No capitalismo contemporâneo, as disputas em torno do orçamento (fundo público) se apresentam como momentos cada vez mais importantes da luta de classes. Em termos concretos: quem abastece o fundo público? E qual é a destinação dos seus recursos? Em outras palavras: quem paga e quem recebe o dinheiro do orçamento?
Em um contexto de crise do sistema, as classes dominantes têm redobrado os seus esforços nessa batalha. O discurso ideológico de seus principais representantes nas eleições em defesa do “ajuste fiscal” combina a ideia de que a carga tributária brasileira seria excessivamente alta, com a defesa da necessidade de “fechar a conta”, isto é, reduzir o déficit orçamentário. Dessa forma, ocultam o fato de que os mais ricos são proporcionalmente menos taxados e buscam justificar o corte de recursos para os serviços públicos utilizados pela maioria da população.
É tarefa dos socialistas evidenciar a falácia dessas formulações e apresentar alternativas programáticas sintonizadas com os interesses da maioria trabalhadora da população.
Como arrecadar?
De acordo com dados apresentados por um estudo da OCDE e pela Receita Federal referentes a 2015, a carga tributária brasileira correspondia a 32% do PIB. No mesmo patamar, estavam países como Argentina, Canadá e Reino Unido. Na Noruega, na Alemanha e na Bélgica esse índice era superior, ao passo que Uruguai, Chile e México apresentavam percentuais menores. Tomado isoladamente, esse número revela muito pouco e, ainda pior, encobre a gritante desigualdade na origem dos recursos públicos.
No mesmo ano de 2015, 49,6% dos impostos arrecadados no Brasil provinham da tributação de bens e serviços, ainda segundo o estudo da OCDE. Esses impostos incidem de forma linear sobre tudo que é consumido pelas diferentes classes sociais. Com isso, burgueses, trabalhadores e a classe média pagam o mesmo percentual sobre o preço do bem consumido. Porém, a população trabalhadora contribui, proporcionalmente, muito mais, isto é, destina uma parcela maior de sua renda para o pagamento desses tributos.
Já os impostos sobre a renda, correspondiam a apenas 20,9% da arrecadação, só superando o índice argentino. Com isso, evidencia-se que apenas uma pequena parte da tributação brasileira possui caráter progressivo, isto é, incide em maior proporção sobre aqueles que dispõem de mais recursos. Mesmo aqui, entretanto, há importantes distorções.
No imposto de renda, por exemplo, a escassez de reajustes na tabela desde 1996 acumulou uma defasagem de mais de 80%. Isso faz com que milhões de pessoas que deveriam ser isentas sejam tributadas, ao passo em que o pequeno número de faixas estabelecidas faz com que um trabalhador que receba salário superior a 4.600 reais e um grande especulador milionário contribuam com o mesmo percentual de 27,5%. Por fim, note-se ainda que parte significativa dos ganhos dos mais ricos escapa à tributação, seja pelo recurso a artimanhas legais e/ou contábeis, seja pelo efeito da legislação que isenta lucros e dividendos da tributação.
Uma proposta socialista para a tributação deve caminhar em sentido inteiramente contrário. É preciso tanto inverter a proporção entre impostos sobre o consumo e sobre a renda, quanto tributar de forma proporcionalmente mais elevada os mais ricos. Para isso, é preciso inicialmente reduzir e simplificar os impostos sobre bens e serviços. Quem ganha até 6 salários mínimos deve ser isento do imposto de renda e, além disso, deve haver aumento do número de faixas e ampliação das alíquotas cobradas dos mais ricos (antes de 1964, a alíquota mais alta no Brasil chegou a ser de 65%). Lucros e dividendos devem voltar a ser taxados, como eram até 1995, e deve ser criado um imposto específico para as grandes fortunas.
Para complementar esse quadro, também é fundamental ampliar e adotar a progressividade na tributação sobre doações e heranças, que são importantes mecanismos de transmissão de recursos entre as camadas mais ricas da população. Por fim, como as propriedades urbanas e rurais respondem por parte significativa da concentração da riqueza no país, também devem ser objeto de nova legislação. Nesse sentido, deve-se cobrar as dívidas acumuladas pelos grandes proprietários, aumentar as alíquotas, enfatizando a progressividade, e revisar toda a atual distribuição da incidência dos tributos sobre a propriedade.
Como gastar?
Em 2017, cerca de 40% do orçamento federal (ou R$ 986 bilhões) foi destinado para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública, o que expressa o predomínio do capital portador de juros (popularmente chamado de “capital financeiro”) na atual configuração do capitalismo. Para garantir o constante fluxo desses recursos para os grandes investidores e especuladores que controlam a maioria dos títulos da dívida brasileira, operam uma série de instrumentos legislativos.
Dentre eles, destacam-se a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF, de 2000) e a Emenda Constitucional 95 (2016), também chamada de “Emenda do Teto de Gastos”. A primeira estabeleceu um limite para o percentual dos recursos públicos que pode ser empregado em despesas de pessoal. A segunda, por sua vez, atrela o crescimento dos investimentos e despesas públicas à variação do índice de inflação por vinte anos. Em nenhuma delas há qualquer limitação do montante a ser despendido com a dívida pública.
Como resultado desse arcabouço legislativo, fica tolhida quase toda margem de manobra do Estado para oferecer serviços públicos de qualidade e realizar investimentos que gerem empregos e dinamizem a economia. Considerando que já há déficit de investimentos (em pessoal, insumos, equipamentos, etc) em áreas-chave como saúde e educação, e que a população brasileira permanece crescendo anualmente, pode-se projetar para o curto prazo um cenário de colapso de tais serviços.
Uma transformação dessa situação passa, necessariamente, pela colocação das necessidades da maioria trabalhadora da população em primeiro plano, secundarizando os interesses dos rentistas da dívida pública. Para isso, conforme já afirmamos com mais detalhes em outro texto, defendemos a imediata auditoria dessa dívida, seguindo disposição constitucional, e a suspensão do pagamento para os grandes especuladores. De forma complementar, é preciso agir para revogar os mecanismos legais que engessam o manejo do orçamento – como a LRF e a EC 95.
Com os recursos assim disponibilizados, será possível aumentar os investimentos nos serviços públicos básicos (educação, saúde, habitação, etc), implementar uma política de valorização salarial do funcionalismo público e colocar em marcha um amplo programa de obras públicas (priorizando a infraestrutura do país).
O sentido de uma política orçamentária socialista
Longe de ser uma questão meramente contábil ou “técnica”, o manejo orçamentário traduz de forma prática um conjunto de escolhas políticas. Em nossa concepção, o orçamento deve funcionar prioritariamente como um instrumento de transferência de renda e combate das desigualdades sociais. Ou seja, é preciso que os mais ricos contribuam mais e que a maioria dos investimentos se direcione ao atendimento das necessidades da classe trabalhadora e da população mais pobre.
Além disso, o orçamento também deve possibilitar que o Estado influencie o desenvolvimento do país. Ele deve ter capacidade de investir em áreas prioritárias da economia, gerando empregos e fortalecendo a soberania nacional.
Tais escolhas, evidentemente, só podem ser tomadas caso se abandone a perspectiva de “governar para todos” e se tenha clareza da necessidade de enfrentar diretamente os setores sociais que atualmente se beneficiam da política tributária regressiva e do mecanismo da dívida pública.
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