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Não estamos nos anos trinta, só que em câmara lenta

Dorothea Lange

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

O debate sobre o bloqueio das forças produtivas no Programa de Transição

Comecemos por ententer o que significa ser verdadeiramente marxista. Não podemos fazer um culto, como se fez de Mao ou de Stalin. Ser trotskista hoje não significa estar de acordo com tudo aquilo que escreveu ou o que disse Trotsky, mas sim saber fazer-lhe críticas ou superá-lo, como a Marx, a Engels ou Lênin, porque o marxismo pretende ser científico e a ciência ensina que não há verdades absolutas. Em primeiro lugar, ser trotskista é ser crítico, inclusive ao próprio trotskismo.[1]
Nahuel Moreno

Há pelo menos meio século se abriu um debate, nas organizações e círculos da esquerda da tradição trotskista, sobre a vigência da letra ou do método do Programa de Transição. Devemos voltar a refletir sobre este tema, criticamente, quando interpretamos a sua atualidade, neste aniversário de oitenta anos de fundação da Quarta Internacional.

O primeiro desafio é sobre o que devemos compreender quando lemos hoje, no texto de 1938, a caracterização de que sob o capitalismo contemporâneo as forças produtivas teriam deixado de crescer, pelo menos, desde a Primeira Guerra Mundial e o triunfo da revolução russa [2].

O segundo é sobre o que devemos compreender sobre a caracterização de que a crise da humanidade pode ser reduzida, essencialmente, à crise de direção do proletariado [3]. As duas caracterizações são, fundamentalmente, indivisíveis. A primeira estabelece a maturidade das condições objetivas para a revolução mundial. A segunda sublinha a imaturidade das condições subjetivas, e explica porque, apesar de tantas revoluções terem acontecido, não há nenhum país em transição ao socialismo, e a ordem imperialista ainda está intacta.

O terceiro é sobre o que devemos compreender sobre a premissa de que, na nossa época, o capitalismo é incapaz de ceder reformas e, portanto, é necessário superar a oposição entre programa possibilista e maximalista. O Programa de Transição defende que a luta por reivindicações mínimas e democráticas pode abrir, potencialmente, uma dinâmica de mobilizações anticapitalistas transitórias [4].

Estas ideias poderosas mantém vigência? Em que sentido? A resposta à primeira pergunta é mais simples. Sim, estas ideias mantém vigência, e foram confirmadas pelo laboratório da história. Vivemos em uma época histórica de guerras e revoluções. A permanência da ordem imperialista mundial é uma ameaça à sobrevivência da humanidade. O programa marxista é a revolução socialista mundial. O trotskismo se afirmou como a mais fecunda corrente marxista revolucionária mundial porque manteve a defesa da tradição anticapitalista dos herdeiros da revolução de outubro, e internacionalista da III Internacional.

Mas estas ideias não podem ser compreendidas como absolutas. Reafirmar que a tarefa história da época é a luta pelo socialismo não é o mesmo que dizer que estaríamos em uma situação revolucionária mundial. São níveis de abstração na análise da realidade, completamente, diferentes. A percepção de uma crônica situação revolucionária mundial é uma ilusão objetivista.

A social democracia e o estalinismo foram, e permanecem sendo, ainda que mais debilitados, aparelhos burocráticos. Mas reafirmar que há uma crise de direção do proletariado não é o mesmo que dizer que, não fosse o papel das organizações reformistas, já estaria madura entre os trabalhadores uma disposição revolucionária de luta pelo poder. Isso seria uma perigosa idealização da classe operária, um excesso obreirista. A percepção de uma invariável disposição revolucionária de luta entre os trabalhadores é autoengano, uma fantasia imaginária, uma forma de pensamento mágico. Esta interpretação reduz a análise da crise de direção à vulgaridade de uma teoria da traição, portanto, uma mentalidade conspiratória.

O capitalismo não cumpre mais papel progressivo algum, não pode conceder reformas perenes, sequer no centro do sistema, quanto mais nos países da periferia. Mas reafirmar a rigidez dos limites históricos do capitalismo em sua época de declínio não é o mesmo que dizer que, em circunstâncias excepcionais, diante do perigo de situações revolucionárias, a burguesia não possa aceitar concessões emergenciais, temporárias, efêmeras, sacrificando anéis para salvar os dedos.

A resposta à segunda questão é, portanto, muito mais complexa. Em que sentido reivindicamos o programa de transição? Existem duas hipóteses. Há aqueles que fazem uma leitura rígida, literal ou restrita da letra do programa de transição, e fazem dele um dogma estéril. A defesa de dogmas condena este tipo de trotskismo a uma marginalidade política e social incontornável. E há aqueles que, como nós, defendem o método do programa de transição, mas consideramos que é necessária a sua atualização.

A crise econômica mundial de 2008 foi a mais séria desde 1929. Mas não estamos, em 2018, vivendo uma situação semelhante à dos anos trinta, só que em câmara lenta. Não estamos na iminência de uma guerra mundial, e na antessala da invasão da URSS pelo nazifascismo. O capitalismo foi restaurado à escala internacional e a URSS já não existe. Aconteceu uma derrota histórica e isso teve consequências.

A disposição de atualizar o Programa de Transição não diminui o nosso compromisso com a luta pela revolução, somente reafirma nosso engajamento com o marxismo. Essa tarefa já foi encarada, há quarenta anos, pela geração anterior de trotskistas, só que em condições favoráveis, depois da derrota do imperialismo norte-americano no Vietnam [5]. Nossa tarefa é mais amarga, porque a evolução da situação mundial no último quarto de século foi desfavorável. Não prevaleceram vitórias da revolução mundial, mas o contrário.

Um programa não é uma análise da situação econômica e social, embora deva estar fundamentado em uma síntese de quais são suas tendências. Não é uma obra de investigação histórica, embora deva estar baseado em uma caracterização do período histórico. Não é uma lista de palavras de ordem, embora deva fazer sínteses na forma de consignas.

Um programa é um instrumento de luta. A tarefa programática incorpora estas três tarefas, mas deve identificar na análise quais são as contradições centrais da realidade, e retirar como conclusão quais são as tarefas colocadas para os trabalhadores e seus aliados.

A caracterização principal do programa de transição é que, sob a ordem imperialista mundial, entramos em uma época de decadência histórica do sistema. Ou seja, a conclusão de que as relações sociais capitalistas se transformaram em um freio para o progresso, e uma ameaça para a civilização. Do que decorre que a tarefa dos marxistas deve ser a luta pela revolução socialista internacional. Se considerada no nível de abstração muito elevado de uma época, ou seja, em uma dimensão secular indefinida, e em escala internacional, esta caracterização permanece fundamental, e é um dos pilares do marxismo revolucionário.

Mas uma época é um longo intervalo histórico, portanto, na dimensão secular. Ao longo da mesma época devemos considerar a alternância de várias etapas. As etapas estão determinadas pela relação de forças entre revolução e contrarrevolução, em escala mundial. Em cada etapa da luta de classes há uma direcionalidade, um signo, uma dinâmica. Vitórias favorecem novas vitórias. Derrotas facilitam derrotas. A revolução mundial tem a morfogia de ondas de choque, o efeito dominó. Não obstante, durante uma etapa, em cada país, embora a tendência seja a pressão do contexto internacional, podem prevalecer condições peculiares da luta de classes em cada nação. Não há sincronicidade direta.

A leitura extremada do caráter revolucionário da época, desconhecendo as variáveis tempo e espaço, as desigualdades determinadas pela história e geografia, desprezando a realidade concreta da luta de classes, e as variações das relações de força entre as classes na escala das situações, foi uma das chaves da teoria da “iminência” da revolução.

A teoria da “iminência” da revolução é uma das variações da teoria objetivista do colapso do capitalismo. O objetivismo é uma ilusão de ótica. O objetivismo é uma análise unilateral da realidade que diminui a centralidade dos fatores subjetivos na luta de classes. A dimensão subjetiva da luta de classes é aquela que remete ao nível de consciência e disposição de luta dos trabalhadores e seus aliados sociais. Estamos diante de tendências históricas, e não diante de prognósticos catastrofistas. Qualquer outra conclusão é fatalismo determinista, ou uma forma de milenarismo socialista. Lenin tinha alertado contra este perigo quando escreveu “Imperialismo, fase superior do capitalismo”.[6]

Esta caracterização se apóia em uma teoria da história formulada por Marx. As forças motrizes do processo histórico seriam, essencialmente, duas tendências que se desenvolvem simultânea e, inseparavelmente, mas com uma força de pressão que se alterna em função da natureza da época: a tendência ao crescimento das forças produtivas, e a luta de classes, operam como os seus fatores de impulso. Em poucas palavras: luta da humanidade pela produção da riqueza social, de acordo com suas necessidades, e luta entre os homens pela apropriação do sobreproduto social, determinada pela escassez.

Mas, a intensidade da necessidade histórica que se manifesta através dessas duas tendências, varia, oscila, flutua, e se alterna. Marx não identificou uma tendência intrínseca indefinida ao desenvolvimento das forças produtivas. Existe uma tendência e contratendências. As relações sociais podem favorecer ou obstaculizar este desenvolvimento. Variadas forças de bloqueio teriam se manifestado na história. Logo, períodos de estagnação até, relativamente, longos não seriam uma exceção.

Por outro lado, a principalidade da luta de classes seria, também, variável. E só se manifestaria, em sua máxima intensidade, em épocas revolucionárias. Podemos, portanto, considerar, de acordo com a natureza das épocas, inversões de primazia entre a operação das forças motrizes. Tão ou mais importante essas duas forças de pressão da necessidade histórica desenvolvem contradições entre si, porque atuam reciprocamente uma sobre a outra. E se neutralizam, também, uma à outra, como obstáculos mútuos.

A primeira questão que devemos problematizar, portanto, oitenta anos depois de 1938, é identificar qual era o nível de abstração em que este postulado sob o bloqueio das forças produtivas, ou sobre a maturidade das condições objetivas foi elaborado. Na dimensão histórica de época, que admite a longa duração, ou, indistintamente, das etapas políticas, das situações concretas ou das conjunturas breves? As leis históricas para marxistas operam como tendências. Nem menos, nem mais do que tendências, ou forças de pressão.

Estas tendências abrem o caminho no terreno da luta de classes. A luta de classes é um processo em aberto, portanto, incerto. Porque a premissa de que as forças produtivas sob a ordem imperialista, tendencialmente, não podem crescer como cresciam no XIX, quando o capitalismo impulsionava a revolução industrial, não desautoriza considerar que as relações sociais capitalistas podem ser, dependendo da situação concreta e da do destino de cada nação, um obstáculo absoluto ou relativo.

Quando Leon Trotsky retomou este conceito da III Internacional na fundação da Quarta não estava senão recuperando do esquecimento uma localização estratégica. O que significa concluir que, quando a revolução mundial avança, os limites históricos do capitalismo se estreitam, mas, também, o inverso. Quando a contrarrevolução avança, o capitalismo alonga seus prazos de sobrevivência. Porque a caracterização de que estamos em uma época de declínio histórico do capitalismo não descarta a possibilidade de que operam contratendências em escalas de tempo mais breves. E não invalida que na escala das etapas, situações e conjunturas ocorram inversões transitórias em que estas contratendências prevaleçam.

Em conclusão: a defesa rígida de que as forças produtivas não cresceram, nos últimos oitenta anos, é dogmática porque não tem sustentação histórica. O argumento contrário mais poderoso, mas, também, mais inconclusivo, defende que as forças produtivas devem ser compreendidas como um sistema de relações que a humanidade estabelece com a natureza através do trabalho com ferramentas, que objetivam em tecnologia, de acordo com o estágio de desenvolvimento da ciência.

Na sua formulação mais lúcida a régua que deve medir este processo deve ter quatro critérios: (a) o grau de melhoria ou deterioração das condições de vida da humanidade, uma variável que nos remete à elevação ou estagnação dos níveis de produtividade do trabalho; (b) a expansão do papel de parasitismo dos capitais fictícios com a financeirização; (c) o crescimento das forças destrutivas (expansão da indústria militar); e (d) as ameaças à sobrevivência da civilização pela gravidade emergencial da crise climática com o aquecimento global. Os quatro critérios são corretos. O problema não é a régua. O problema é o exercício histórico de balanço.

A tese do bloqueio absoluto tem como consequência a visão da época do imperialismo, portanto, da decadência como uma longa e ininterrupta estagnação que já teria cem anos, o que não é somente dogmático, é insensato. Se compararmos o mundo de hoje com o de cem anos atrás esta tese é absurda. Não é necessário um modelo teórico com variáveis muito complexas para aferir que ocorreu, nesse intervalo, um desenvolvimento das forças produtivas.

Sobra, finalmente, o argumento circular de que a vitória da revolução russa em 1917 seria a demonstração inequívoca de que o capitalismo teria atingido seus limites históricos. O argumento é circular, à maneira de um cachorro que corre atrás de sua própria cauda para mordê-la, porque sustenta que a revolução de outubro prova que o capitalismo esgotou sua capacidade de cumprir um papel progressivo. Ou, formulado de trás para a frente, à maneira das demonstrações escolásticas, a crise do capitalismo se revela terminal porque a revolução russa triunfou.

Essa conclusão ignora as sequelas do que foi o estalinismo como bloqueio da transição ao socialismo, e o impacto da restauração capitalista, ou seja, das derrotas da revolução mundial. A produtividade do trabalho nos últimos cem anos se multiplicou várias vezes. As taxas médias de crescimento das economias capitalistas foram, em escala mundial, no centro e na periferia, superiores às taxas médias de crescimento da Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha ou França durante o século XIX. Desconhece os avanços da ciência e tecnologia, da produtividade do trabalho, do aumento da expectativa de vida, da redução do analfabetismo, etc.

Admitir o caráter relativo, portanto, não absoluto, do bloqueio que o capitalismo representa não questiona a estratégia revolucionária. Ao contrário, eleva a nossa determinação de caminhar de olhos bem abertos. A angústia é uma prerrogativa da lucidez. Toda atualização programática nos protege de nós mesmos.


NOTAS

[1] MORENO, Nahuel. Ser trotskista hoje. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/moreno/1985/mes/troskista.htm
[2] TROTSKY. Leon. O Programa de Transição. “A premissa econômica da revolução proletária já alcançou há muito o ponto mais elevado que possa ser atingido sob o capitalismo. As forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e os novos progressos técnicos não conduzem mais a um crescimento da riqueza material. As crises conjunturais, nas condições da crise social de todo o sistema capitalista, sobrecarregam as massas de privações e sofrimentos cada vez maiores (…) As premissas objetivas da revolução proletária não estão somente maduras: elas começam a apodrecer. Sem vitória da revolução socialista no próximo período histórico, toda a civilização humana está ameaçada de ser conduzida a uma catástrofe.”. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/programa/cap01.htm#1  Consulta em 20/09/2018.
[3] TROTSKY. Leon. O Programa de Transição. “Tudo depende do proletariado, ou seja, antes de mais nada, de sua vanguarda revolucionária. A crise histórica da humanidade reduz-se à crise da direção revolucionária. A economia, o Estado, a política da burguesia e suas relações internacionais estão profundamente afetadas pela crise social que caracteriza a situação pré-revolucionária da sociedade. O principal obstáculo na transformação da situação pré-revolucionária em situação revolucionária é o caráter oportunista da direção do proletariado.” Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/programa/cap01.htm#1  Consulta em 20/09/2018.
[4] TROTSKY. Leon. O Programa de Transição. “A social-democracia clássica, que desenvolveu sua ação numa época em que o capitalismo era progressista, dividia seu programa em duas partes independentes uma da outra: o programa mínimo, que se limitava a reformas no quadro da sociedade burguesa, e o programa máximo, que prometia para um futuro indeterminado a substituição do capitalismo pelo socialismo. Entre o Programa mínimo e o Programa máximo não havia qualquer mediação (…) A IV Internacional não rejeita as reivindicações do velho programa mínimo”, à medida que elas conservaram alguma força vital. Defende incansavelmente os direitos democráticos dos operários e suas conquistas sociais. A medida que as velhas reivindicações parciais mínimas” das massas se chocam com as tendências destrutivas e degradantes do capitalismo decadente – e isto ocorre a cada passo -, a IV Internacional avança um sistema de reivindicações transitórias, cujo sentido é dirigir-se, cada vez mais aberta e resolutamente, contra as próprias bases do regime burguês. O velho programa mínimo é ultrapassado pelo Programa de Transição, cuja tarefa consiste numa mobilização sistemática das massas em direção à revolução proletária”.   Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/programa/cap01.htm#1  Consulta em 20/09/2018.
[5] MORENO, Nahuel. Teses de Actualización del Programa de Transición. Disponível https://www.marxists.org/espanol/moreno/actual/index.htm Consulta em 20/09/2018.
[6] LENIN, Vladimir Ilitch. O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. “O imperialismo reforça e aumenta as diferenças e desigualdades de desenvolvimento econômico entre os países, mas «seria um erro acreditar que esta tendência à decadência exclua o crescimento rápido do capitalismo», que agrava as desigualdades entre os países.”

 

FOTO: A norte-americana Florence Owens Thompson, mãe de sete crianças, em Nipono, Califórnia, em março de 1936, em busca de um emprego. Foto de Dorothea Lange.

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