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Um Judiciário que não passa mal só aos domingos

Por: Alana Barbizan dos Santos*, de Porto Alegre/RS
Sidinei José Brzuska

No último domingo, “o solta-não-solta” do Lula foi mais uma demonstração de que o mito da neutralidade do Judiciário brasileiro não passa de conversa pra boi dormir. Se a população já desconfiava que a rapidez com que o caso do ex-presidente tramita é completamente excepcional dentro do sistema, as ágeis providências tomadas por diversos magistrados no dia de domingo só confirmam o papel político desempenhado pelo processo – e pelo circo midiático criado ao redor dele. Juízes sem competência para intervir saltaram de todos os lados, com a velocidade e a diligência que deixam de empregar em relação a Aécio Neves, Michel Temer e vários outros figurões que circulam livres por aí, na espera de que seus escândalos sejam abafados e de que a absolvição ou a prescrição os salvem.

As arbitrariedades cometidas em relação a Lula foram apenas uma pequena mostra da prática cotidiana dos agentes do sistema penal em relação aos seus alvos habituais. Porque a verdade, não noticiada com tanto alarde, é que a massa carcerária brasileira, formada em sua maioria por gente excluída, pobre e preta, fica muito mais tempo esperando a resolução dos casos. Muito mais tempo esperando o julgamento. Esperando o exame cuidadoso das provas, a leitura atenta do processo e o exercício da ampla defesa que… nunca irão acontecer! Na verdade, os verdadeiros alvos do sistema penal não esperam, eles mofam.

É de mofo o cheiro do Presídio Central de Porto Alegre, destino dos presos provisórios da região metropolitana, local que seria de passagem, não fosse a permanência da provisoriedade de suas condições. O Central, já considerado o pior presídio do Brasil, desempenha o papel de cadeia pública, que é o local onde as pessoas cumprem as chamadas “prisões processuais”, aquelas determinadas pelos juízes para, supostamente, garantir o andamento do processo. Hoje 34% da população carcerária brasileira se encontra nessa condição, boa parte da qual será inocentada ou receberá pena diferente de reclusão ao fim do processo.

O Presídio escancara a irracionalidade das políticas públicas no controle da criminalidade: jogam-se pessoas sem culpa comprovada em uma cadeia com 250% de superlotação, com 91% de seu espaço controlado por facções e sem recursos mínimos para compra de alimentos e materiais de higiene suficientes. Inocentes, réus primários e pessoas responsáveis por pequenos furtos e transporte de quantias irrisórias de drogas são obrigados a aderir a uma facção, que passará a prover sua segurança e subsistência, durante uma média de tempo de 1 ano e 3 meses, em galerias onde a polícia não entra. Como são pessoas no geral sem recursos, compram fiado e ficam obrigadas a pagar através do cometimento de crimes assim que saírem da cadeia, iniciando um longo e promissor vínculo com as facções que os protegeram. Além do fato de que boa parte delas torna-se dependente de drogas nesse meio tempo.

Os presídios brasileiros não são escolas somente porque ensinam, mas porque obrigam a cometer novos crimes.

O descaso dos gestores públicos e o domínio da mídia tradicional – com seus Datenas – sobre a opinião pública bancam o crescimento descontrolado de um sistema que só alimenta o mercado do crime. Imbuído de desespero, desinformação e impotência diante da gravidade da situação, o senso comum deixa de se importar com a justiça ou injustiça da pena, com a possibilidade da inocência ou de que a crueldade da pena seja muito pior que o crime em si. Girando em círculos, continuamos a eleger medidas que sempre falharam em garantir a segurança pública e que, ao fim e ao cabo, servem para isolar e exterminar pessoas pobres, perdidas em meio à guerra..

Sustentando-se na falácia de que a aplicação da lei é igual para todas as pessoas, os altos cargos do Poder Judiciário gozam de prestígio, privilégios e salários estratosféricos, decidindo sobre as vidas de pessoas cujas condições eles desconhecem de todo. Em sua maioria, filhos bem criados de lares abastados, os julgadores de nosso povo reproduzem, na teoria e na prática, todos os privilégios que os constituíram enquanto pessoas e profissionais, atuando em prol da manutenção da injustiça social que lhes permite desfrutar da boa vida em uma bolha higienizada em meio ao caos.

É seletiva a justiça brasileira. Diferentemente de como agem pelos políticos privilegiados, pela maior parte da população, nenhum juiz trabalha no domingo.

 

*Alana é advogada e militante do coletivo Alicerce, do Rio Grande do Sul

FOTO: Presídio Central, no Rio Grande do Sul. Foto do juiz Sidinei José Brzuska