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BRASIL

Manipulação da subjetividade e engajamento consentido: a existência inautêntica do trabalho docente

Por: Por: Michelangelo Torres, de Volta Redonda, RJ

Capturar o inimigo é melhor que destruí-lo.
Apanhar intacto um batalhão, uma companhia ou um esquadrão de cinco homens é melhor que aniquilá-los. Pois obter cem vitórias em cem batalhas não representa o máximo da habilidade. O máximo da habilidade é subjugar o inimigo sem lutar.
Assim os homens experientes na guerra subjugam o exército inimigo sem combate. Capturam suas cidades sem assalta-las e dominam sem delongar a operações. (Sun Tzu, A arte da guerra)

As inovações organizacionais do novo complexo de reestruturação produtiva operam por meio da manipulação da subjetividade, uma espécie de estímulo ao engajamento consentido do saber-proletário à lógica da empresa moderna, enxuta e flexível. A prática da solidariedade de grupo é vilipendiada conforme as exigências e metas empresariais. O trabalho em equipe torna-se uma prática de grupo supérflua e concorrencial (“times de trabalho”), os mecanismos “participativos” revelam formas de engajamento desprovidas de qualquer sentido de autenticidade. “O trabalhador é convidado a pensar ‘pró-ativamente’ e a encontrar soluções antes que os problemas aconteçam” (ALVES, 2011 p.111). Nesse sentido, o trabalhador, agora convertido em “colaborador”, deve ser capaz de gerenciar o conflito no ambiente organizacional. Tal “espírito” típico da empresa toyotista estimula um envolvimento consentido do trabalhador à lógica empresarial e a racionalidade instrumental consentida. É o que Heloani (2003) denomina por “manipulação psicológica” no mundo do trabalho.

A relação entre trabalho, flexibilidade e subjetividades no capitalismo contemporâneo constitui um tema de fundamental importância para a sociologia do trabalho. As metamorfoses em curso na gestão da força de trabalho e a reengenharia empresarial operam um movimento incessante em busca permanente por uma subjetividade inautêntica1, nos termos de Lukács. Na era do capitalismo manipulatório (ALVES 2000), imprime-se uma nova forma de organização do trabalho com impactos na subjetividade operária. Combinando-se elementos de continuidade e descontinuidade com o padrão taylorista-fordista, os novos sistemas de organização do trabalho especializam-se em envolver mais intensamente a dimensão intelectual e suas capacidades cognitivas, ou seja, a subjetividade do trabalhador. Trata-se de um envolvimento manipulador. Tertulian (1993) denominou essa manipulação de subjetividade como a expressão de uma “existência inautêntica” e estranhada.

O engajamento consentido do trabalho docente e sua existência inautêntica

As mudanças em curso no capitalismo contemporâneo implicam mutações no processo produtivo e na expansão monumental do setor de serviços, sob o impacto da hegemonia política do neoliberalismo e da financeirização do capital, e a organização dos processos de trabalho adentram numa lógica de intensificação dos ritmos e cobranças produtivas, seguido da precarização crescente do emprego da força de trabalho. O gerencialismo em conformidade com a lógica do capital em recuperação das taxas de lucro e de redução de custos oriundo de reformas do Estado orientadas pelo mercado trazem consequências sem precedentes. Os efeitos desse movimento sobre a educação e o trabalho docente acarretam, conforme revelam inúmeras pesquisas, sérias consequências à subjetividade docente, impactando, inclusive, em adoecimento mental e mal-estar.

A exploração do componente intelectual e a fragmentação e a dispersão dos trabalhadores são características marcantes dessa nova gestão repressiva (BERNARDO 2004). O fato que pretendemos destacar no presente artigo é que a lógica gerencial das corporações capitalistas de mercado penetram cada vez mais o funcionalismo público, notadamente a educação pública, no que se refere ao processo de trabalho docente e dos funcionários técnico-administrativos deste setor. A presença de estímulos e engajamento consentido não são restritas às empresas privadas, tampouco a esfera da produção. O setor de serviços e o processo de trabalho docente e sua nova configuração têm se dinamizado ao longo dos últimos anos. Os mecanismos renovados de obtenção de consenso e engajamento à lógica organizacional acabam sendo naturalizados e absorvidos acriticamente pelos docentes e técnicos. As pedagogias “modernas”, a fetichização das novas metodologias de ensino-aprendizagem, impõem, por exemplo, a necessidade de que o docente deve estar em permanente processo de atualização. “A ordem capitalista torna-se eficaz porque consegue projetar-se com eficiência tanto na realidade do mundo quanto na realidade psíquica” (LOPES 2010 p.257). Assim, o capital domina tanto a realização do trabalho imediato quanto a reprodução social às suas finalidades.

Já no Capítulo Inédito de O Capital, Marx definiu o processo produtivo como “a interação viva dos seus elementos objetivos e subjetivos”. Tanto a produção quanto a valorização requerem uma subjetividade submersa à lógica do capital. É nesse contexto de novas formas de gestão da força de trabalho que se dissemina o ideário do trabalhador-“colaborador”, o qual deve saber trabalhar em equipe e projetos, identificar problemas e oferecer soluções ágeis e eficazes em curto prazo de tempo2, antecipando-se e controlando situações imprevistas, demonstrando polivalência e versatilidade, flexibilidade e proatividade. As metas e o produtivismo acadêmico se fazem cada vez mais presentes, impondo um ritmo de trabalho à beira do insuportável. Trata-se do ideário de mercado, segundo o qual exige-se estar sempre pronto a “vestir a camisa da empresa”. Ou seja, adequar o trabalhador às exigências do trabalho coletivo submetido ao gerenciamento. O nexo psicofísico3 deve atrelar as percepções cognitivas com a demanda empresarial, racionalizando o modo de vida do sujeito que trabalha. Sempre em busca de novas competências e habilidades, o produtivismo, deve estar disposto a assimilar passivamente a racionalidade gerencial capitalista. No caso da docência, o professor deve estar disponível, engajar-se nos projetos da escola, envolver-se nas ações escolares desenvolvidas nos finais de semana, inscrever-se em capacitações de dinâmica e metodologias ativas, adequar seu repertório conforme as exigências da coordenação (e demanda dos pais), modificar seus métodos de avaliação caso não apresentem resultados (muitos alunos retidos), responsabilizar-se individualmente pelo fracasso escolar.

É preciso se levar em consideração as formas diferenciadas de degradação e precarização do trabalho docente: flexibilidade, intensificação, jornadas flexíveis, individualização e remuneração por mérito, sofrimento psíquico e formas diferenciadas de adoecimento laboral (como a síndrome do esgotamento profissional e o assédio moral), dentre tantos outros atributos existenciais da precarização docente, dentre os quais destacamos a subalternidade, acaso e contingência, insegurança e descontrole existencial, deriva pessoal e sofrimento, assujeitamento e desefetivação, corrosão do caráter, invisibilidade social, manipulação psicológica, desencantamento com a profissão, identidade deteriorada e individualidade alienada de classe.

O capitalismo contemporâneo, o Estado gerencialista e a gestão organizacional na educação pública “moderna” têm imprimido uma nova processualidade no ritmo e no processo de trabalho docente, com impactos na subjetividade, a qual apresenta elementos constitutivos que informam o modo de ser e estar no mundo e na educação, como suas formas diferenciadas de degradação e precarização laboral. Não á toa o assédio moral e o esgotamento profissional são manifestações recorrentes de adoecimento na educação. Faz-se necessário compreender as novas metamorfoses da educação técnico-profissional em conexão com os arranjos organizacionais e as demandas gerencialistas do sistema do capital em contexto de aprofundamento da lógica neoliberal. O principal eixo desse redirecionamento do processo de precarização social do trabalho docente resulta da constituição de um precário mundo do trabalho. O nexo causal e indissolúvel entre a crise do sistema do capital na contemporaneidade e as mutações recentes no mundo do trabalho assumem centralidade, notadamente no Brasil pós-golpe parlamentar e suas contrarreformas. Em tempos de destruição de direitos, de desemprego e desmonte da educação pública, o trabalhador mais parece vivenciar o privilégio da servidão (ANTUNES 2018) e a manipulação de sua subjetividade (HELOANI 2003).

REFERÊNCIAS

ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade: o espírito do Toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

BERNARDO, João. Democracia Totalitária: teoria e prática da empresa soberana. São Paulo: Cortez, 2004.

HELOANI, Roberto. Gestão e organização no capitalismo globalizado. História da Manipulação Psicológica no Mundo do Trabalho. São Paulo: Editora Atlas, 2003.

LOPES, José Carlos Cacau. Polivalência ou politecnia? A formação profissional na perspectiva das classes trabalhadoras. In: SANT’ANA, Raquel et all (org.) O avesso do trabalho II: trabalho, precarização e saúdo do trabalhador. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no Novo Capitalismo.7ªed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

TERTULIAN, Nicolas. Le concept d’aliénation chez Heidegger et Lukács. Archives de Philosophie- Reserches et documentation n.56. Paris: julho/setembro, 1993.

1 “Isto porque, sob o sistema de metabolismo social do capital, o trabalho que estrutura o capital desestrutura o ser social. O trabalho assalariado que dá sentido ao capital gera uma subjetividade inautêntica no próprio ato de trabalho” (ANTUNES, 2010 p.38).

2 Richard Sennett tece importante consideração acerca da relação “curto prazo” e suas implicações na perda de controle da própria vida: “(…) como cuidar de relações de curto prazo, e de si mesmo, e ao mesmo tempo estar sempre migrando de uma tarefa para outra, de um emprego para outro, de um lugar para outro. Quando as instituições já não proporcionam um contexto de longo prazo, o indivíduo pode ser obrigado a improvisar a narrativa de sua própria vida, e mesmo a se virar sem um sentimento constante de si mesmo” (SENNETT 2011 p.13).

3 Gramsci destaca que o nexo psicofísico requerido envolve “movimentos moleculares” na vida psicológica (tanto as capacidades físicas quanto a disposição psíquica) e no processo histórico, não perceptíveis. Em construção de hegemonia, tais movimentos buscam se adequar a uma nova forma de sociabilidade que se forja, ou seja, a um trabalhador de novo tipo no interior de um novo “bloco histórico”.

*Michelangelo Torres é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP.

Foto: Tela Sem título, de Luiz Sacilotto, 195o.

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