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Notas sobre o Judiciário e sua relação com o setor econômico

Por Silvana Gonçalves*, de São Luis/MA

Desde a alvorada histórica do Estado Moderno, no tocante a sua organização, a regra invariavelmente sempre foi a aliança entre os poderes. Pelo menos no Brasil, sob o pretexto de complementaridade entre os mesmos, suas atuações parecem estar afinadas na mais perfeita harmonia, pois raramente contrariam os interesses um dos outros e, ao longo dos séculos, perpetuam costumes antiquados, mas bem evidentes ainda hoje. Exemplificando, lembro alguns provérbios que já se tornaram populares, como a citação de Sólon sobre o Legislativo, “leis são como teias de aranha: boas para capturar mosquitos, mas insetos maiores rompem sua trama e escapam”; ou então, “os anos começam e terminam com o Executivo de pires na mão”; a justiça, por sua vez, como disse Eduardo Galeano, só morde os pés descalços.

Contudo, nenhuma destas esferas desperta tanta expectativa no povo em geral quanto o Poder Judiciário, pois com inspiração inicial em Platão e, instituída no Brasil em 1530 por Martim Afonso de Souza, foi a instância supostamente idealizada para a defesa e proteção da igualdade, da justiça, da ética, da retidão, cuja independência em relação aos demais poderes afigura-se um ponto crucial.

Parece que estamos diante de uma grande contradição entre a origem idealizada e a atual realidade desse instituto, na medida em que não causam surpresas as inúmeras decisões judiciais no Brasil e no mundo, notavelmente orquestradas pelos interesses precípuos do Executivo correlato, distanciando-se assim, da sua essência preliminar e da própria razão de ser do Sistema Judiciário, pois o fato ensejador da sua criação, enquanto poder constituído, foi justamente a necessidade do Estado intermediar, na sua forma imparcial, os conflitos sociais dos administrados.

Ocorre, porém, que este órgão ainda se encontra submetido histórica e umbilicalmente à sua origem funcional colonialista, voltado para uma sociedade escravocrata baseada em uma economia de exportação e forjado para atender aos interesses do latifúndio seguindo as orientações de um Estado absolutista profundamente opressor, pelo menos é o que faz crer a habitual atuação decisória da magistratura brasileira com profunda ressonância na magistratura maranhense.

Apesar de sua concepção categórica, o Judiciário brasileiro ainda segue à risca a tônica de não paridade de armas, onde a Justiça deixa subtendida a tendência secular de favorecer as classes melhor posicionadas na estratificação social. Contudo, tal circunstância tem vários outros fatores, além do histórico, como as próprias origens sociais dos membros do Judiciário. Consoante o Professor Doutor, Frederico Normanha Ribeiro de Almeida, os membros das altas cortes brasileiras têm em comum a origem social, as universidades e as trajetórias profissionais, pois provêm da elite ou da classe média em ascensão e de faculdades de Direito tradicionais, como a Faculdade de Direito da USP, a Universidade Federal de Pernambuco e, em segundo plano, as Pontifícias Universidades Católicas e as Universidades Federais e Estaduais da década de 60.(1)

Corroborando com este quadro, sabemos que a ascensão aos Tribunais Superiores prescinde de concursos públicos, pois têm como requisito de escolha ‘notório saber jurídico’, conceito este impreciso e com forte carga subjetiva, podendo significar, inclusive, que os candidatos eventualmente aprovados tiveram as mesmas chances de cursar as clássicas faculdades que a atual nata política do Judiciário cursou.

A partir disto, fica mais clara a formação, em muitos casos, de um bloco de resistência para manter o status quo integrando os três poderes e a iniciativa privada, onde o Judiciário, ao invés de defender os direitos alusivos à cidadania, mostra-se mais afeito à supremacia rentista em sua função primordial de julgar.

Neste ponto, destaco uma situação vivenciada por mim e testemunhada por membros de uma comunidade ameaçada situada na cidade de São Luís, onde um magistrado de alto escalão, referindo-se a uma situação de embate entre proposições de cunho econômico de um lado e direitos socioambientais do outro, perguntou-nos o que ele poderia fazer diante de bilhões de reais, como ele poderia lutar contra isto?

Foi marcante constatar a plena sensação de impotência de um agente de poder diante do grande capital, a subserviência incontest do Judiciário ao poder econômico. Percebe-se com clareza a violência enquanto potência econômica a sublimar nossas instituições formalmente consolidadas sob a égide de um estado democrático, cujo fundamento se assenta na busca e no respeito à cidadania.

Importante notar ainda que, pelo fato de ser um órgão representativa e efetivamente dissipador de poder, as decisões judiciais dele emanadas constituem leis, se interpretadas em sentido concreto, pois contra referido entendimento não restam muitas alternativas, e, às vezes apenas a desventura da decepção. Mesmo porque os tribunais de justiça, por exemplo, tendem a refletir o arcabouço teórico-doutrinário dos tribunais superiores, onde estão posicionados juristas considerados de elevada envergadura cientificista, porém de malogradas experiências práticas acerca da dinâmica social que perpetua a estrutura jurídica e econômica do estado brasileiro.

Referida configuração remete a uma hierarquia, segundo a qual, quanto mais próximo do topo da pirâmide organizacional, mais distante, no meu sentir, o magistrado se encontra dos jurisdicionados, por conseguinte, menos ecoa em sua íntima convicção o grito eloquente dos silenciados pela “lei”, aqueles situados na base da base de todas as pirâmides. Tais cidadãos e cidadãs clamam com veemência, contudo, o som não reverbera até ápice deste triângulo, não chega audível aos ouvidos refinados dos agentes magistrais, no máximo meros ruídos “atrapalham” seu insigne processo decisório.

Neste cenário de regras, porém, há quem se arvore contra o abismo entre magistrados acastelados e milhares de brasileiros na linha da pobreza (cinquenta milhões vivendo com R$ 387,07 por mês(2)), entretanto tais “insurgentes” ou magistrados vivendo ‘fora da linha de controle ideológico predominante’, que ousam contrapor regimentos conservadores implícitos, presumivelmente incorporados ao Poder Judiciário brasileiro, parecem incomodar mais do que se possa supor, pois qualquer conduta minimamente ameaçadora que exsurja neste contexto, ao que parece, é exemplarmente neutralizada cuidando-se para manter as mesmas bases da tradição histórica mencionada, onde se afere condutas equivalentes sem a equidade necessária no que toca ao cotidiano de juízes ligados ao Tribunal de Justiça do Maranhão.

Analisando, por exemplo, a rotina de eventos na capital maranhense, é corrente a exiguidade da participação de magistrados, sobretudo quando se tratam de temas relacionados aos direitos ambientais, direitos coletivos, comunidades tradicionais etc. Entretanto, tais presenças são comuns em eventos promovidos pelo SINDUSCON (Sindicato da Indústria da Construção Civil), FIEMA (Federação das Indústrias do Estado do Maranhão) etc, entre seminários, palestras, programas, são várias as ocasiões em que membros do Judiciário, ao que tudo indica, estão mais próximos da elite maranhense do que da base social.

Claro que essa rotina já se tornou ‘natural’ diante da sua recorrência ao longo de séculos, mas o que chama realmente a atenção é que durante tantos e tantos anos, referidas circunstâncias não tenham ensejado suposições a respeito da imparcialidade dos membros deste tribunal, uma vez que pela exterioridade de comportamentos díspares, pode-se consequentemente classificar tais situações no contexto geral da justiça brasileira, onde a contradição, mais do que simples história, representa tão bem a violência velada exercida pelas potências econômicas soberanas a minguar a soberania nacional e a autonomia dos estados na contemporaneidade.

*Silvana é Advogada, Especialista em Direito Público, Mestranda em Desenvolvimento Socioespacial e Regional/UEMA, integrante do LIDA (Lutas, Igualdade e Diversidade)/UEMA.

 


NOTAS

1 – Esta conclusão foi obtida após análises dos respectivos currículos e biografias.
2 – Síntese de Indicadores Sociais 2017 – SIS 2017 divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no dia 15/12/2017.

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judiciário