o ajuste fiscal – seriam os principais responsáveis pela atroz degradação das condições de vida do povo.

Tudo isso criou as condições para que o fascismo, que se desenvolvia desde o segundo governo Dilma como expressão do “temor da proletarização” nutrido pelos setores médios conservadores hostis às políticas sociais focalizadas e afirmativas, ultrapassasse as fronteiras pequeno-burguesas e alcançasse eleitoralmente uma expressão de massas. Acobertado, financiado e, finalmente, invocado por uma burguesia disposta a tudo para remover o Partido dos Trabalhadores do poder, o fascismo, nas condições de crise da democracia blindada, adquiriu vida própria e quer continuar o seu serviço para o capital, mas agora à sua maneira, ao seu próprio modo, que é cruento e religioso, embora nada tenha de cristão. Se Temer, desacreditado perante às massas e rejeitado por fortes manifestações de trabalhadores no primeiro semestre de 2017, não conseguiu, mesmo apelando para todo o fisiologismo e compra de votos, aprovar a totalidade da plataforma contrarreformista (incluindo a contrarreforma da Previdência), o fascismo acena ao capital com a possibilidade de fazê-lo, livrando-se, mesmo que não formalmente, de todas as peias democrático-parlamentares. Ávida por lucros fáceis e vultosos, politicamente dividida, desprovida de quadros com legitimidade social e irracionalmente antipetista, a nossa estouvada burguesia é quem parece, agora, estar encoleirada pelos cachorros que soltou, se dobrando de joelhos diante da culatra do fuzil de generais torturadores, se submetendo às decisões dos seus próprios juízes casuísticos, e, por fim, docemente se curvando ao pusilânime führer das arruinadas, semiletradas, antipopulares e histéricas classes médias.

É neste contexto que se realizará o segundo turno das eleições mais farsescas da história da Nova República. Apenas o PT foi identificado com a corrupção pela grande imprensa. Apenas o PT teve seus dirigentes e estrategistas presos pelo Judiciário bonapartista. Apenas Lula foi impedido de concorrer para não vencer, e apenas ele foi preso para não fazer outro candidato vitorioso. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nada fez e faz sobre as fake news do candidato fascista, da mesma maneira que o Estado supostamente laico nada fez e faz a respeito de prestidigitadores religiosos que, como bons vendilhões, compram e vendem votos dentro de seus diabólicos templos. O TSE nada fez e faz sobre as entrevistas concedidas pelo candidato fascista a certas emissoras, que não cumpriram a regra de entrevistar os demais candidatos, e provavelmente nada fará para que a lei seja aplicada aos declarados inimigos da lei, para que os ritos democráticos sejam cumpridos pelos que bradam contra a democracia. Diversos crimes civis e eleitorais do candidato fascista foram e são ignorados pela Justiça, cuja conveniente ignorância é, por sua vez, ignorada pela grande mídia do capital, responsável também por diariamente ofuscar ou minimizar as agressões e torturas cometidas pelos bandos fascistas. Com base em atestados médicos falsos, fornecidos por clínicos cujo apreço à ciência e à vida é tão verdadeiro como as prescrições de um curandeiro, o candidato fascista se recusa a ir aos debates, e as emissoras de televisão, complacentes, se recusam a dar voz ao candidato que aceita comparecer. Em resumo: realizada sob o controle dos golpistas vitoriosos em 2016, as eleições de 2018 não poderiam ser diferentes do que hoje se revelam ser, isto é, uma completa farsa.

Se depender da Casa Grande, o que nos espera no dia 28 deste mês é a consumação de uma fraude que, coonestada, promoverá uma barbárie institucionalizada, quando, lembrando Goethe, a razão será substituída pela insensatez e a praga será vista como benção, quando se formalizará uma caça às bruxas na qual serão os bruxos e demais profetas irracionais os caçadores de pessoas e livros, e quando a farsa, finalmente, será proclamada verdadeira. À grande imprensa, claro, caberá apresentar a lama como límpidas águas, e as trevas como se fossem brilhantes raios de sol. Nesses poucos dias que restam para o caos anunciado, cabe a todos os que defendem a vida e a liberdade convencer o máximo de gente possível a votar em Haddad, e, ao mesmo tempo, denunciar o processo farsesco que estamos vivendo, no qual a autêntica liberdade já foi, há muito, suprimida. Não há nenhuma contradição entre ambas as posturas. Derrotar Bolsonaro nas urnas é derrotar o Golpe em seu quintal, é derrotar os golpistas em sua nova casa, é derrotar a besta ditatorial em seu “democrático” covil, é derrotar o demônio lançando mão do fogo das profundezas do inferno. Devemos votar 13 não para salvar a democracia blindada, não em defesa desse falido e decrépito regime falsamente democrático que pavimentou o caminho para o fascismo, e sim pela manutenção das poucas liberdades democráticas que ele ainda contém, o que nos dará alguma chance de seguir lutando por uma democracia com mais direitos, a qual o obsceno capitalismo periférico brasileiro nunca pôde e jamais poderá suportar.

Imagem: Inferno de Dante