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BRASIL

O programa político da esquerda socialista e a dívida pública: um debate com os críticos da auditoria cidadã

Por: Flávio Miranda, do Rio de Janeiro, RJ

As linhas que seguem servem ao propósito de defender uma posição em um importante debate na esquerda socialista sobre a dívida pública, ou, mais especificamente, sobre a linha política que deve ser adotada a esse respeito. Como sempre, formulações do ponto de vista político da classe trabalhadora devem ter por base a análise concreta da realidade, isto é, o lugar do tema em pauta na reprodução social como um todo. Daqui em diante nossa posição será apresentada como contraponto a outra que, ainda que não nos pareça majoritária no campo da esquerda socialista, tem sido amplamente divulgada alcançando, pode-se dizer, lugar de destaque.

Nos referimos às formulações sobre o tema da dívida pública contrárias à proposta de auditoria cidadã, presentes no grupo de trabalho de economia para a construção do programa da chapa Boulos-Guajajara à Presidência da República. Tais críticas keynesianas1 à auditoria cidadã defendem, em última instância, que a dívida pública corresponde a um falso problema econômico. Alega-se que seria possível uma expansão dos gastos não-financeiros do governo (por exemplo, em saúde e educação), sem redução de seus gastos financeiros. Em outras palavras, seria possível, se o governo assim desejasse, adotar uma política fiscal expansiva, independentemente do volume da dívida pública, sem cessar pagamentos de juros e amortizações. O ajuste fiscal (consubstanciado na famigerada PEC do teto dos gastos públicos) que pesa sobre a classe trabalhadora brasileira seria resultado, portanto, de uma escolha política absolutamente livre, isto é, sem condicionantes concretos.

Os “socialistas keynesianos” invariavelmente explicam a “livre opção” pelo ajuste fiscal recorrendo, de maneira algo dogmática, a um texto de Michal Kalecki, escrito em 1943, que tem por título Os aspectos políticos do pleno emprego. Kalecki acreditava que com as políticas econômicas adequadas o processo de acumulação de capital não resultaria, por si só, em crises cíclicas. No entanto, uma situação de permanente “pleno emprego” representaria um risco político para a burguesia, dada a consequente dificuldade de manter a “disciplina nas fábricas”. Pois bem, algumas figuras de destaque do “keynesianismo socialista” defendem que o ajuste fiscal atual responde a essa necessidade. Isto é, em algum momento recente (que nos foge à memória) as condições de vida da classe trabalhadora brasileira estiveram tão satisfatórias que os trabalhadores passaram a ficar cada vez mais intransigentes em suas demandas, o que teria levado a burguesia à opção pelo ajuste fiscal.

Com propostas alternativas para a administração do processo de acumulação de capital como um todo, os keynesianos pretendem resolver nossos maiores problemas econômicos, notadamente, recuperar o nível de emprego. Do alto das mais finas técnicas para o manejo das variáveis macroeconômicas, as críticas marxistas que pretendem demonstrar os limites das propostas keynesianas são descartadas como conservadoras, inimigas dos gastos públicos e, portanto, contrárias à obtenção do pleno emprego. Se, é preciso afirmar, não há na esquerda socialista quem defenda a austeridade ou seja contra a expansão dos gastos públicos, de maneira que se trata obviamente de um espantalho mal montado para rebater as críticas marxistas, este ponto merece maior atenção, já que aqui uma diferença fundamental, teórica (e, portanto, política), emerge.

Para se enxergar os limites das políticas econômicas (de qualquer tipo), é preciso observá-las à luz da reprodução das condições econômicas como um todo. A compreensão dessas condições, pode-se dizer, das leis gerais do modo de produção capitalista, corresponde ao objetivo fundamental de Marx em sua Crítica da economia política, assim como dos melhores marxismos que militam nesta seara. A radical oposição entre a visão de mundo marxista e da economia heterodoxa é evidente.

Enquanto os keynesianos discutem a administração do capital, de maneira a, nos melhores casos, tentar afiná-la com pautas populares; a tarefa teórica do marxismo é compreender o capital. Porque se a sociedade cujas condições econômicas são postas pelo capital não resolve nossos problemas (ao contrário, os aprofunda2), se o comando do capital sobre a produção das condições de vida impede um desenvolvimento social voltado diretamente para as necessidades humanas, a tarefa fundamental da esquerda socialista continua a ser construir o socialismo. Neste caso, compreender o funcionamento desse modo de produção é condição para se vislumbrar a possibilidade de sua superação. Uma vez mais, isso não guarda qualquer relação necessária com a oposição a políticas econômicas que poderiam melhorar a situação da classe trabalhadora (como apontam apressados os keynesianos), mas diz respeito à compreensão dos limites desta formação social, dos limites de quaisquer políticas econômicas, da constituição do Estado na sociedade capitalista etc.

Em suma, as tarefas políticas do ponto de vista da classe trabalhadora devem apontar para além do capital, e o keynesianismo está muito aquém destas tarefas. Na verdade, o keynesianismo não entende o socialismo como tarefa, porque crê na eternidade do capital. É exatamente por isso que não se coloca questões centrais, associadas à compreensão concreta desta forma de sociabilidade, circunscrevendo-se ao culto superficial das aparências. Não obstante, como já afirmado, são essas indagações que devem guiar nossa política, são elas que permitem enxergar para além das ilusões keynesianas.

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Assim, os keynesianos insistem que se a dívida pública é denominada em moeda nacional, o Estado não teria problema em saldar seus compromissos. A riqueza, pode-se dizer, o valor, seria criado assim, de modo muito simples, pelas impressoras da Casa da Moeda. Na verdade, a pergunta acerca da origem do valor e, portanto, dos ganhos do capital (mais-valor) não faz sentido do ponto de vista das propostas teóricas limitadas ao debate sobre o manejo da política econômica (ou seja, do debate entre economistas). Os “keynesianos puro sangue” desconhecem a questão e, na prática, seguindo Keynes, entendem o valor como criação puramente subjetiva dos indivíduos engajados em relações de troca (teoria do valor utilidade). Já os ricardianos, assim como seu mestre David Ricardo (e, ironicamente, os economistas neoclássicos) entendem que a distribuição da riqueza é o problema central da teoria econômica, o que os leva, na prática, a negligenciar o problema do valor3.

Quando a pergunta acerca da origem da riqueza é posta de maneira séria, não se pode deixar de perceber que se o valor é uma relação social que se efetiva na troca de mercadorias e se, salvo engano, relações sociais só existem enquanto continuamente reproduzidas pelo agir humano, a forma de práxis que produz coisas que possuem valor é o trabalho. Toda a riqueza existente é resultado da atividade humana4, qualquer que seja a forma de sua apropriação (salários, lucros, juros, dividendos etc.). Por mais complexa que seja a mediação entre a produção da riqueza e a reprodução do sistema da dívida pública, a remuneração do capital corresponde à parte da riqueza produzida que não é apropriada pela classe trabalhadora, isto é, ao mais-valor.

A partir daí se pode entender a relação entre a remuneração do capital e as contrarreformas do governo Temer (aumento do grau de exploração da força de trabalho), assim como o ajuste fiscal que, por um lado, direciona a riqueza apropriada pelo Estado para a remuneração do capital aplicado na dívida pública, por outro, deteriora as condições de vida da classe trabalhadora contribuindo para a expansão do grau de exploração e, finalmente, abre espaços para aplicação de capital em setores antes administrados pelo poder público (privatizações). Em momentos de crise econômica, isto é, de dificuldades crescentes para a reprodução ampliada do capital, a expansão do mais-valor por aumento do grau de exploração se torna urgente.

Se uma das especificidades da crise atual corresponde ao descomunal volume de capitais aplicados na esfera financeira e na medida em que a sobreacumulação de capital5 (que caracteriza as crises econômicas em geral) toma a forma de capitais deste tipo, não se pode deixar de considerar o problema da dívida pública neste contexto. De maneira muito sucinta, trata-se da explosão de um tipo de capital que não produz riqueza e que, no máximo, tem uma relação muito distante com a produção; que tem uma dinâmica que se descola (quase) completamente da produção dessa riqueza; que obedece a movimentos puramente especulativos e, portanto, ergue um sistema cuja estrutura depende da confirmação (na média) da expectativa dos proprietários desses capitais. Ou seja, trata-se do que Marx chama de capital fictício.

Nesse grande esquema financeiro, a dívida pública tem papel fundamental, uma vez que oferece rendimentos estáveis e mais sólidos do que todas as outras formas de capital fictício. A dívida pública corresponde, desta forma, ao porto seguro para o qual ruma o capital-dinheiro especialmente em momentos em que a confiança na reprodução dos movimentos da alta esfera financeira é abalada. Ademais, o Estado, através do Banco Central, assume o papel de garantidor, em última instância, das transações financeiras, tendo de entrar em cena para socorrer grandes instituições em momentos de elevada turbulência.

Assim, o ajuste fiscal, ao reservar fluxos de mais-valor para o pagamento da dívida, tem a função de confirmar as expectativas dos agentes financeiros, para que eles tenham segurança de que o Estado continuará a fazer sempre o possível para garantir os ganhos do capital e, desta forma, reproduzir o jogo especulativo. Note-se que não existe riqueza no mundo capaz de remunerar todo o capital fictício acumulado, mas a acumulação de capital fictício segue conquanto seus proprietários não pretendam, em massa, convertê-lo em dinheiro em espécie. No entanto, a acumulação de capital fictício só amplifica o problema da sobreacumulação de capital (contradição entre produção e apropriação de mais-valor), reproduzindo em escala ampliada a fragilidade desse sistema. A massa global de capital fictício (incluindo a dívida pública) é “impagável”. O ajuste fiscal não supera o problema, mas atende às necessidades “curto-prazistas”, e humanamente irresponsáveis, do capital. Isto é, o ajuste fiscal busca evitar a destruição (desvalorização) de capital no curto prazo, empurrando o problema para a frente, destruindo, em contrapartida, milhões de vidas humanas.

É curioso notar que os keynesianos invariavelmente acreditam que o fato de a dívida ter crescido apesar do ajuste fiscal corresponderia a prova contrária aos argumentos marxistas. No entanto, o ajuste pretende demonstrar a capacidade do Estado em fazer tudo para atender aos interesses do mercado financeiro, exatamente para que a dívida pública (e todas as outras formas de capital fictício) possa crescer e isso não tem nada a ver, em termos gerais, com a moeda na qual a dívida é denominada, isto é, com a natureza interna ou externa da dívida pública.

A leitura keynesiana para o problema da dívida pública corresponde a uma reedição da política de conciliação de classes, porque supõe a possibilidade de se expandir gastos sociais e continuar a remunerar o capital aplicado na dívida pública (em escala crescente, dada a dinâmica crescente da dívida). Na prática, contudo, o capital não tem outra opção senão impor o ajuste fiscal, dado que aceitar perdas e destruição de riqueza fictícia está fora de cogitação do seu ponto de vista6. Enquanto adia um novo e mais profundo mergulho no abismo, permitindo a reprodução da orgia financeira, o capital arrasta milhares de seres humanos para a miséria, anunciando a ampla generalização da barbárie. A conta (impagável) da crise é empurrada para a classe trabalhadora o que, nessas condições, indica a deterioração sem precedentes nas condições gerais de vida.

Nesse caso, em oposição à conciliação keynesiana, não há outra solução senão o enfrentamento. É preciso que deixemos claro que não aceitaremos pagar essa conta, o que pressupõe a destruição de capital fictício com o cancelamento de dívida pública (isso pode ser feito de diversas maneiras, inclusive por auditoria). Mais do que nunca, ser radical é a única opção do ponto de vista da classe trabalhadora.

*Flávio é professor de Economia Política da UFRRJ.

1 Na prática tratam-se de argumentações que partem do campo da teoria econômica heterodoxa, com influências neoricardianas e keynesianas.

2 Basta que pensemos, por exemplo, na deterioração das condições ambientais ou no fato (desconsiderado pelos keynesianos) de que a expansão do capital se dá com redução relativa no volume da força de trabalho empregada (lei geral da acumulação capitalista).

3 Para eles o objetivo da teoria do valor é determinar preços e lucros e, portanto, a distribuição da riqueza.

4 Caso contrário, poder-se-ia perguntar, seria resultado do que?

5 Isso significa que existe uma grande quantidade de capital que não consegue se valorizar.

6 Na verdade, a destruição de capital fictício, dada a forma contemporânea da propriedade do capital, altamente centralizada e articulada, teria reflexos sobre diversos setores.