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BRASIL

O império das fake news, os interesses empresariais e a tragédia do Museu Nacional

Por: Marcelo Badaró Mattos, do Rio de Janeiro, RJ
Tomaz Silva / Ag. Brasil

“A ilusão é o alimento mais tenaz da consciência coletiva. A história ensina, mas não tem alunos.” 
Antonio Gramsci, 11.3.1921

Vivemos tempos realmente sombrios. Na última quinta-feira, dia 06 de setembro, o candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro, que defende abertamente propostas fascistas de recurso à violência como solução privilegiada para as questões sociais, foi alvo de um atentado a faca, resultando em ferimento grave. Há imagens do momento em que foi esfaqueado, o agressor foi imediatamente preso e é réu confesso, todos os procedimentos a que foi submetido no hospital em Juiz de Fora (MG) foram relatados em entrevistas com a equipe médica que o atendeu e, ainda assim, pesquisas nas redes sociais demonstraram que, nas primeiras 24 horas após o ataque, mais de 40% dos usuários não acreditavam no atentado, considerando tudo uma armação ou, para usar a expressão da moda, fake news.

Seriam todas essas pessoas estúpidas? Me parece que, embora a estupidez humana seja infinita, o caso aqui é outro. A manipulação de informações e a criação de notícias forjadas para sustentar determinadas posições no debate público tornou-se tão frequente no dia a dia que acontecimentos de impacto acabam sendo questionados por muita gente, mesmo por gente que costuma repassar essas notícias falsas sem muito critério quando elas reforçam os posicionamentos que defendem. O fato de apoiadores de Bolsonaro terem imediatamente difundido informações que associavam a origem do atentado a uma ação da esquerda organizada e parte de seus opositores ter mantido o questionamento sobre a veracidade do ocorrido, mesmo após todas as evidências, só reforça o clima de “disputa de narrativas” que se instala em torno desse tipo de acontecimento.

As consequências políticas de um atentado como esse só poderão ser avaliadas no próximo período, mas as experiências históricas com o fascismo “clássico”, da primeira metade do século XX, indicam a associação entre atentados políticos e escalada de violência das forças de sustentação fascistas contra os seus “inimigos”. Nos resta trabalhar para que o vaticínio de Gramsci, em sua análise do fascismo citada na epígrafe deste texto, possa ser revertido e consigamos aprender algo com a História.

Este artigo, entretanto, trata de outra manifestação do império das fake news, diante de uma tragédia de dimensões históricas evidentes: o incêndio do Museu Nacional.

Da tragédia ao cerco: o que está em jogo
Na noite de domingo, dia 02 de setembro, e na madrugada de segunda-feira, assistimos envolvidos pelo choque e a comoção, ao incêndio que destruiu o Museu Nacional, unidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro, localizada na Quinta da Boa Vista. Gostaria de, como tantas pessoas fizeram nas redes sociais, registrar aqui minhas lembranças de criança, nas visitas ao mais popular dos museus cariocas. Ou de recordar os cursos e atividades de que participei ali, como estudante de pós-graduação em História, que foi buscar no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, que funcionava no mesmo prédio histórico, o ensino de qualidade reconhecida, pois apoiado nas pesquisas de ponta da área. No entanto, não posso escrever apenas sobre isso, pois não tivemos tempo sequer para manifestar plenamente o luto, que reuniu dezenas de milhares de pessoas no dia 03, no Centro do Rio de Janeiro.

O sentimento dominante naquela manifestação e nas explicações sobre as razões do incêndio era de revolta contra o descaso do Estado com o patrimônio cultural e de responsabilização do governo federal pelos cortes de gastos decorrentes da política de austeridade, materializada na Emenda Constitucional-95, que congelou por 20 anos o orçamento federal para investimentos em educação, saúde, cultura, etc. Entretanto, para o projeto de desmanche dos serviços e transferência dos fundos públicos para os interesses privados hoje em curso é essencial desconstruir essa revolta e reverter a seu favor a tragédia do Museu Nacional. Ainda com as chamas a arder, teve início o ataque a tudo o que o Museu representava, através do vale-tudo de uma disputa de narrativas, na qual as fake news são utilizadas sem nenhum pudor.

Nos dias que se seguiram ao incêndio, embora boa parte da imprensa e o conjunto dos depoimentos de profissionais ligados ao Museu acentuassem as responsabilidades do governo federal pelos cortes de verbas que inviabilizavam sua manutenção adequada, assim como de outros equipamentos culturais semelhantes, os veículos de comunicação do Grupo Globo iniciaram um cerrado ataque à Universidade Federal do Rio de Janeiro, numa linha que, ao mesmo tempo, procurava responsabilizar diretamente a administração da UFRJ pelo incêndio (acusando-a de má gestão dos recursos públicos) e defender a necessidade de um modelo privado de gestão do Museu.

Dados sobre o orçamento da Universidade foram apresentados pelos veículos Globo, comparando os gastos com pessoal e as despesas de manutenção e investimentos para sugerir que o orçamento da UFRJ cresceu nos últimos anos, mas a administração da Universidade optou por gastar mais com pessoal. O fato de que os gastos com os salários e benefícios previdenciários dos servidores públicos nela lotados não dependem da gestão de uma Universidade Federal é de conhecimento público e os números reais que demonstraram a queda do orçamento da instituição foram não apenas apresentados pela UFRJ, como também pela Assessoria de Orçamento do Congresso Nacional.

Em manipulação mais explícita, o jornal O Globo noticiou que na década de 1990 o Banco Mundial havia oferecido financiamento para a Universidade restaurar o Museu, mas a proposta teria sido recusada por “motivos ideológicos” pela UFRJ, porque envolveria a gestão via Fundação Privada ou Organizações Sociais. A notícia, cuja fonte seria o empresário Israel Klabin, foi repetida por outros veículos, mas logo seria desmentida pelo próprio Banco Mundial, que em nota informou que as discussões preliminares sobre o financiamento, ocorridas entre 1998 e 2000, foram encerradas pelo próprio banco, sem nunca ter existido qualquer proposta concreta.

Em 05 de setembro, o Correio Brasiliense, publicaria notícia da reunião de banqueiros com Temer, na qual esses teriam se mostrado dispostos a financiar a recuperação do Museu, desde que o reitor da UFRJ fosse “demitido”. A Febrabam desmentiu, no dia seguinte, a informação de que teria sido feita essa exigência, através de nota oficial. Comentando essas notícias em plenária aberta, realizada no último dia 06, na Quinta da Boa Vista, o reitor da UFRJ, Roberto Leher, perguntou aos presentes como definir aquelas matérias, sendo respondido por um coro de “fake news”.

Para compreender esse recurso a fake news e o furor do ataque de O Globo e outros veículos de comunicação empresariais é necessário situá-lo no contexto de defesa explícita por esses órgãos da retirada do investimento estatal nas Universidades Públicas, que em seus planos deveriam cobrar mensalidades e abdicar de sua função constitucional de manter, de forma indissociável, atividades de ensino, pesquisa e extensão. De um lado, tal projeto garantiria a abertura total do mercado para o lucrativo negócio da educação superior privada, de outro, abdicaria de vez a qualquer pretensão de desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil (no qual as Universidades Públicas possuem papel central), assumindo plenamente uma “vocação” dependente e semicolonial do país.

Mas, há interesses econômicos mais imediatos envolvidos nessa história. A Fundação Roberto Marinho, braço do Grupo Globo nas áreas de educação e cultura, tem hoje como um dos seus principais empreendimentos a gestão de Museus. Nos museus geridos pela fundação dos Marinho, o modelo das Parcerias Público-Privadas (PPP) injeta centenas de milhões de reais dos cofres públicos em empreendimentos financeiramente bem-sucedidos de lazer cultural, com acervos pequenos ou inexistentes (museus “virtuais” e “tecnológicos”) e nenhum compromisso com a pesquisa ou a extensão universitária, em modelo em tudo diverso daquele do Museu Nacional.

O que os arautos da gestão privada dos Museus não vão dizer é que incêndios também ocorrem neles, como no exemplo do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, administrado pela Fundação Roberto Marinho. E que muitos dos seus projetos estão parados, depois de receberem centenas de milhões dos cofres públicos, como no caso do prédio do MIS na Praia de Copacabana, Rio de Janeiro, cuja previsão inicial de entrega era para 2012 e está inacabado até hoje, tendo consumido cerca de 100 milhões de reais de recursos públicos até 2014. Outro empreendimento gerido pela Fundação Roberto Marinho.

Caso examinemos com mais atenção, veremos que mesmo a joia da coroa dos exemplos apresentados como “bem-sucedidos” de gestão privada dos Museus – o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro – esconde muitos esqueletos em seus armários. O projeto foi encomendado pela Prefeitura do Rio, na gestão de Eduardo Paes, ao arquiteto espanhol Santiago Calatrava. Uma rápida busca na internet será suficiente para aferir-se o quanto o arquiteto e seus projetos são associados a escândalos de corrupção e superfaturamento de obras em diversas cidades espanholas, alguns dos quais levaram à queda e prisão de autoridades municipais e estaduais, principalmente do Partido Popular, tendo alguns desses escândalos sido decisivos para a queda do primeiro-ministro Rajoy, no ano passado. A construção ficou a cargo de uma PPP, através do consórcio Porto Novo, liderado pelas mais que conhecidas empreiteiras Odebrecht e OAS, com a participação da Carioca. Oficialmente, esse museu custou 215 milhões de reais (a previsão inicial era de 130 milhões de reais), com recursos anunciados inicialmente como privados (embora derivados da renúncia fiscal via Lei de Incentivo à Cultura, ou seja, recursos públicos). No entanto, uma auditoria movida pela atual gestão da prefeitura do Rio, encontrou gastos públicos da ordem de 686 milhões de reais para a construção e manutenção, até 2017, do Museu do Amanhã e seu vizinho Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), também administrado pelos Marinho, via PPP e OS. Em 2012, os vereadores do PSOL já questionavam a prefeitura por remanejamentos do orçamento municipal que retiraram mais de 110 milhões de verbas antes previstas para urbanização de favelas para aplicar nas obras do museu.

Em 2017, os cofres da prefeitura transferiram 12 milhões de reais ao Museu do Amanhã, valor que se manterá este ano. O valor era ainda maior nos anos anteriores. Entre 2015-2016, a prefeitura transferiu 32 milhões para a operação do Museu, que só começou a funcionar efetivamente em 2016.

Não pode haver muitas dúvidas de que a postura do Grupo Globo na cobertura da tragédia do Museu Nacional possui relação não apenas com uma concepção ideológica e um projeto político de desmonte da coisa pública, mas também com interesses materiais bastante objetivos de empresariamento do setor cultural, dos museus em especial.

Cabe destacar, entretanto, que este projeto empresarial encontra, como em tantos outros casos, suporte dos dirigentes do Estado brasileiro, alguns deles inclusive tomando a dianteira na defesa da privatização do Museu e no ataque à Universidade.

“Fontes Oficiais”
O incêndio do Museu e a comoção que gerou abriram cofres antes totalmente fechados. No dia seguinte à tragédia, a reitoria da UFRJ reuniu-se com autoridades do governo Federal e o Ministério da Educação anunciou a liberação emergencial de 10 milhões de reais para obras de contenção e proteção da estrutura do prédio histórico, garantindo a segurança para um trabalho de arqueologia das ruínas, que possa gerar a recuperação de algumas peças do acervo. Trabalho que, graças a entendimentos da reitoria com a Unesco, contará com o suporte de técnicos altamente especializados vindos de outros países para dar apoio à equipe do Museu Nacional, que é das mais qualificadas no Brasil.

No entanto, desde a noite do incêndio, uma voz do primeiro escalão de Temer, esforçou-se por estabelecer em todos os veículos a que teve acesso, uma narrativa que desresponsabilizava o governo federal e culpabilizava a gestão da UFRJ pela tragédia. Trata-se do Ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão. Leitão é formado em jornalismo pela própria UFRJ e nos últimos 15 anos ocupou diversos cargos públicos, no Ministério da Cultura do primeiro governo Lula, em assessorias do BNDES, na Ancine, Rio Filmes e foi Secretário de Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro, gestão de Eduardo Paes, justamente entre 2012 e 2015. Como tantos outros em posições semelhantes, Leitão também praticou a chamada “porta giratória”, ocupando cargos gerenciais e tornando-se sócio de empreendimentos privados no setor áudio-visual nos períodos em que estava “de folga” dos cargos públicos.

A narrativa entoada por Leitão ao longo da primeira semana após o incêndio pode ser resumida numa passagem de uma entrevista, publicada no dia 08 de setembro, à revista Época, outro veículo do Grupo Globo. Defendendo-se de perguntas que apontavam para a responsabilidade do governo no ocorrido, ele procura transferir para a universidade e sua administração a culpa pelo episódio: “Ela (UFRJ) optou por investir em outras áreas. É uma questão de planejamento e priorização. Eu como gestor teria feito outras opções. Eu faço a gestão da escassez. A UFRJ tem autonomia administrativa e financeira, ela recebe os recursos do MEC e decide o que faz com seu orçamento discricionário (despesas não obrigatórias).” A partir desse “diagnóstico”, Leitão ameaçou, na mesma entrevista, a retirada do Museu do âmbito da UFRJ.

Dois dias depois da publicação da entrevista, nesta segunda-feira, 10 de setembro, Temer assinou duas Medidas Provisórias que confirmam as intenções expressas desde o início pelo ministro Leitão. Numa delas extinguiu o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) e transferiu os 27 museus federais sob sua gestão para uma nova Agência Brasileira de Museus (ABRAM), entidade de cunho fundacional que, segundo o governo, será responsável pela reconstrução do Museu Nacional que, entretanto, se manteria sob gestão da UFRJ. A segunda MP criou um “fundo patrimonial”, anunciado quando da reunião com banqueiros na semana anterior, para receber doações de entes privados destinadas à reconstrução do Museu Nacional e manutenção de outros museus.

No melhor estilo da “doutrina do choque”, o governo Temer e seu ministro Leitão aproveitaram a tragédia para empurrar de afogadilho, sem nenhum debate com os servidores e instituições da área, um modelo privado de gestão, não só para a reconstrução do Museu Nacional, mas para o funcionamento do conjunto dos museus federais.

Leia a íntegra das Medidas Provisórias

É curioso que, nos mesmos veículos que espalharam notícias inverídicas de que a Universidade se recusara a assinar acordos com organismos internacionais por “razões ideológicas”, o Ministro Leitão justifique suas posições e ações privatizantes, como o fez na entrevista para Época, com uma declaração de princípios explicitamente ideológica: “Fui me afastando aos poucos de uma visão de esquerda e fui me tornando muito mais um liberal crítico do populismo, do estatismo e do coletivismo, que eu considero três grandes males do Brasil e da América Latina como um todo.” Declaração justificada por uma suposta atuação na Prefeitura do Rio pautada por “redução do gasto” e “aperfeiçoamento de gestão” (justamente na época em que se concluíam obras faraônicas como o Museu do Amanhã, com forte aporte de verbas públicas, como vimos).

Como no caso dos veículos do Grupo Globo, é importante perceber como posições ideológicas de ataque à Universidade Pública e aos equipamentos culturais geridos por entes públicos estão relacionadas a interesses materiais bastante objetivos. Quando assumiu o Ministério da Cultura, em meados do ano passado, Leitão fez várias declarações dizendo que sua prioridade era reabrir o Canecão.

O espaço, que funcionou como casa de shows por décadas, ocupava irregularmente um terreno da UFRJ e foi retomado judicialmente pela universidade há alguns anos. Desde então, dirigentes universitários tentaram, até aqui sem sucesso, conseguir recursos para garantir a reabertura do espaço, com um projeto cultural e socialmente orientado pelos princípios do público. O Ministro Leitão, entretanto, no ano passado, antes de qualquer contato com a reitoria da Universidade, já se reunia com empresários do setor de espetáculos para discutir a reabertura do Canecão.

Conforme notícia publicada pelo próprio Ministério, entre esses empresários estava Fernando Altério, principal acionista e CEO da Time for Fun, maior empresa de agenciamento de espetáculos e gerenciamento de casas de shows do país. Meses depois, Altério receberia do Ministério a Ordem do Mérito da Cultura e agradeceria a comenda, ressaltando a importância do reconhecimento inédito de um “empreendedor” do setor cultural, em título que normalmente era concedido apenas a artistas.

Em março deste ano, as colunas sociais noticiaram o jantar oferecido pelo empresário, em sua residência, em homenagem ao Ministro da Cultura.

Os planos originais de Leitão (e Altério?) para o Canecão, entretanto, não foram adiante, pois a reitoria da UFRJ denunciou que as tratativas do ministério estavam sendo feitas sem o conhecimento da Universidade e quando reunida com Leitão, manteve posição contrária ao modelo por ele sugerido (o já conhecido PPP + OS), apresentando outras propostas para o Canecão, bem como para… o Museu Nacional. Conforme notícia publicada pela UFRJ em agosto do ano passado:

“O reitor destacou que o modelo de uso precisa (…) devolver um espaço de cultura à cidade, à altura da importância da produção artística consolidada pelo antigo Canecão, contemplando ao mesmo tempo a produção cultural da UFRJ”.

Percebe-se, portanto, que os problemas do ministro Leitão com a UFRJ e sua reitoria são mais antigos e originam-se de uma diferença profunda de projetos para a Educação e para a produção e a difusão de cultura no país, opondo uma perspectiva autônoma e voltada para os interesses públicos de Universidade a um modelo de mercado, que garante fundos públicos para lucros privados, sem qualquer comprometimento com os pilares da qualidade da atividade universitária, assentados na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

Nesse embate não pode haver dúvidas. Estamos ao lado, dos servidores, estudantes e usuários do Museu Nacional – o Museu Nacional é UFRJ! – e da própria UFRJ, em torno à defesa da Universidade Pública e contra o saque do fundo público pelos interesses do grande capital, cada vez mais ávido de converter completamente a educação e a cultura aos ditames do lucro e da acumulação privados.

 

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