Pular para o conteúdo
Colunas

A razão golpista: os sonhos do capital e a eleição presidencial

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Quando os noticiários políticos do dia cessam, os homens do capital, certificados de que seus prepostos da grande imprensa fizeram tudo conforme o combinado, podem finalmente descansar. Dormindo, seus desejos nem tão recônditos afloram livres de obstáculos morais. Um Brasil sem direitos de qualquer ordem, salvo os da propriedade privada, é o conteúdo íntimo, latente, de seus impudentes sonhos, nos quais não têm lugar incômodos superegóicos como liberdades civis, direitos democráticos, eleições regulares e constituições liberais. Com a razão em suspenso, os golpistas se mostram como são – eles são onde não pensam, diria Lacan. Desacordados, se deliciam com a execução onírica de uma austeridade total implementada ad eternum, e que não precisa ser submetida a quaisquer mecanismos de aferição popular, por mais blindados que estes sejam. Como, no inconsciente, passado e presente muitas vezes se combinam, e as espacialidades se movem livremente, vez por outra ajustes fiscais obscenos e os atuais “trabalhadores intermitentes” misturam-se com ditadores, coturnos, plantations e cativos. Tempos pretéritos de açoites, oligarquias e generais figuram nos sonhos do capital de um futuro privatizista, quando o cultuado Deus-mercado não reservará aos direitos sociais senão algumas poucas galerias de um museu.

Contudo, quando o sonho dá lugar à vigília, o caminho para o prazer pleno, o nirvana neoliberal, já não é livre de obstáculos. No caminho da burguesia tem uma pedra, ou melhor, uma eleição. Uma vez despertos, e ainda sentados sob seus lençóis egípcios de um milhar de fios, os homens do capital são imediatamente chamados à realidade, na qual seus desejos distópicos com traços de Metropolis de Fritz Lang têm de levar em conta as medições objetivas, sendo, assim, limitados pelos incômodos da democracia liberal, isto é, pelos incômodos de seu próprio regime político eleitoral. De pé e bem alimentados, nossos homens do capital se põe a operar com a razão, a razão golpista. Para ela, o objetivo central do Golpe, a saber, a execução de profundas contrarreformas que removam os óbices constitucionais ao aumento da lucratividade das corporações, deve continuar a ser perseguido, porém agora com a legitimidade conferida pelo sufrágio universal. A retirada de direitos deve continuar, mas sob vestes democráticas. O baile da austeridade tem que continuar, porém, depois de outubro/novembro, seus participantes deverão vestir as máscaras constitucionais, recentemente dispensadas.

O programa do Golpe, portanto, precisa seguir sendo aplicado por meio de um novo governo, surgido das urnas, é o que pensa a razão golpista. Aqui está o x da questão, o principal problema dos homens do capital nesses tensos dias de 2018. Como o Golpe se deveu, sobretudo, à compreensão por parte do conjunto das frações dominantes de que as prementes contrarreformas, precisamente por seu caráter pletórico, não poderiam ser executadas pela ala esquerda do partido da ordem, permitir agora a volta do Partido dos Trabalhadores ao poder seria, para aquelas mesmas frações, pôr a perder tudo que Cunha, Moro, Carmen Lúcia e consortes lhes proporcionaram desde o impeachment. Ocorre que, divididas, confusas e desmoralizadas, nenhuma das representações políticas tradicionais da burguesia parecia, desde as primeiras pesquisas eleitorais, ter condições de, revelando ou não aos votantes seus planos de apartheid econômico-social, obter um êxito eleitoral caso Lula viesse a participar do pleito. Assim, a realização de eleições ordinárias apareceu aos homens do capital como um problema trazido por nada mais do que as folhas do calendário de seu próprio regime democrático-eleitoral. A simples normalidade desse regime – ou seja, a realização de eleições segundo as normas e prazos constitucionais – traduziu-se em uma anormalidade política, exigindo, portanto, soluções anormais, excepcionais.

Era preciso impedir que Lula concorresse à Presidência. A razão golpista não tergiversou. Proibir a participação de Lula nas próximas eleições tornou-se, e ainda o é, um imperativo para os homens do capital, assim como a destruição de Cartago o fora para os patrícios romanos quando das guerras púnicas (“Delenda est Carthago!”). Dispensando provas e outras frivolidades, a segunda instância do Judiciário condenou Lula, achando que, com isto, resolveria o problema. Contudo, na sequência, os homens do capital logo se aperceberam de que, diante da insipidez e degenerescência política de seus quadros eleitorais, até mesmo o apoio ativo de Lula, com discursos e comícios, a outro candidato petista poderia ser perigoso demais. Novamente, a razão golpista não demorou a agir. À maneira de Jarbas Passarinho, o cruzado de toga paranaense mandou às favas os escrúpulos de consciência e ordenou a prisão de Lula, ao que de imediato se seguiu a proibição de que, no cárcere, o líder petista pudesse ter acesso à internet, publicar textos e gravar vídeos. Nos últimos dias, quando uma liminar ordenou sua soltura, o mesmo juiz, subvertendo a hierarquia dos magistrados, pediu à Polícia Federal que simplesmente não cumprisse a decisão legal, no que foi de pronto atendido pela gendarmeria.

Nos Brasil atual, para que os desejos do capital possam ser atendidos diante de uma realidade ainda dotada de peias democráticas, a razão golpista parece ter como leis tanto a indisfarçada parcialidade dos agentes da lei, quanto, se necessário, o simples desrespeito às suas próprias leis. Para que os sonhos reacionários da nossa burguesia autocrática se tornem efetivamente reais, é a própria realidade da sociedade burguesa que precisa ter dela extirpada quaisquer elementos que, outrora e alhures, permearam os sonhos dos teóricos democráticos da burguesia, como a liberdade e a igualdade perante à lei, e a realização de eleições livres, autênticas.

Adentramos, assim, em um simulacro de processo eleitoral, no qual a blindagem da atual democracia liberal parece atingir seu ápice. Com Lula fora do pleito e os finórios jornalistas televisivos instilando diariamente nas massas que tal exclusão é inquestionável, os homens do capital, com sua razão golpista, confiam que o poder econômico, os mecanismos antidemocráticos da legislação eleitoral, a mudança do algoritmo nas redes sociais, combinados à indefectível exclusão por parte dos mass media dos candidatos indesejáveis, serão suficientes para que, diante das indesejadas mediações da realidade, seus desejos se efetivem o máximo possível – enquanto, com a crescente conspurcação dessas próprias mediações, é a própria realidade que vai sendo adaptada aos desejos do capital. Diante das regras do jogo, ou pelo menos daquelas que ainda foram preservadas, o que pretendem os homens do capital é alçar à Presidência da República um insosso e reacionário tucano, o qual, escolhido em um soporífero cardápio de políticos de direita como o mais confiável para aplicar os cortes de diretos sociais, será apresentado pelos Mervais e Camarottis como um candidato “de centro”, uma espécie de Macron tupiniquim, uma opção moderada em face dos “populismos” tanto de direita (extrema-direita, na verdade), quanto de esquerda (categoria na qual se incluem todos aqueles que não se mostram dispostos a aplicar a austeridade nos altos teores exigidos pela banca). Legitimado o golpe pelas urnas, absolvida a sedição pela eleição, o caminho estará aberto para que os homens do capital possam sonhar acordados, enquanto nos conduzem ao desemprego assustador, à pobreza extrema, à violência inescapável, à desagregação social e ao neofascismo cruento. Se o futuro for como eles sonham e planejam, o pior do nosso passado, parafraseando Goethe, retornará vivo e terrificante, e só será possível para nós, à beira do abismo, ver esqueletos e pó.

Terá êxito a razão golpista?

 

Marcado como:
eleições 2018 / golpe