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O homem que amava os livros

Por: Paulo César de Carvalho

Trotsky não é somente um protagonista, mas também um filósofo, um historiador e um crítico da revolução. Nenhum líder da revolução pode deixar de ter, naturalmente, uma visão panorâmica e precisa de suas raízes e de sua gênese. (…) Trotsky, porém, interessou-se também pelas consequências da revolução na filosofia e na arte. Trotsky polemiza com os escritores e artistas (…). Algumas pessoas só conhecem o Trotsky marcial de tantos retratos e caricaturas (…). O Trotsky real, verdadeiro, é aquele revelado por seus escritos. Um livro apresenta sempre uma imagem mais exata e mais verídica de um homem que um uniforme. (MARIÁTEGUI J.C. Do sonho às coisas: retratos subversivos. São Paulo, Boitempo, 2005, pp.91-93).

Em 1932, Walter Benjamin é profundamente tocado pela leitura de “Minha Vida”, e mais tarde Bertolt Brecht declara diante dele que Trotsky bem poderia ser o maior escritor europeu de seu tempo (DEVILLE P. Viva!. São Paulo: Editora 34, 2016. p.78).

Em 1897, no início de sua jornada revolucionária, Lev Davidovitch Bronstein organizou e dirigiu o Sindicato dos Trabalhadores do Sul da Rússia. Hábil na escrita, e confiante no poder da palavra como instrumento de construção, “Lvov” (seu primeiro “nome de guerra”) redigia e imprimia materiais políticos de agitação e propaganda numa gráfica clandestina. Em 1898, já muito visado e perseguido pela polícia, foi preso com uma mala cheia de panfletos. Da cela em Nikolaiev, foi transferido para uma prisão em Kerson, onde “não lhe permitiam fazer exercícios, receber jornais, livros, sabonetes, mudar de roupa” (DEUTSCHER, I. O profeta armado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.63). Depois, foi enviado a um presídio em Odessa, onde era proibido ler tudo o que não fosse obra religiosa.

O jovem marxista ucraniano, “como exercício linguístico, leu a Bíblia simultaneamente em alemão, francês, inglês e italiano”, passando “às coleções de periódicos grego-ortodoxos, cheios de polêmicas contra os agnósticos, ateus e, especialmente, os maçons” (idem, p.64). Lev aproveitou as restritivas condições de leitura entre as grades para extrair o máximo do mínimo que a dura situação lhe oferecia. Em dois níveis “desiguais e combinados”, a literatura teológica lhe serviu tanto como ferramenta para estudar várias línguas quanto como meio de compreender “as polêmicas dos cultos autores ortodoxos” (idem, p.64). Apesar das proibições, teve acesso a obras do biólogo Darwin e do marxista italiano Labriola, devorando-as com fome de saber, para digeri-las criticamente.

Deportado para a Sibéria, dedicou-se a autores clássicos da literatura russa (como Gógol, Tolstói e Gorki), escritores franceses (como Taine e Émile Zola), filósofos alemães (como Nietzsche) e pensadores austríacos (como Schnitzler). Na aldeia gelada, Bronstein tornou-se colaborador da Revista Oriental: assinando com o pseudônimo de “Antídoto”, só podia escrever sobre temas filosóficos e literários. O artigo de estreia já mostrava o estilo sofisticado e mordaz que caracterizaria o autor: chamou o “Zaratustra” prussiano de “filósofo em poesia, poeta em filosofia”, considerando seu pensamento “mais obscuro que profundo”.

Em 1902, fugiu da Sibéria com passaporte falso, em que registrou o nome que o acompanharia para sempre: “Trotski”, ironicamente, era um dos carcereiros da prisão de Odessa. Na longa viagem, passou noites e dias acompanhado dos versos épicos do poeta grego Homero, cuja obra é fundadora da literatura ocidental. Chegando a Samara, onde ficava a sede russa do jornal Iskra, foi recebido por um colaborador de Lenin: a reputação literária de Leon lhe rendeu o apelido de “A Pena” e a convocação para se encontrar com Vladimir Ulianov na sede estrangeira do periódico. De volta à Rússia, aportou em Kiev com a identidade de “Arbuzov” (um alferes reformado), tornando-se presidente do Soviete de Petrogrado na Revolução de 1905: debelada a insurreição, foi novamente preso, condenado e deportado para a Sibéria.

As condições hostis da prisão polar, contudo, foram mais uma vez transformadas em tempo útil para a formação teórica e política: “Pode ser que o tempo que seremos obrigados a passar em Obdorsk seja uma pausa que a história nos concede para completar nossos estudos e preparar nossas armas” (SERGE, V. Vida e morte de Trotsky. São Paulo: Ensaio, 1991. p.25). Sobre a temporada no inferno do cárcere, o biógrafo Isaac Deutscher anotou o seguinte depoimento do prisioneiro, confirmando as suas expectativas: “Deitado em minha cama, absorvo-os com o mesmo prazer físico com que o gourmet beberica seu vinho escolhido ou inala o fumo fragrante de um bom charuto (…). Foi então que, pela primeira vez, tomei realmente conhecimento dos grandes mestres do romance francês, em sua língua original” (obra citada, p.192). Segundo o autor da trilogia biográfica, o revolucionário “estava agora longe daqueles dias passados nas prisões de Kerson e Odessa, quando abrira caminho laboriosamente pelas teorias de Marx”. Nessa época, Trotski “já não estudava marxismo – ensinava-o; sua mente estava livre para ocupar-se da literatura europeia” (idem, ibidem).

Na verdade, seria melhor esclarecer que Leon não deixou de estudar marxismo, mas que se ocupou dele em distintas ordens de discurso, em diferentes esferas da produção de conhecimento: das polêmicas teológicas dos “autores cultos ortodoxos” à teoria evolucionista de Darwin, da filosofia niilista de Nietzsche à literatura realista de Zola. Discípulo de Karl, tomou para si o desafio de fazer “uma crítica impiedosa de tudo o que existe”, armando-se de uma teoria capaz de explicar a “produção [e reprodução] social da vida” em todas as suas múltiplas dimensões. Mas, lembrando o que disse na cadeia depois do “ensaio geral” de 1905, seu objetivo era “completar os estudos e preparar as armas”, articulando dialeticamente teoria e prática, pensamento e ação. Sem jamais esquecer Marx, Trotski sabia que, para fazer a revolução, as “armas da crítica” deveriam se combinar à “crítica das armas”.

Assim, pegando o “trem da história” em 1905, “rumo à estação Finlândia” em 1917, ele dirigiu com Lenin a vitoriosa Revolução de Outubro. Depois, entre 1918 e 1921, organizou o Exército Vermelho, dirigindo cinco milhões de combatentes até a derrota final dos inimigos imperialistas. Nessa época, Trotski viajou cerca de 105 mil quilômetros (quase três voltas ao redor da Terra), atravessando as vastidões russas de ponta a ponta em seu famoso “Trem Blindado” vermelho. Na locomotiva bolchevique havia uma estação telegráfica, uma estação de rádio, uma gráfica, uma biblioteca, um vagão-hospital, um vagão-garagem, um pequeno esquadrão aéreo, um “tribunal revolucionário”…

No meio do trem, “o reduto do comissário do povo é um pequeno escritório-biblioteca ladeado por um banheiro e um sofá. A mesa de trabalho ocupa todo um lado, encimada por um grande mapa da Rússia. Do outro lado as estantes, as enciclopédias, os livros arrumados por autor e idioma (…), folheia ali uma tradução francesa da obra filosófica de Antonio Labriola, encontra ali a antologia de Mallarmé, Verso e prosa, de capa azul (…)” (DEVILLE P. Viva!. São Paulo: Editora 34, 2016. p.40). Na biblioteca sobre trilhos marxistas, encontravam-se livros sobre a “arte da guerra” e obras de “arte poética”, volumes de filosofia e brochuras de teoria política: entre as estantes, Leon transitava por ensaios, tratados, romances, contos, poemas, em edições russas, alemãs, francesas, inglesas, espanholas…

Esta imagem, aliás, é emblemática, revelando as duas faces “desiguais e combinadas” que formam a identidade do revolucionário: mostra, simultaneamente, o lado intelectual do erudito homem de letras e o lado prático do obstinado homem de ação. Na lente do escritor Patrick Deville, eis o retrato das “contradições” do bolchevique que tinha um livro na cabeça e uma arma na mão: “Como todo russo letrado, sempre que vê trilhos Trotski não consegue deixar de pensar em Tolstói e em Anna Karenina, de lembrar-se com prazer ‘Anna Arkadiévna respirava a plenos pulmões o ar frio repleto de neve e, sem se afastar do vagão, olhava a plataforma e a estação iluminada’. Mas estão em guerra. É preciso afastar-se do vagão-biblioteca, subir as encostas que ladeiam a estrada de ferro, animar os combatentes, inflamá-los, distribuir o Jornal do Trem, reunir os desertores e os colaboradores (…)” (obra citada, p.40).

Enfim, pegando o “trem da história” de 1921 para 1923, às vésperas da morte de Lenin, em pleno combate ao processo de burocratização do Partido e do Estado, Leon Trotski assinou Literatura e Revolução. Se, quando o jovem “Antídoto” começara a escrever críticas literárias, ele ainda não investigava as relações possíveis entre as obras e a ação política, esse seria um dos motes centrais do livro. Diferentemente da época da guerra civil, em que Anna Karenina lhe viera incidentalmente à memória enquanto inspecionava os soldados no front, a literatura se tornava agora o próprio campo de batalha. No livro, “A Pena” questionou a estética simbolista, investigou o “futurismo russo”, analisou a “cultura proletária”, discutiu a “arte revolucionária”, refletiu sobre a poesia de Maiakovski, homenageou o poeta Iessiênin…

Aliás, focalizando o gosto literário de Leon, Valentim Facioli faz o seguinte retrato do leitor quando velho: “Com efeito, sabe-se que Trotski tinha lido os simbolistas russos e mesmo os franceses, em particular Mallarmé, mas tudo leva a crer que não lera nem conhecera a obra de Rimbaud e a de Lautréamont, ambos precursores do surrealismo. O gosto manifesto e pronunciado de Trotski com relação ao romance, que considerava como ‘uma grande arte’, sua admiração por Zola e mais ainda por Jules Romain (…) não podiam vencer a convicção de Breton, muito pelo contrário. Por ocasião de uma das primeiras conversas, Trotski, com ardor, defendeu Zola, procurando manifestamente opor o naturalismo ao surrealismo. Tentando ser conciliador, Breton admitiu que havia poesia nos romances de Zola (…)”. (BRETON-TROTSKI, Por uma arte revolucionária independente. São Paulo: Paz e Terra, 1985. p.20).

Para contextualizar, e concluir, essa passagem (no “trem da história”) reporta aos debates estéticos entre o revolucionário russo e o poeta surrealista francês: em 1938, André Breton foi ao encontro de Leon Trotski no México, último exílio do maior parceiro de Lenin. Ambos estavam preocupados com a degeneração da arte, convertida em instrumento de propaganda pelos stalinistas: contra o realismo socialista, em defesa da liberdade de criação artística, redigiram o manifesto da FIARI, fundando a Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente. No mesmo ano, Trotski fundaria também a Quarta Internacional. Este seria, enfim, o derradeiro combate do velho marxista que amava os livros, assassinado por um agente stalinista em 1940, enquanto escrevia o seu último livro: a biografia do homem que odiava os livros – retrato dos homens que tratam a literatura e a revolução como maltratam os cachorros.

*Paulo Cesar de Carvalho (Paulinho) é militante da Resistência/PSOL

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