Pular para o conteúdo
EDITORIAL

Aborto, classe social e religiosidade

Por: Fátima Dias, de Niterói, RJ

As mulheres querem defender-se contra as criminalizações injustas que lhe são feitas
Ivone Gebara

Não é necessário ser a favor do aborto para ser a favor de sua legalização, assim como não é necessário ser usuário de drogas para defender sua descriminalização. Esses são temas que enfrentam muito preconceito, mas precisam ser discutidos. Deixar as coisas como estão traz consequências cada vez mais cruéis à população. Tais consequências não são, obviamente, para todas as pessoas. Aquelas com mais recursos financeiros que, no Brasil, são minoria, garantem seu bem estar se precisarem de atendimento médico ou orientação psicológica.  As piores consequências são para quem não tem essas possibilidades.

Assim como o conservadorismo pesa sobre os preconceitos e a marginalização de pessoas pelo gênero, pela cor da pele ou pela orientação sexual, também pesa sobre questões relativas a proibições legais de droga ou aborto. Esse peso, porém, é muito mais esmagador quando se trata da população que sobrevive de sua força de trabalho, principalmente sobre os setores mais precarizados e pobres.  Com relação ao aborto, não é novidade que se trata de uma realidade muito antiga e presente em todas as classes sociais. Entretanto, é a mulher sem recursos para pagar uma clínica particular, que sofre as terríveis consequências de um procedimento precário e de alto risco para sua vida. É a mulher pobre que acaba recorrendo ao SUS numa emergência por causa de um aborto mal feito que poderá lhe custar a vida e ainda corre o risco de ser atendida por profissionais conservadores, que ao invés de confortá-la, a recriminam. Há também muitas mulheres trabalhadoras, que acabam fazendo dívidas impagáveis para realizar um aborto seguro. Conheci uma trabalhadora que acabou sendo demitida, para usar o dinheiro do FGTS, por causa de tal dívida.  Essa mesma mulher, se tivesse optado por ter o bebê, poderia acabar sendo demitida após o período de estabilidade pois é uma realidade, em muitas empresas, a mulher não poder ser mãe.

Mas assim como não é preciso ser a favor do aborto para ser a favor de sua descriminalização, também não é preciso ser pobre e ser mulher para lutar pela sua legalização. Basta ter um pouco de sensibilidade, alguma solidariedade e olhar a realidade em que vivemos.  A ilegalidade do aborto não impede sua prática, no entanto, afeta drasticamente o acesso a um procedimento seguro, impondo maior risco de complicações e de morte materna evitável. No Brasil, diversos trabalhos de pesquisa vêm tratando desse assunto cuja notificação, inclusive é dificultada devido a ilegalidade. “Em 2010, as mortes por complicações do aborto acometeram 9,0% das mulheres no país, segundo estimativas do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde (BRASIL, 2011). O indicador Razão de mortalidade materna para o aborto no país arrefeceu no período de 1990 a 2011, de 16,6 para 3 mortes por 100 mil nascidos vivos (IPEA, 2014).  Por se tratar de um procedimento ilegal, os óbitos maternos por aborto inseguro são difíceis de mensurar. As informações são as que mais provavelmente são subnotificadas por complicações que incluem hemorragia, sepse, peritonite, entre outras (WHO,  2012).” i

Essas mesmas pesquisas mostram com muita nitidez a localização sócio econômica dessas mulheres: “O perfil das mulheres brasileiras que morrem em decorrência do aborto são as jovens, negras, de estratos sociais desfavoráveis e que residem em áreas periféricas das cidades (MENEZES E AQUINO, 2009). Entretanto, entre mulheres de maior renda e instrução, o aborto é um desfecho provável diante de uma gestação não desejada (MENEZES, 2006; DINIZ E MEDEIROS, 2010)“ii

Segundo a Folha se S.Paulo, em uma década o SUS gastou 486 milhões com internações para tratar as complicações do aborto, sendo 75% deles provocados . De 2008 a 2017, 2,1 milhões de mulheres foram internadas. Embora o número de internações tenha caído 7%, as despesas hospitalares subiram 12% em razão da gravidade dos casos. O jornal afirma também que ao menos 4.455 mulheres morreram de 2000 a 2016, conforme relatório do Ministério da Saúde.iii

Em 1993, uma revista burguesa, a Veja, entrevistou uma mulher religiosa, Ivone Gebara, que defendeu a descriminalização do aborto. Essa mulher, apesar de freira católica, defendeu consistentemente a necessidade da legalização, para que as mulheres pobres não precisassem morrer ou ficar com sequelas irreversíveis em inúmeros casos.  Contra seus argumentos, só mesmo a intransigência surda das posições dogmáticas. Disse Ivone em 1993: “A mãe tem, sim, algum direito sobre a vida que carrega no útero. Se ela não tem condições psicológicas de enfrentar a gravidez, tem o direito de interrompê-la.” E ainda: “Aborto não é pecado. O Evangelho não trata desse assunto  Já nessa época Ivone tinha contato com feministas no Brasil e com o movimento “Católicas pelo direito de decidir”. Mas o que levou a religiosa a defender a legalização do aborto foi o convívio com mulheres de um bairro pobre de Camaragibe, na Região Metropolitana de Recife, onde viveu e trabalhou voluntariamente durante mais de 10 anos. “As mulheres são extremamente pobres, são vendedoras de bolos, lavadeiras. Elas não têm informação para desenvolver sua vida sexual de forma saudável. Não sabem como evitar filhos e mesmo se soubessem não teriam condições financeiras para fazê-lo por que não dispõem de assistência.” E relata vários casos que atendeu: “Em Camaragibe fui procurada por uma mulher psiquicamente doente, mãe de três crianças subnutridas. Contou que teve uma aventura com um desempregado e ficou grávida. Estava desesperada.(…) Ela decidiu abortar (…) voltou a mim para pedir que a levasse a um médico.” Casos de extrema miséria e até de incesto em que questiona: “Que vida será salva? A da criança que será subnutrida e abandonada? A da mãe que terá seus dramas agravados? O Brasil aborta continuamente seus cidadãos, se não no primeiro mês, ao longo da vida.” (..) e sobre a moral conservadora: “… uma trabalhadora doméstica bateu em minha porta e disse que iria se suicidar. Ela tem oito filhos (…) vive num barraco de taipa e se sustenta como doméstica diarista. Ficou grávida depois de um relacionamento eventual. Foi ao pai que lhe disse que não queria a criança. É quase sempre assim: os pais abortam os filhos com palavras. Procurou sua patroa que se negou a lhe dar dinheiro para o aborto. A madame não quis se envolver, mas garantiu que se houvesse problema clínico, levaria a empregada ao médico depois. Essa é a moral da classe média.”iv

Ivone Gebara, essa corajosa mulher, é doutora em Filosofia pela PUC de São Paulo e em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Lovaina, Bélgica. Ligada à Teologia da Libertação, foi professora de filosofia e teologia no Instituto Teológico do Recife (ITER), entre 1973 e 1989, época em que Dom Hélder Câmara era o arcebispo de Recife.  Após a entrevista dada em 1993, da qual destacamos alguns trechos acima e onde também contesta a posição atribuída às mulheres pelas instituições religiosas, ela foi processada pelo Vaticano e condenada a dois anos de silêncio. Neste período ficou fora do Brasil, concluiu seu segundo doutorado, na Bélgica, e produziu o livro “Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal“.v

Ivone é considerada uma das fundadoras da teologia feminista na América Latina, elaborando sua reflexão feminista a partir dos problemas concretos suscitados no contexto latino-americano. vi Tem ministrado palestras e entrevistas no Brasil e no mundo em que discute o aborto na ótica da opressão de gênero e de classe social. “As mulheres ricas nem permitem que se discuta o problema delas; elas já tem os meios para decidir aquilo que elas acham que devem decidir.” A teóloga opina também que as religiões e as instituições não podem tutelar e menos ainda criminalizar e culpabilizar mulheres inocentes, valorizando muito mais a vida do nascituro ou do feto do que a vida das mulheres.vii  Essa problemática é também discutida pela Teologia Feminista, que se opõe às imposições de dogmas, pois tais imposições gerariam escravidão e dependência, enquanto a busca dos significados mais profundos ajudariam a obter a liberdade.

Na foto, Ivone Gebara, em Est.edu