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O baile sem máscaras: O real e o eleitoral no degradado Rio de Janeiro

Reprodução

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Portanto, não tenhais medo deles! Nada há de encoberto que não venha a ser descoberto, nada de secreto que não venha a ser conhecido” (Mateus 10: 26)

O quadro eleitoral no Rio de Janeiro aparenta ser a melhor expressão, didática porque hiperbólica, da blindagem que caracteriza a atual democracia liberal brasileira. O fosso entre a rousseauniana “vontade popular”, entre o que as maiorias aspiram, e as esferas do poder político, as instâncias decisórias do regime, para ter atingido uma dimensão sem precedentes, produzindo um verdadeiro hiato entre as praças e o Parlamento, entre as ruas e o governo.

Concedendo compulsivamente a si mesma obscenas isenções fiscais, e praticando saques pletóricos aos cofres públicos, a lumpemburguesia fluminense, representada pelo PMDB e seus aliados, quebrou o Estado do Rio de Janeiro. Os professores e demais servidores públicos ficaram meses sem receber seus salários, os polos petroquímicos foram arruinados, os estaleiros navais afundaram, a UERJ foi sucateada, a Saúde ficou doente, o desemprego aumentou exponencialmente, a violência cotidiana tornou-se insuportável e a desagregação social tornou-se indisfarçável. Com a ordem, aval ou omissão dos chefes do aparelho estatal, Marielle foi executada e quase ninguém duvida que os mandantes do crime político circulam ou circularam nos palácios. O desastre é de tal monta que todos os véus foram ao chão, todos os disfarces foram rasgados, e nem mesmo a tradicional ideologia midiática pró-establishment conseguiu evitar que enorme parte da população tomasse ciência dos fatos. Eles são nítidos como um girassol de Fernando Pessoa, e nem mesmo os responsáveis pelo caos tentam se eximir de culpa, pois talvez, como totais psicóticos, sequer a nutram. Parafraseando a bíblica sentença de Fiódor Dostoiévsky, pode-se dizer que tudo já é do conhecimento de todos e tudo o que estava encoberto já foi revelado.

A popularidade do atual governador é praticamente nula, e não há praticamente um só bípede com polegar opositor entre a população fluminense que não saiba de sua associação direta com o ex-governador, assim como deste com o ex-presidente da Assembleia; deste – por óbvio – com seus filhos; destes com os sucessivos líderes do governo na mesma Assembleia; destes, por sua vez, com os parvenus de guardanapos na cabeça, e, claro, da turma toda com o ex-prefeito da capital e seus atuais e ex-menudos da Zona Sul. Pezão amava Cabral, que amava Picciani, que amava os filhos, que amavam Albertassi e Paulo Mello, que amavam Sérgio Côrtes e Wilson Carlos, que amavam Cabral, que amava Paes, que amava Pedro Paulo, que amava os Barata e os Cavendish, que amavam Cabral, que amava, claro, toda a quadrilha, com o perdão do poeta de Itabira.

No entanto, em função justamente dos diversos mecanismos de blindagem da democracia liberal contemporânea – com destaque para o poder econômico das candidaturas da ordem, as regras eleitorais (sobretudo a impudente desigualdade quanto à partilha do tempo de rádio e TV entre as candidaturas), a desigual cobertura da imprensa sobre os candidatos e a hegemonia neoliberal-conservadora construída antes e durante as campanhas pelos mass media –, a vontade popular, mais uma vez, não se fará vitoriosa quando da apuração do pleito no Rio de Janeiro. Convém adicionar que para este provável malogro do povo contribuirá, em muito, outro mecanismo de blindagem tipicamente fluminense, a saber, o poder político do crime organizado miliciano com seus currais eleitorais garantidos à bala. Assim, ao que tudo indica, não só Eduardo Paes será eleito governador do Estado, como a esmagadora maioria dos deputados estaduais eleitos advirão das fileiras da firma de Cabral e seus sócios. É assustador, trágico, mas é verdade. O baile provavelmente vai continuar, e agora sem as máscaras, já perdidas ou dispensadas pelos seus participantes há algum tempo.

As muralhas do Palácio Guanabara e da ALERJ se mostrarão, novamente, praticamente impermeáveis aos desejos populares, isto é, às representações políticas que reivindiquem, de verdade, Educação e Saúde públicas e de qualidade, o aumento do emprego e dos investimentos em pesquisa, esporte e cultura, e sobretudo, o fim da barbárie cotidiana perpetrada pela polícia, o tráfico e as milícias. O virtual novo governador pode, em sua propaganda eleitoral, cinicamente prometer fazer algo diferente do que hoje existe, livrar o Estado dos demônios que nos atingem, mas todos, ou quase todos, sabem que “é pelo chefe dos demônios que ele expulsa os demônios”.

O caso do Rio de Janeiro faz saltar aos olhos a constatação de que não há mais a menor chance – se é que houve algum dia – de que um projeto político baseado em direitos sociais possa ser construído por dentro das instituições vigentes, ou seja, por dentro da democracia blindada. A velha estratégia reformista, requentada pelo eurocomunismo, e temperada pelo chamado programa democrático-popular, de conquista progressiva das instituições por parte das organizações da esquerda socialista é hoje não só infrutífera, mas delirante e deseducadora. É a atual democracia liberal blindada que deve ser solapada para que direitos sejam garantidos e aprofundados. Para tal, o centro das lutas deve estar nas ruas, nas lutas cotidianas da classe trabalhadora e dos oprimidos. Para que tais lutas, por sua vez, possam se desenvolver, se espalhar e adquirir melhor organização, elas necessitarão de confiáveis pontos de apoio, de suportes, de estrutura, de audiência, e de voz. Assim, pequenos e difíceis – porém possíveis – furos na blindagem devem ser feitos, não com a crença de que a atual democracia liberal blindada possa vir a progressivamente se abrir e se metamorfosear em uma verdadeira democracia popular, mas sim com a esperança de que, por meio de tais furos, as lutas por direitos aqui de fora possam, ao mesmo tempo, ser alimentadas pelos defensores de direitos lá de dentro e, principalmente, acelerar a corrosão das estruturas internas de uma democracia que a cada dia revela seu real conteúdo antidemocrático e antipopular.

No Rio de Janeiro, portanto, a candidatura de Tarcísio Motta para governador é fundamental. É preciso apoiá-la. No atual cenário sombrio, resistir é preciso, para que viver com dignidade, um dia, seja possível. A crescente adesão eleitoral de trabalhadores, intelectuais, artistas e da juventude plebeia a um candidato socialista como Tarcísio Motta e, principalmente, a destacada participação das socialistas feministas do Rio na fenomenal luta nacional das mulheres brasileiras contra o fascismo evidenciam que trincheiras estão sendo construídas para as difíceis batalhas que virão no Estado. “O mundo começa agora. Apenas começamos”.