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TEORIA

Kolimá – 60 graus: o inferno de Chalámov

Por: Paulo Cesar de Carvalho

Desumana, horripilante é a verdade nos campos de Kolimá. Ainda mais horripilante é a verdade sobre o homem que se revela naquelas condições extremas. (…) O homem o é apenas em sentido relativo, enquanto não for colocado em condições de existência desumanas. (…) Depois de ter passado por todos os círculos do inferno de Kolimá, depois de ter arrastado a carriola nas jazidas de ouro e de ter girado o sarilho com o peito nas minas de carvão, depois de ter morrido sob as botas dos criminosos e dos soldados e de ter ressuscitado em uma maca de hospital, Chalámov encontrou em si a grande força de espírito para a escolha definitiva, fundamental: não se desmerecer, não trair ninguém, não se tornar “lacaio” (…) nem capataz com direito de comandar os próprios companheiros (“é melhor – acredito – morrer”) (prefácio de Irina P. Sirotínskaia para Contos de Kolimá, de Varlam Chalámov. Editora 34, São Paulo, 2015, p.14)


1. Pedra de gelo em carne e osso no holocausto stalinista

No extremo leste da Sibéria, onde as temperaturas atingem -60ºC, há um lugar chamado Kolimá. Nesse inferno glacial, existiam campos de trabalhos forçados, em que os condenados pelo totalitarismo stalinista deixavam a vida para sumir da história. Esses homens sem nome, uniformizados, chegavam lá para deixar de existir. Para esquecer que um dia foram homens: que tinham pais e filhos; que eram tios e primos; que amavam e eram amados. Para não lembrar que foram médicos, linguistas, engenheiros, professores, operários, camponeses, escritores: para esquecer que ainda eram homens de carne e osso e ainda tinham alma.

Os desterrados tinham que se educar pelas pedras, que não sentem fome, dor, raiva, saudade: que não sonham, não desejam, não agonizam, não morrem sob a neve. Para sobreviver onde quase tudo o que era vivo congelava, precisavam aprender a ficar mais frios que o gelo: “homens das neves” não têm memória, ignoram o presente, não alimentam esperança. Com o correr do tempo – que, também congelado, não conseguia passar – os seus pensamentos ficavam pesados como as rochas, adquiriam o tom monocromático da paisagem inóspita daquele pesadelo branco. Tudo o que passava pelas cabeças “embranquecidas” daqueles corpos “petrificados”, enfim, era resistir às dezesseis horas de trabalhos forçados, para tomar uns goles quentes de sopa rala (iuchka) antes de desmaiar no pavilhão dos detentos.

Alguns degredados não conseguiram passar na prova de desumanização do primeiro dia; outros suportaram semanas, meses e anos. Poucos, entretanto, resistiram por duas décadas a uma esgotante jornada diária de dezesseis horas, em insalubres minas de ouro e carvão, com fome, sob chuva e neve, num clima mortal de até -60ºC. Um desses seres quase “minerais”, submetidos às mais desumanas privações e sobre-humanas provações, sobreviveu (sobretudo) para contar a história proibida do mais cruel dos “campos de concentração” do stalinismo. Em cerca de duas mil páginas, Varlam Chalámov teceu a saga homérica das dez mil e uma noites escuras da sua longa temporada no inferno da Sibéria.


2. Inverno no inferno do campo de Kolimá

Em Contos de Kolimá, o primeiro volume da “maldita tragédia desumana” dos campos de extermínio do regime burocrático, o escritor-prisioneiro (no papel de prisioneiro-escritor) empresta os olhos para o leitor enxergar o alerta dos demônios aos condenados na porta de gelo da prisão infernal: “Perdei as esperanças vós que entrais”. Qualquer semelhança com Dante não é mera coincidência: no derradeiro nono círculo do Inferno da Divina Comédia, tudo o que resta é o abismo gelado de Lúcifer, cuja temperatura é a mesma de Kolimá.

A propósito, no conto “Os carpinteiros”, o bardo russo usa o próprio corpo como termômetro para medir e descrever a progressão da atmosfera congelante da última estação do inferno de Stálin:


Não mostravam o termômetro meteorológico aos trabalhadores, não havia necessidade, eram obrigados a sair para o trabalho sob qualquer temperatura. Além disso, mesmo sem termômetro, os prisioneiros antigos mediam o frio quase com exatidão: se há nevoeiro gelado, na rua faz quarenta graus abaixo de zero; se o ar da respiração sai com ruído, mas ainda não é difícil respirar, então, quarenta e cinco graus; se a respiração fica barulhenta e visivelmente ofegante, cinquenta graus. Abaixo de cinquenta e cinco graus, o cuspe congela no ar. O cuspe congelava no ar há duas semanas.

(Varlam Chalámov, Contos de Kolimá, Editora 34, São Paulo, 2016, p.38).

Para se ter uma ideia do que significava viver nesse clima de terror dos campos de extermínio dos “coveiros da revolução”, do quão difícil era não morrer em Kolimá, vencendo minuto a minuto a fome, hora a hora o cansaço, enfrentando dia a dia a crueldade daquela geleira, Chalámov evoca a lembrança de um companheiro de infortúnio. A rotina insuportável de Potáchnikov era a mesma que o escritor banido suportou por quase vinte anos:

Mas o frio não diminuía e Potáchnikov compreendeu que não podia mais suportar. O café da manhã rendia uma hora de trabalho, no máximo, depois vinha o cansaço, e o frio penetrava o corpo até os ossos — essa expressão popular estava longe de ser só uma metáfora. Restava apenas sacudir a ferramenta e trocar de perna aos saltos para não se congelar antes do almoço. O almoço quente, a famigerada iuchka e mais duas colheres de mingau, pouco ajudava a recobrar as forças, mas pelo menos esquentava. E de novo as forças para o trabalho duravam uma hora, e então Potáchnikov era tomado pelo desejo ora de se aquecer, ora de simplesmente deitar sobre as pedras congeladas espicaçantes e morrer. Por fim o dia terminava e, após o jantar, depois de tomar água com o pão que nenhum trabalhador comia no refeitório, junto com a sopa, mas sempre levava para o pavilhão, Potáchnikov ia dormir no mesmo instante” (idem, p.39-40).

Minucioso em seu retrato do claustro, Varlam recorda que os prisioneiros dormiam como chegavam das minas: vestidos de “chapéu, telogreika, buchlat e calças de algodoim”. Mesmo assim, e dormindo na parte mais quente do pavilhão, “os cabelos congelavam-se e grudavam no travesseiro”. O trecho a seguir é exemplar para o leitor compreender melhor o processo de desumanização a que eles eram submetidos pelos algozes do regime autoritário.

Há muito entendera de onde vinha esse embotamento da alma, esse frio espiritual. O frio cortante, aquele mesmo que transformava o cuspe no ar, atingia a alma humana. Se ossos podiam congelar, também o cérebro podia congelar e embotar, também a alma podia congelar. No frio intenso, não era possível pensar em nada. Tudo ficava simples. Com frio e com fome, o cérebro abastecia-se mal, as células cerebrais secavam (…). Era assim com a alma, congelava inteira, encolhia-se e talvez ficasse fria para sempre (idem, p.40).

O escritor Jean Genet, que passou longos anos em prisões na França, dizia que, para sobreviver ao absurdo, era preciso “se desumanizar para não horrorizar”. O condenado russo, em condições muito mais degradantes, mostra que a “desumanização” é regida por uma dinâmica progressiva e inconsciente. Não depende, portanto, da vontade, o que implica que é impossível atingi-la racionalmente ou resistir a ela pela força do pensamento. Chalámov poderia dar a Genet o exemplo de um dos milhares de condenados de Kolimá: “Todos esses pensamentos ocupavam Potáchnikov antes, agora não restava nada além do desejo de aguentar, de sobreviver ao frio intenso”.

3. Frio, Fadiga e Fome: o Cérbero siberiano

No último círculo do inferno stalinista, não restava aos farrapos humanos nada além do desejo de aguentar: aguentar o frio de 60 graus negativos; aguentar a jornada de dezesseis horas; aguentar a fome intermitente. Resistir à temperatura glacial é muito difícil; resistir aos trabalhos forçados é muito difícil; resistir à desnutrição é muito difícil: mas resistir a todas essas adversidades juntas, durante quase vinte anos, parece impossível. Tão impossível que as histórias de Varlam Chalámov chegam a parecer ficção, como ele mesmo constata no texto “O mulá tártaro e o ar livre”:

É difícil imaginar tudo isso de antemão numa representação verídica, pois tudo o que aconteceu lá é tão incomum, tão inconcebível, que o pobre cérebro humano não tem forças para compor um quadro de imagens concretas daquela vida (Contos de Kolimá, Editora 34, São Paulo, 2016, p.152). 

A realidade, entretanto, impôs-se sobre a ficção, ampliando as fronteiras do absurdo: por isso, para que se compreenda o nível de crueldade do regime autoritário, o grau de desumanização a que submeteu os condenados, como pressuposto para lutar contra os herdeiros do tirano, o testemunho do escritor é fundamental. Em “A primeira morte”, por exemplo, Chalámov ajuda o “pobre cérebro humano” do leitor a “compor um quadro de imagens concretas” das privações e provações daquela vida tão próxima da morte.

No conto, o quase “autor defunto”, falando quase como um “defunto autor”, escreve as “memórias póstumas” do terror totalitário, mostrando como o frio de 60 graus abaixo de zero, o trabalho hercúleo de dezesseis horas e o espectro da inanição se combinavam numa “profunda e tenebrosa unidade” no inferno de Kolimá (Baudelaire não imaginaria essas “correspondências” diabólicas em suas flores do mal). Quando a realidade supera a lenda, registre-se a realidade – para que tragédias como essa não se repitam como farsa. Nessa perspectiva, a obra de Varlam é um antídoto contra o veneno das falsificações históricas da “revolução desfigurada”, revelando a face cruel da “gestapo stalinista”:

Cercavam com escolta e cães todos os que trabalhavam (…) e mantinham-nos dias e noites no trabalho, sem permissão para que se aquecessem ou comessem em locais aquecidos. Carregavam em cavalos a ração de pão completamente congelada e, às vezes, conservas, uma lata para cada dois homens, quando o trabalho se prolongava demais. No mesmo cavalo, retiravam do campo os doentes e esgotados. Liberavam as pessoas somente quando o trabalho estava pronto, para que elas pudessem dormir e depois voltar de novo para o frio glacial, para o trabalho “de verdade”. Notei então uma coisa surpreendente – nesse trabalho de muitas horas, apenas as primeiras seis, sete horas são pesadas e extremamente martirizantes. Depois disso, perde-se a noção do tempo e, inconscientemente, cuida-se apenas de não congelar: trocam-se as pernas, movimentam-se as pás, não se pensa em absolutamente nada, não se deseja absolutamente nada (idem, p.153-154)

Nessa fronteira além do limite da dignidade humana, mais preocupante do que trabalhar dezesseis horas era não congelar: só não petrificando seria possível tentar resistir não apenas à fadiga, mas também à fome. Para se ter uma vaga ideia do nível de degradação dos campos de trabalhos forçados, os presos não pensavam nas dez horas que ainda enfrentariam depois das “primeiras seis, sete horas (…) pesadas e extremamente martirizantes”: seus corpos exauridos e subnutridos concentravam as poucas energias na tarefa de não virar gelo.

Esse “trabalho”, aliás, continuava depois da árdua jornada nas minas, não dando trégua à carne sequer nas poucas horas de descanso:

Se lembrarmos os pavilhões úmidos e sem aquecimento, onde em todas as frestas congelava-se uma camada grossa de gelo (…), as roupas inadequadas e a ração de fome, as lesões por congelamento, e essas lesões são um sofrimento eterno mesmo quando não se recorre à amputação. Se imaginarmos, além disso, quantas vezes era inevitável a ocorrência de gripe, pneumonia e tuberculose (…). Se lembrarmos as epidemias de automutilação. Se voltarmos a atenção para a enorme opressão moral e a desesperança (…). (“O mulá tártaro e o ar livre”, obra citada, p.152). 

Contos de Kolimá é o testemunho de um sobrevivente de um campo de trabalhos forçados do stalinismo: apesar da semelhança com um “campo de concentração” nazista. O próprio autor parece custar a crer que Kolimá não era Auschwitz, que Stálin não era Hitler, e que ele realmente tenha sobrevivido a todas essas improváveis privações e impensáveis provações. Afinal, é realmente “difícil imaginar tudo isso de antemão numa representação verídica, pois tudo o que aconteceu lá é tão incomum, tão inconcebível”.

4. Comendo o pão que o diabo congelou

A obra testemunhal de Chalámov revela detalhadamente o cotidiano trágico desses homens expostos às mais terríveis condições: das dezesseis horas de trabalho em que ficavam enterrados até a cintura em buracos nas minas às sutis variações do termômetro de carne e osso indicando 60 graus abaixo de zero. O escritor jamais esqueceria, também, o gosto de fome da ração do “holocausto” siberiano: para resistir ao esgotamento físico e à hostilidade climática, recorda que os prisioneiros eram alimentados basicamente por alguns goles de sopa, pequenos rabos e cabeças de arenque e pães endurecidos.

Se já é difícil imaginar que um corpo bem nutrido tenha energia suficiente para suportar uma fadiga tão grande e um frio tão intenso, parece inacreditável que seres humanos famintos possam ter sobrevivido às “condições anormais de temperatura e pressão” dos cruéis campos de extermínio do stalinismo. Para que se conheça melhor a dieta famélica a que eram submetidos, é importante saber o que significa a tal iuchka, palavra recorrente nas páginas do cardápio dos Contos de Kolimá: “no sul da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia, [é uma] sopa bem rala com algum complemento” (conforme o glossário da Editora 34, p. 295).

Em uma das trinta e três histórias de terror do livro, sugestivamente intitulada “Pão”, lê-se o seguinte relato gastronômico do refeitório do inferno:

Entregavam o arenque de manhã; dia sim, dia não, uma metade. Ninguém sabia que cálculos havia ali de proteínas e calorias e ninguém se interessava por essa escolástica. O murmúrio de centenas de pessoas repetia uma única palavra: rabos. Um chefe sábio, levando em conta a psicologia do detento, ordenou dar de cada vez ou só cabeças ou só rabos de arenque. As vantagens de umas e de outros eram discutidas repetidas vezes: nos rabos, parecia haver mais carne; a cabeça, por sua vez, dava mais satisfação. O processo de ingestão prolongava-se enquanto chupávamos as guelras, triturávamos a queixada. Preparavam o arenque sem limpá-lo e todo mundo aprovava isso, pois comíamos todos os ossos e a pele (obra citada, p.127).

A cada palavra, veem-se os olhos desnutridos dos condenados se aproximando ansiosos da bandeja e devorando os restos, antes que as suas mãos pudessem escolher rapidamente e pegar ao acaso pedaços maiores ou menores da cabeça ou do rabo do peixe. Na lógica perversa desse jogo, na verdade não havia escolha: a sorte estava do lado de quem tinha o azar menor. Eis a “sabedoria” do chefe: dominando a “psicologia do detento”, transformou o esperado momento da refeição (?) em um jogo, fazendo com que o acaso parecesse escolha, o azar parecesse sorte, a perda parecesse ganho. A comparação com o jogo de cartas não é gratuita: a única distração dos detentos era o baralho (como o escritor informa no segundo conto do livro, “Na fé’). Os restos do arenque, assim, chegavam às mãos famintas como cartas tiradas no escuro: “Qual seria o tamanho do meu pedaço?”. O trecho a seguir ilustra a angústia dessa jogatina diabólica:

Não permitiam trocar, nem protestar, tudo estava nas mãos da sorte, uma carta nesse jogo com a fome. Aquele que, desatento, cortava as porções de arenque, nem sempre entendia (ou simplesmente esquecia) que dez gramas a mais ou a menos – ou aquilo que ao olho parece dez gramas – podem provocar um drama, às vezes sangrento. (…) Enquanto o encarregado da distribuição se aproximava, cada um ia calculando o tamanho do pedaço estendido por aquela mão indiferente. Cada um era capaz de amargurar, se alegrar, se preparar para o milagre, beirar o desespero caso cometesse um erro em cálculos apressados (obra citada, p.128).

Abrindo parêntese, esse “chefe sábio” lembra a personagem “Dr. Benway”, do romance sugestivamente intitulado Almoço Nu, do escritor americano William Burroughs: o sádico era um especialista em “sistemas simbólicos de opressão”, um expert em “táticas de condicionamento”. Kolimá conseguia ser mais terrível que a fictícia “Alexia”, em que “a realidade era um pedaço de carne crua espetada num garfo”: no inferno da Sibéria, não havia carne nem garfo. Nem era preciso: cabeças e rabos de peixe eram comidos com as mãos (e a iuchka era bebida na tigela). Registre-se, contudo, uma semelhança nos exemplos: a palavra “alexia”, que nomeia o “admirável mundo novo” de Burroughs, designa um distúrbio de linguagem que afeta a percepção dos signos, comprometendo a capacidade de decodificar as mensagens.

Aproveitando a intertextualidade, apesar de ser “difícil imaginar tudo isso de antemão numa representação verídica, pois tudo o que aconteceu lá é tão incomum, tão inconcebível”, a história dos campos de trabalhos forçados do totalitarismo stalinista não é um romance distópico: a ficção dos Contos de Kolimá é tão real quanto o rabo e a cabeça do arenque. Aliás, os condenados, submetidos às “táticas de condicionamento” dos lacaios do “Dr. Josef Benway”, passavam por um árduo processo de desumanização, até adquirirem a aparência e o comportamento dos arenques. A diferença é que os peixes não morrem lentamente, trabalhando como escravos para os predadores: eles não têm consciência; já nasceram mudos, frios e debaixo d’água.

O conto “Chuva” (o sétimo do livro) contextualiza essas metáforas, ajudando a conectar os elementos literais e os figurados, para que a alegoria não pareça assim tão distante da realidade:

A chefia depositava grandes esperanças na chuva, nos açoites de água gelada que desciam sobre nossas costas. Há muito estávamos encharcados, não posso dizer até a roupa de baixo porque não tínhamos roupa de baixo. O cálculo secreto e primitivo da chefia contava com que a chuva e o frio nos obrigariam a trabalhar (…). Não podíamos sair dos poços, senão seríamos fuzilados. Só quem podia andar entre os poços era o chefe da nossa brigada. Não podíamos gritar uns com os outros, senão seríamos fuzilados. Então ficávamos calados, enfiados na terra até a cintura, em buracos de pedra, numa longa fila de poços (obra citada, p.56).

É importante observar que, apesar das diferenças entre as imagens, há ligações profundas entre os trechos de “Chuva” e “Pão”: nas duas histórias, Chalámov mostra as formas variantes através das quais o poder repressor se manifesta, condicionando todas as esferas da vida na sucursal do inferno de Kolimá. A chefia que ordenava a distribuição de rabos e cabeças de arenque aos trabalhadores não era a mesma que os obrigava a trabalhar dezesseis horas enterrados nos poços, molhados e calados como peixes: mas ambas funcionavam como partes de uma totalidade. Em outras palavras, não importa se o chefe se chamava Josef ou se o seu nome era Benway, se ele regulava as porções de arenque ou determinava o suplício na chuva: tanto a chefia da “Chuva” quanto a do “Pão” representam funções repressivas, incorporando papéis estruturais de poder no “sistema de controle total” do Estado autoritário (nos termos de Michel Foucault).

Enfim, atando as três pontas entre os contos (o frio, a fadiga e a fome), depois de enfrentar a “tortura do congelamento” (“O mulá tártaro e o ar livre”, p.144), depois de resistir ao “trabalho além das forças”, “a sorte mais próxima era o fim do dia de trabalho, três goles de sopa quente” (“Chuva”, p.57). Bem antes da derradeira refeição, no início da jornada, os corpos eram alimentados com rabos e cabeças de arenque: o pão complementava o cardápio quase sem calorias e proteínas da dieta imposta aos espectros humanos. Aliás, coadjuvante em várias histórias, o pão é tão recorrente nas narrativas que se torna protagonista de uma delas, inclusive dando título ao conto:

Depois ele passa ao pão, cinquenta gramas por dia, distribuído pela manhã; ele mastiga um pedacinho de cada vez e leva-o à boca. O pão todos comem na mesma hora, assim ninguém furta, ninguém pega, pois nenhum deles tem forças para protegê-lo. Só não é preciso se apressar, não é preciso tomar água junto, não é preciso mastigar. Basta chupá-lo como açúcar, como bala. Depois tomar uma xícara de chá: uma água morna enegrecida por uma casca queimada (“Pão”, p.128-129).

5. Os resultados da dieta infernal do “campo de concentração” de Kolimá

Para não morrer em Kolimá – nunca é demais recordar – era necessário resistir às mordidas das três bocas do Cérbero à porta do inferno stalinista: o frio, a fadiga e a fome. Nesse “grande sertão” de gelo sem “veredas”, o que sobreviveu para contar a história jamais esqueceria a lição, que não cansa de repetir aos leitores: “viver é muito perigoso”. Varlam (mais direto que Riobaldo de Rosa) ensina – a cada palavra, a cada frase, a cada período, a cada parágrafo, a cada conto – que “morrer é muito fácil”: como poderia um corpo humano, feito de carne e osso, suportar dezesseis horas de trabalho pesado, num frio de 60 graus negativos, alimentado apenas com sopas ralas, pequenas porções de rabos e cabeças de arenque e cinquenta gramas de pão?

De fato, é impossível imaginar que alguém conseguisse aguentar “o açoite da água gelada nas costas”, enfiado em um buraco de pedra, dormindo com as roupas molhadas, com os cabelos congelados grudados no travesseiro, no inóspito pavilhão sem aquecimento, faminto, sem sequer adoecer. Diante dessas terríveis adversidades, o corpo precisaria reunir forças sobre-humanas para não sucumbir à gripe, à pneumonia, à tuberculose e às lesões provocadas pelo congelamento. O relato a seguir mostra que o quadro era ainda mais assustador:

Se acrescentarmos a tudo isso o escorbuto praticamente generalizado, transformado (…) numa epidemia terrível e perigosa, responsável pelo fim de milhares de vidas; a disenteria, pois comiam tudo o que encontravam, na tentativa de encher o estômago doído de fome, catando restos da cozinha e dos montes de lixo cobertos de moscas; a pelagra, doença de miseráveis, com a inanição que leva a pele das mãos e da planta dos pés a descolar como uma luva e a pele do corpo inteiro a se descascar em grandes pétalas redondas, parecidas com impressões datiloscópicas; e, finalmente, a distrofia alimentar, doença dos famintos (…). (“O mulá tártaro e o ar livre”, obra citada, p.129).

Chalámov assistiu à morte de milhares de condenados, que não resistiram a tantas drásticas privações. Ele, que conseguiu sobreviver às provações dos campos de extermínio do totalitarismo stalinista, usou o próprio corpo como exemplo do intenso processo de definhamento a que todos os corpos que lá estavam eram submetidos. Ainda que Kolimá não seja Auschwitz, e que Stálin não seja Hitler, é muito provável que muitos leitores, diante do indigesto testemunho a seguir, confundissem o stalinismo com o nazismo. Apesar das aparências, contudo, o retrato de Varlam não é o de um judeu sobrevivente dos campos de Adolf.

A ressalva é fundamental, para que não haja dúvidas de que este depoimento é de outro homem reduzido a pele e ossos (na Rússia do “Guia Genial dos Povos”, não na Alemanha do Führer – ainda que a palavra “führer” signifique, curiosamente, “guia”, qualquer semelhança é mera coincidência):

Os auxiliares de enfermagem tiraram-me do prato da balança decimal (…).

Quanto? – Gritou o médico (…).

Quarenta e oito.

Colocaram-me na maca. Minha altura era de um metro e oitenta centímetros; meu peso normal, oitenta quilos. Os ossos pesam 42% do total: 32 quilos. Naquela tarde gelada, restavam-me dezesseis quilos, ao todo exatamente um pud [antiga medida russa, equivalente a 16,3 quilos]: pele, carne, entranhas e cérebro. Eu não conseguia calcular tudo isso naquela hora (…) (“Dominó”, obra citada, p.199).

Se já é difícil imaginar que um homem de 1.80 cm, pesando 80 quilos, conseguisse trabalhar 16 horas, na chuva e na neve, sob uma temperatura de -60 graus, comendo rabos e cabeças de arenque, soa impossível a hipótese de que esse homem, com 48 quilos, pudesse sobreviver a tudo isso para contar história. O próprio autor – não é demais trazer à memória – parece quase duvidar que esteve lá, e que Kolimá não era Auschwitz: porque realmente tudo isso “é tão incomum, tão inconcebível, que o pobre cérebro humano não tem forças para compor um quadro de imagens concretas daquela vida” (Contos de Kolimá, “O mulá tártaro e o ar livre”, Editora 34, São Paulo, 2016, p.152). 

Nos 33 Contos de Kolimá, o leitor segue a narrativa da “via crúcis” dos condenados, contando com Chalámov cada um de seus 206 ossos. Destes, os que mais saltam aos olhos são os que mais saltam à pele: os do crânio, os do sacro e os do quadril. É como se cada palavra fosse uma falange, cada frase fosse um dedo, cada período fosse uma mão, cada parágrafo fosse o rádio e o úmero, cada conto fosse uma parte de um fóssil: como se cada livro fosse o crânio, o sacro e o quadril, e o conjunto da obra formasse o esqueleto de cada um dos milhares de vítimas do extermínio da “Era Stalinista”. Esses ossos dos “dinossauros” bolcheviques (curiosamente, a causa da extinção dos dinossauros foi a “glaciação”) fornecem elementos materiais para os “arqueólogos” do período contrarrevolucionário reconstituírem a história de terror da degeneração do Estado operário.

Enfim, para sintetizar todas essas questões, chamando a atenção para a enorme relevância do testemunho de Varlam e para a urgência da leitura de sua obra, vem bem a calhar este trecho do prefácio de Irina P. Sirotínskaia, a maior especialista na literatura do sobrevivente do holocausto de Josef:

Essa verdade cruel sobre o homem e sobre o mundo, a possibilidade de que os seres humanos sejam exterminados, de que se cometam violências e crueldades, de que os próprios conceitos de consciência e de honra sejam aniquilados, envenenam a sociedade russa – e não só ela –, destroem a ética, difundem uma vil e subterrânea moral do crime. E o ladrão, tanto faz se ministro ou batedor de carteiras, não se envergonha de roubar, o assassino não teme o pecado, o trapaceiro e o mentiroso irrompem presunçosos na economia e na política. De que maneira permanecemos firmes na beira do abismo? Onde encontramos força para nos mantermos de pé? (Obra citada, p.18-19).

6. Artigo 58, -60 graus, 33 contos

No criterioso prefácio, Irina sublinha que Chalámov passou “por todos os círculos do inferno de Kolimá” (ver o excerto da epígrafe), fazendo alusão ao clássico A Divina Comédia, do bardo florentino Dante Alighieri: no longo poema épico – vale lembrar – o “Inferno” é dividido em nove círculos, cada um correspondendo a diferentes punições, conforme as faltas cometidas pelos “pecadores”. A pesquisadora não explicita a referência intertextual: não detalha os “delitos”, nem quais são as respectivas penas dos “criminosos”. Não entrega, também, que as nove provações dantescas são narradas em 33 cantos, e que o primeiro volume do inferno de Varlam – não por mera coincidência – tem 33 contos.

Para compreender essas relações subliminares, é importante recordar que o derradeiro círculo do “Inferno” de Dante era o destino dos condenados pelo “pecado” mais grave: a traição. E que o último círculo do inferno stalinista era a estação final dos “traidores” da “revolução traída” (com o perdão do trocadilho com o livro de Leon Trótski). No texto de apresentação dos Contos de Kolimá, Boris Schnaiderman (a maior autoridade em cultura e literatura russa no Brasil) esclarece o suposto “crime” que custou a condenação de Chalámov, dando início aos seus terríveis pesadelos:

Foi preso por difundir cópias da carta que Lênin havia escrito aos membros do Comitê Central do Partido Comunista, advertindo-os contra as tendências monopolizadoras de Stálin. Em consequência, passou três anos preso. Se isto houvesse acontecido alguns anos mais tarde, certamente não escaparia ao fuzilamento, mas o terror stalinista ainda não se desencadeara em toda a violência.

Preso novamente em 1937, no auge da repressão, passou mais dezessete anos em trabalhos forçados ou residência obrigatória nos lugares mais distantes (Obra citada, p.8).

Para completar o abrangente quadro de referências ao leitor, os editores registram as seguintes informações biográficas sobre Varlam:

Em 1926 é admitido no curso de Direito da Universidade de Moscou e, no ano seguinte, no aniversário de dez anos da Revolução, alinha-se aos grupos que proclamam “Abaixo Stálin”. (…) Em fevereiro de 1929, é detido numa gráfica clandestina imprimindo o texto conhecido como o “Testamento de Lênin” (“Sobre o autor”, obra citada, p.299).

Na orelha da obra publicada pela Editora 34, Irineu Franco Perpetuo (um dos mais prestigiados tradutores e divulgadores da literatura russa no Brasil) faz esta síntese didática da “ficha criminal” do escritor:

Detido pela primeira vez em 1929 como “elemento socialmente perigoso”, e com a última sentença encerrada em 1951, Chalámov passou, entre prisões e breves períodos de liberdade, cerca de vinte anos nos campos de trabalho da URSS. A condenação pelo infame artigo 58 do código penal soviético de 1922, relativo a crimes políticos por atividade contrarrevolucionária, levou-o num primeiro momento aos Urais e, mais tarde, à região de Kolimá, no extremo leste da Sibéria.

Considerando todas essas informações, fica mais nítida a relação intertextual entre o “Inferno” de Dante e o de Chalámov, entre o “pecado da traição à pátria” e o “crime político por atividade contrarrevolucionária”, entre o nono círculo e o campo de Kolimá. Aliás, não é demais acrescentar que, na última parada infernal da comédia dantesca, os “pecadores” não agonizam no fogo: o castigo das vítimas é tremer de frio. Mas, se os versos do poeta florentino não registram a temperatura, o termômetro da pena do escritor russo mede -60 graus. Por isso, se Dante tivesse sido condenado pelo artigo 58, o juiz não teria o nome de Hades: com a foice da morte no pescoço e a cabeça sob o martelo assassino, não teria dúvida de que o demônio supremo era georgiano, bigodudo e se chamava Josef Stálin.

Na “divina comédia” do italiano, depois dos 33 cantos do “Inferno” e da passagem pelos 33 do “Purgatório”, atingem-se os 33 do “Paraíso”: o longo pesadelo é a via de acesso ao sonho, o caminho para a redenção final. Na “maldita tragédia” do russo, depois dos 33 Contos de Kolimá, não há saída possível: mesmo distante dos “enormes paredões de gelo que apartam do mundo”, para sempre carregará na alma a inscrição da kafkiana “colônia penal” stalinista. Nas palavras de Boris Schnaiderman, enxerga-se a eterna cicatriz “Perdei as esperanças vós que entrais” tatuada nas páginas de Chalámov:

Realmente, depois da apresentação de um mundo em que alguém é capaz de devorar um cão ou arrebatar um leitão congelado e comer metade num acesso de loucura, não sobra espaço para nenhum tipo de ilusão (Obra citada, p.8).

Paulo César de Carvalho (Paulinho) é militante da RESISTÊNCIA-PSOL, na luta para que a tragédia do inferno jamais se repita como farsa.

Marcado como:
ex-URSS / stalinismo