Pular para o conteúdo
Colunas

É ou não é possível derrotar o golpe nestas eleições?

Marcelo Camargo/Ag. Brasil

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

As virtudes dos homens são semelhantes ao vôo dos pássaros.
A ave que se habitua com a paisagem rasteira perde o gosto pela altura.
Sabedoria popular indiana

A resposta ao enunciado da pergunta do título é complicada, porém, inescapável. É complicada porque respostas simples, seja o sim ou o não, são insatisfatórias. É inescapável porque a essência da luta eleitoral é saber se o próximo governo irá ou não levar adiante o programa de ajustes econômico-sociais implementado pelo governo Temer, e que tenta reposicionar o capitalismo periférico brasileiro no mercado mundial para atrair investimentos que possam potencializar a saída da recessão.

Evidentemente, as eleições serão em dois turnos, e a pergunta deixa implícita duas premissas incertas, neste momento, porque estamos diante de uma luta eleitoral. A primeira premissa é que a hipótese mais provável é que o segundo turno não será uma disputa entre duas candidaturas do campo político que apoiou o golpe. Uma hipótese é uma conjectura. O cálculo nesta análise é que a candidatura do PT será beneficiada pela transferência de votos de Lula em uma escala tal que permitirá ir à disputa no segundo turno. A segunda premissa é que é possível, porém, ainda muito indefinido, que a rejeição a Temer, depois de dois anos no poder, seja maior do que a rejeição ao PT.

Isto posto, se considerarmos, por exemplo, o não, sem mediações, trata-se de uma resposta parcial e, politicamente, sectária. Porque subestima o impacto monumental que uma eventual vitória eleitoral da candidatura do PT teria sobre o estado de ânimo dos setores mais organizados da classe trabalhadora, e das massas populares, dois anos depois do impeachment, e da terrível experiência com o governo Temer. Equivale a dizer “revolução ou nada”, o que é um discurso ultimatista. Pior, em função da atual relação de forças desfavorável, em que não há, nem sequer remotamente, disposição para um confronto dessa gravidade, trata-se de um ultimato dirigido aos trabalhadores, e não ao inimigo de classe.

A esquerda radical tem como uma das suas palavras de ordem clássicas o slogan “só a luta muda a vida”. É um slogan justo. Deve ser repetido, incansavelmente, porque é educativo e inspirador. Mas ele não autoriza concluir que as eleições não mudam nada. Porque, simplesmente, isso não é verdade. As eleições são, também, um terreno no qual a luta de classes se desenvolve, e a indiferença com o seu resultado revela uma inocência indesculpável. E tem como consequência a incompreensão de quem se deve combater, prioritariamente. Como se todas as candidaturas fossem, igualmente, inimigas. Não é possível lutar contra todos, com a mesma intensidade, o tempo todo. Na política é preciso escolher contra quem lutamos, prioritariamente, se queremos vencer.

Já uma resposta oposta, o sim, sem mediações, é insuficiente e, politicamente, ingênua. Sobreestima o significado das eleições presidenciais, e ignora o peso da maioria reacionária que, provavelmente, será eleita para o Congresso Nacional. Desconhece o peso político que o Judiciário conquistou com a operação Lava Jato, desconsidera a força econômico-social da classe dominante, e subestima a pressão imperialista sobre o Brasil. Esquece o deslocamento de uma parcela importante da classe média para a direita, e diminui o impacto do surgimento de um movimento neofascista. Não menos importante, fantasia que um possível futuro governo liderado pelo PT estaria disposto a ir até a uma anulação da obra do golpe. O que só seria possível apelando à mobilização popular permanente, uma condição incontornável para os previsíveis confrontos, a começar pelo indulto de Lula. Acontece que o PT está autolimitado pelas próprias contradições internas de sua direção, evidenciadas durante o ano de 2015, quando Dilma Rousseff nomeou Joaquim Levy e seu plano.

Respostas simples sem mediações são autoengano. Uma resposta mais complexa depende de como compreendemos o que foi o golpe do impeachment de Dilma Rousseff. E depende, também, de como definimos o que seria a sua derrota. Se entendermos que o golpe foi somente a derrubada do governo de coalizão liderado por Dilma, e se entendermos que sua derrota equivale, simplesmente, à eleição da candidatura do PT, então a resposta é sim, e ponto final. Só que essa conclusão é superficial, por várias razões. É uma meia verdade. Meias verdades são respostas falsas.

Se percebermos que o golpe foi mais do que o impeachment, se percebemos que a votação no Congresso Nacional foi a forma supereestrutural de uma mudança na relação social de forças entre as classes e, em decorrência, de uma transformação da relação política de forças entre os partidos, então, a resposta é mais complicada. A classe dominante brasileira se uniu para derrubar Dilma Rousseff, depois que alguns milhões de pessoas dos setores médios foram às ruas, porque se unificou em torno de um programa: criar as condições econômico-sociais internas, através de um ajuste fiscal recessivo brutal, para que o Brasil possa disputar uma parcela da gigantesca massa de capitais disponíveis no mercado mundial, agora que os antagonismos entre os EUA e a China se intensificaram.

Uma vitória eleitoral do campo político do golpe, ou seja, das forças políticas que apoiam o programa de ajuste fiscal resultará, certamente, ainda em 2019, em: (a) uma ofensiva para a aprovação de uma reforma da previdência que estabeleça a idade mínima aos 65 anos para acesso a aposentadoria; (b) uma ofensiva para novas privatizações de estatais, desnacionalização da economia, facilitação da entrada e saída de capitais; (c) uma ofensiva sobre a universidade pública e privatização da educação; (d) uma ofensiva sobre o SUS e facilitação da privatização da saúde, etc.

Claro que uma derrota eleitoral das candidaturas do golpe – Bolsonaro, Alckmin, Marina Silva, Meirelles, Álvaro Dias, Amoêdo – seria um desenlace extraordinário e muito positivo. Na verdade, seria espetacular e até surpreendente.

Seria espetacular porque teria alguma justiça poética. Afinal, teria sido muito previsível uma derrota eleitoral do PT em 2018, se o governo Dilma Rousseff tivesse cumprido seu mandato até o fim, em função tanto do agravamento da recessão prolongada iniciada em 2014, quanto da repercussão da Lava Jato.

Mas, ainda que considerando que este desenlace teria como consequência uma elevação do ânimo na classe trabalhadora, e um previsível desnorteamento, pelo menos temporário da classe dominante, do que decorreriam condições mais favoráveis de luta, isso não permite concluir que um futuro governo do PT corresponderia, diretamente, a uma anulação da obra do golpe. Seria um cenário mais favorável, mas somente o início de uma nova conjuntura de luta.

Nesse contexto, quanto maior for a votação da candidatura Boulos/Sonia Guajajara no primeiro turno, melhores serão as condições para a luta que virá depois das eleições, independente do resultado do segundo turno. Por três razões. Primeiro porque a ida da candidatura do PT para o segundo turno, em função da escala da disputa, não depende da votação da coligação liderada pelo PSOL. Segundo porque as condições para pressionar o PT pela esquerda serão mais favoráveis. Terceiro porque a reorganização da esquerda será impulsionada com maior força, favorecendo as condições de luta das massas populares.

FOTO: Deputado Bruno Araujo profere o voto que autoriza o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, no plenário da Câmara dos Deputados. Marcelo Camargo/Agência Brasil

Marcado como:
eleições 2018 / golpe