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MUNDO

Síria: Idlib luta contra a ofensiva final

Por: Gabriel Santos, de Alagoas, Maceió

O regime sírio está decidido a terminar de reconquistar todo território que perdeu para grupos rebeldes ao longo da guerra civil. Com a ajuda dos bombardeios russos e das tropas iranianas, o governo de Bashar al-Assad tem tido importantes vitórias, conquistando territórios que estavam fora de seu controle, como ocorreu este ano com Guta oriental e Deraa. Agora, durante as últimas semanas, vem discutindo uma ofensiva sobre a região de Idlib, que é a última província que ainda se mantém fora de seu controle. Ela faz fronteira com a Turquia e, por isso, tem um papel fundamental na disputa geopolítica da área.

Na região de Idlib vivem três milhões de pessoas, sendo que cerca de um milhão e meio vieram de outros lugares do país por conta da guerra, em sua maioria de cidades que foram reconquistadas pelo regime sírio, como Aleppo, Homs, Deraa e Darraya.

O levante em Idlib foi iniciado em 2011, durante a primavera árabe, portanto, há 7 anos atrás. As manifestações contrárias ao governo de al-Assad protestavam contra o desemprego, o aumento do custo de vida e a falta de serviços básicos. Os protestos cresceram ao ponto de se tornar um conflito armado entre os opositores e o governo. A entrada de grupos jihadistas e potencias estrangeiras no conflito – a favor e contra o governo – distorceram o sentido do levante popular. Hoje a Síria é um país que foi devastado por uma longa guerra civil. Forças nacionalistas, islamitas, jihadistas, laicas e democráticas se confrontam em uma guerra que já deixou mais de 600 mil mortos e seis milhões de refugiados em outros países, naquilo que a ONU descreve como a maior catástrofe humanitária do século XXI. Só a Turquia recebeu 3,7 milhões de imigrantes sírios, mais do que toda a União Europeia.

A entrada de forças estrangeiras no conflito praticamente decidiu a guerra a favor do regime de al-Assad. O papel da força aérea russa impediu sua derrota em 2015, sendo crucial para impor uma vitória contra o Estado Islâmico. Tropas iranianas, aliadas ao regime também tiveram um grande peso no confronto.

O interesse turco
No ano passado, Rússia, Turquia e Irã afirmaram que em Idlib o clima de confronto armado estava sendo superado e que a região seria uma “zona de desescalada”. Essa definição servia aos interesses da Turquia na região (https://www.aljazeera.com/indepth/features/turkey-idlib-180924191442969.html), na medida em que, por um lado, mantém os curdos que vivem na Síria longe de suas fronteiras, sem precisar abrigá-los como refugiados e, por outro, mantém afastado das mesmas o regime de al-Assad.

O governo turco apoiou grupos militares contra o governo sírio, ajudando na unificação de alguns destes grupos que vieram a se transformar na Frente de Libertação Nacional Síria. Os interesses da Turquia não é somente combater e se opor ao regime de al-Assad, mas também a grupos jihadistas opositores ao próprio regime que podem vir a ameaçar futuramente o controle dessa região fronteiriça do país. Um desses grupos é o Hayat Tahrir al-Sham (HTS), uma vertente da Al-Qaeda que atua na fronteira da região de Idlib com a Turquia. O combate a este grupo também é importante para o regime de Ancara.

O argumento questionável de Assad
Durante todo este mês de setembro parecia que o clima era de que uma investida por parte da Rússia, Irã e o governo sírio sobre Idlib seria inevitável. A justificativa para atacar a região é que 60% da província seria controlada por jihadistas do HTS através de uma força de 10 mil combatentes.

É verdade que existe uma atuação do HTS na região de Idlib, mas os números apontados pelo regime e a caracterização sobre a província são duvidosos. O argumento de que territórios opositores são controlados por forças jihadistas já foi usado por al-Assad em diversos momentos para legitimar massacres de cidades, populações inocentes, enquanto a comunidade internacional fazia vistas grossas.

A província de Idlib em 2012 conseguiu se libertar do controle do regime sírio. Rádios e jornais independentes começaram a surgir, até que em torno de 150 conselhos locais de base foram criados para administrar a região, incluindo os serviços básicos da província. Foi criado até mesmo um centro de mulheres voltado à sua inserção na política e na obtenção de renda para sua autonomia financeira.

Entretanto, a transformação do conflito em guerra civil fez com que o HTS, aproveitando-se do sentimento anti-regime, começasse a ganhar membros na região, em especial após a reconquista de Aleppo por parte do regime em 2016. Grupos locais laicos e a população se colocaram contrários as forças do HTS e as leis da Sharia que estes queriam impor. Mas o HTS terminou conseguindo fechar os jornais independentes, assim como também acabou com grande parte dos conselhos criados. Muitos destes emitiram declarações rechaçando a as leis e a suposta “autoridade” do HTS. Manifestações públicas contra o grupo jihadista tomou conta de diversas cidades da província. Em algumas delas a bandeira do grupo jihadista foi substituída pela bandeira da rebelião. Assim, argumentar que a região é controlada pelo HTS é excluir o processo de resistência que existe na província, apagando o papel de grupos políticos democráticos que atuam na região com um grande respaldo popular.

O drama de Idlib e as alternativas das forças intervencionistas
O anuncio da possível intervenção militar do regime sírio em Idlib, com razão, deixou a população local preocupada e revoltosa. As ações de reconquistas realizadas pelas forças de al-Assad são muitas vezes brutais. Em Guta e Daara, foram feitos relatos de que homens eram obrigados a se alistar a servir ao exército do regime. Muitos cidadãos tiveram que assinar documentos se comprometendo a nunca mais participar de protestos ou atividades contra o governo. Sem falar nas mortes de civis, ditas como “efeito colateral da guerra”.

A situação de Idlib como último rincão dos refugiados, fará com que a batalha por sua reconquista seja ainda mais violenta que a de regiões e cidades anteriores. Seria um conflito na fronteira turca em que as forças do regime, opositoras e jihadistas estariam guerreando no mesmo espaço.

Uma das mais sérias consequências da intervenção do regime caso consiga retomar Idlib, seria a destruição por completo de toda e qualquer instrumento democrático que os sírios conseguiram desenvolver durante os anos de guerra civil. O ativismo laico e suas conquistas organizativas seriam esmagados de forma a que al-Assad terminaria o trabalho que o HTS começou a realizar. Certamente esse quadro gerará uma nova onda de refugiados e pode fortalecer ainda mais o terrorismo religioso.

Os sérios riscos e consequências de uma ação militar levou a que outras alternativas fossem examinadas pelo Irã, Rússia e Turquia (https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/sep/11/the-guardian-view-on-idlib-nowhere-left-to-go ). Os dois primeiros rejeitaram as tentativas de Erdogan para intermediar um cessar-fogo. Já o governo Putin chegou a descrever Idlib como algo que “precisa ser liquidado”. Não por acaso, em ações realizadas durante o início do mês na região, quatro instalações médicas foram bombardeadas.

Um acordo protelatório e seus motivos
Porém, depois de algumas semanas de uma retórica beligerante por parte de Teerã, Moscou e Damasco, uma cúpula ocorrida no final de semana retrasada na cidade russa de Sochi terminou de forma surpreendente (https://www.theguardian.com/world/2018/sep/17/russia-and-turkey-to-set-up-idlib-buffer-zone-to-protect-civilians ).

Os governos da Turquia e Rússia anunciaram na segunda-feira (17), um acordo em que zonas de 15 a 20 quilômetros ao longo das fronteiras da província de Idlib estariam a salvo de ataques aéreos por parte das forças sírias e russas até o dia 15 de outubro, quando então a situação na região passaria a ser novamente examinada. O acordo selou também que armas pesadas como tanques, morteiros e artilharia serão retiradas da zona até o dia 10 de outubro. Tal decisão acalmou os temores de uma catástrofe humanitária, embora também permita uma sobrevida aos grupos rebeldes e aos jihadistas (https://www.theguardian.com/world/2018/sep/18/surprise-truce-brokered-by-turkey-and-russia-spares-idlib-for-now ).

Alguns motivos para a não realização imediata do ataque vão além da preocupação com a crise humanitária. Até porque sabe-se que o regime Sírio não tem nenhuma preocupação com liberdades democráticas ou princípios humanitários básicos. Um dos verdadeiros motivos seria a recusa do Irã em participar do ataque sob a coordenação das forças sírias e russas.

As tropas iranianas dominam os confrontos por terra, enquanto os russos controlam os céus sírios. As tropas iranianas têm um papel fundamental na reconquista de Aleppo e na retomada do regime sírio de diversas cidades. Mas o país persa atravessa neste momento uma forte crise econômica e política, o que está fazendo com que Teerã tenha se voltado mais para tentar solucionar seus problemas internos. Já o regime de al-Assad não tem força militar para retomar sozinho uma província do tamanho e da importância de Idlib. Além de combater os grupos jihadistas como o HTS, o regime terá que se enfrentar com milhares de civis revoltosos que vão se opor a ação.

O acordo, assim como a não participação do governo sírio no mesmo, fortalece o papel da Turquia que, ao lado dos grupos rebeldes, foi o principal vencedor desta última rodada de negociações e ameaças. O regime de Ancara tende a cada vez mais se consolidar como uma força política atuante na região norte da Síria, o que concede a Erdogan mais força nas negociações e no papel que exerce para os rumos do conflito.

O futuro de Assad e a força da resistência em Idlib
A cúpula de Helsinque, capital da Finlândia, realizada em julho deste ano entre Donald Trump e Vladimir Putin, acordou o fim guerra civil na Síria e o afastamento das tropas iranianas das fronteiras com Israel, indicando que o mandato de Bashar al-Assad seria finalmente aceito pelos EUA. A derrubada do regime de al-Assad e a mudança do mesmo através de uma transição democrática, deixou de ser reivindicado pelas forças ocidentais. A conclusão é que a esta altura esta seria a melhor forma para superar a devastação deixada por sete anos de conflito.

Mas mesmo assim, teme-se que a queda de Idlib, que não tem prazo para ocorrer, não significaria o fim imediato do conflito. Seria um passo muito importante para a vitória do regime aos grupos opositores, mas nada garante que uma nova fase de instabilidade e de ações violentas por parte dos jihadistas continuem ocorrendo.

Por outro lado, a população de Idlib tem realizado gigantescas manifestações (https://www.aljazeera.com/news/2018/09/thousands-rally-looming-offensive-northwest-syria-180914162627442.html), semelhantes às que ocorriam em 2011. Elas são contrárias à intervenção do regime de al-Assad e suas ameaças de ataque, assim como também contra o HTS e seu regime teocrático brutal. Assim, mesmo cercada, a população de Idlib demonstra ter esperança e insiste em não abandonar os ideais que levaram os sírios a saírem às ruas em 2011.

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