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MUNDO

Governo Evo e o roubo das joias do Estado: uma história digna de novelas

Joana Benario, de La Paz, Bolívia

Em 06 de agosto, comemorou-se a independência da Bolívia e, no dia seguinte, o feriado das Forças Armadas. Naquela noite, entre uma comemoração e outra, a medalha e a faixa presidencial foram roubadas em circunstâncias bizarras.

A medalha e a faixa presidencial são símbolos históricos que o presidente tem por hábito levar em todos os atos relevantes. A medalha tem um valor patrimonial incalculável, é um presente ofertado ao presidente Simón Bolivar em 1825 e herdado pela jovem nação boliviana após a morte de seu libertador.

O roubo ocorreu na cidade vizinha a La Paz, El Alto, onde está localizado o aeroporto. Ambos objetos estavam sob a guarda de um tenente do exército, guarda-costas de Evo, encarregado do transporte desses objetos históricos. Ele explicou que perdeu o voo para Cochabamba, onde ia encontrar a comitiva presidencial e, enquanto esperava o próximo voo, foi a vários bordéis na área, deixando o carro estacionado nas proximidades. Nesse ínterim, arrombaram o carro e roubaram a mochila onde estavam a medalha e a faixa presidencial.

Eu saí do veículo, mas não antes de cobrir minha mochila preta com uma colcha, e então eu fui para as instalações na avenida 12 de outubro. Eu fui a vários desses lugares, depois voltei para onde eu tinha deixado o carro. Quando cheguei a minha mochila tinha sido roubada “, explicou o militar.

Foi um escândalo nacional e uma grande operação policial teve início. Evo teve de participar dos atos oficiais sem usar os símbolos pátrios, que gosta de exibir nessas ocasiões. Horas depois, as joias foram encontradas em uma igreja de La Paz, deixadas pelos próprios ladrões, que informaram à polícia por chamada telefônica anônima…

Esse evento não é um fato isolado. Um dia depois, um deputado do MAS, completamente bêbado, insultou o público aos gritos e ficou nu no aeroporto de Cochabamba. No dia seguinte, em entrevista de rádio, Evo disse: “todos nós, os membros do governo, amanhecemos de ressaca, depois da festa das Forças Armadas.”

Durante o feriado nacional, na cidade de Potosí, o presidente teve que encurtar seu discurso para 20 minutos – normalmente demora quatro horas! – diante dos protestos e gritos do público “Bolívia disse NÃO”, ainda que algumas providências tenham sido tomadas: a praça de Potosí foi fechada, e o ingresso só foi permitido a autoridades do governo. Assim mesmo, o vice-presidente Alvaro Garcia Linera não abriu a Feira do Livro como faz todos os anos, por causa dos protestos. Semelhante situação ocorreu na inauguração do edifício do Banco da União. Em todo ato público, há uma massa que grita “Bolívia disse NÃO”.

Em outro erro sintomático, a diretora da Unidade de Investigação Financeira (UIF) publicou, finalmente, o relatório do patrimônio do presidente e do vice-presidente, embora o segredo bancário fora oficialmente suspenso há 8 anos. Descobre-se que o vice declarou apenas 27.000 bolivianos de patrimônio (3.500 dólares) quando é de conhecimento público suas várias empresas…Por sua parte, o presidente guarda metade de suas economias em uma conta em dólar, com um valor superior a US$ 100.000, enquanto defende publicamente a necessidade de economizar em moeda nacional! Foi uma tentativa de mostrar sua inocência, mas foi um tiro pela culatra…

Esses eventos constrangedores e pontuais são transformados em uma cadeia de contratempos permanentes e demonstram o crescente desgaste do governo Evo-Linera, bem como o medo e cansaço por parte dos governantes. Na população em geral e em certas bases sociais do MAS, cresce um sentimento de fadiga e raiva pela arrogância e impunidade dos representantes da “massa”, especialmente na população urbana, hoje majoritária na Bolívia. 

Brechas abertas…

Como explicar isso? As pontuais e erráticas políticas sociais do governo de Evo não resolveram nenhum dos graves problemas estruturais da Bolívia; ao contrário, aprofundou o caráter dependente do país, que é exportador de matérias-primas (minerais e energia). A população está se desencantando.

Os doze anos de governo de Evo evoluíram para uma excessiva centralização de poder, com elementos crescentes de bonapartismo e restrições às liberdades democráticas dos opositores. Por outro lado, há corrupção institucionalizada, flagrante e crescente, em todos os setores de atividades. Além disso, afloram elementos de apodrecimento do regime e do partido, que os governantes não conseguem mais tapar. Revela-se a falta de controle do MAS sobre seus militantes que se sentem impunes. Por fim, ressurge o conflito central na Bolívia: a produção da folha de coca, ligada ao problema do narcotráfico.

As críticas da população são ouvidas em táxis, vans, mercados e, além dos centros urbanos, nas áreas rurais. Não há mais aquela unanimidade de apoio popular por trás do líder indígena. Brechas se abrem em todas as partes. Os setores produtores de coca estão divididos entre Yungas versus Chapare (região nativa de Evo). No ano passado, uma lei da coca definiu novas cotas de produção, mas ela continuou aumentando em novas áreas.

O governo pretende controlar a produção das zonas tradicionais e reativou as forças policiais, especializadas na luta contra o narcotráfico, FELCN, infelizmente, célebres nas décadas anteriores. A luta contra essas forças de repressão, financiadas pelos norte-americanos, foi um dos eixos de luta quando se criou o IPSP-MAS nos anos 90. Hoje estamos à beira de uma nova guerra da coca, desta vez, entre um setor de produtores e o governo de Evo.

O movimento “BOLÍVIA DISSE NÃO”
Por outro lado, o movimento “Bolívia disse NÃO” se refere ao referendo realizado em 21 de fevereiro de 2016, quando o NÃO ganhou, contra a mudança de um artigo da Constituição que permitiria a reeleição de Evo em 2019, para o quarto mandato de cinco anos. Transformou-se em um amplo movimento de base, o 21F.

Em qualquer ato público do governo, os representantes do movimento organizam-se para tornar visível o seu lema “Bolívia disse NÃO”, que aparece nas paredes das cidades, nas rodovias, nos postes de luz ou nos painéis publicitários. É um movimento cidadão, não controlado pela oposição política, nem financiado por qualquer candidato, parecido ao movimento dos Indignados na Espanha. Ele cresce porque se apoia no desapontamento de setores da população e no distanciamento do projeto político do MAS.

As próximas eleições nacionais serão no final de 2019, mas a campanha já está na boca do povo. Todo ato cívico está a serviço de demonstrar a bondade do governo e de se defender das críticas que se acumulam. Prebendalismo oficial na ordem do dia, mais do que nunca. Isso não vai melhorar em nada, apenas aumentará as tensões entre os prós e os anti-Evo, dividindo a população e criando temores sobre o que pode acontecer. Panorama triste, longe das esperanças de ontem … .

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