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EDITORIAL

Amamentar: existir, insistir, resistir

Por: Ana Carolina, de Jacareí, SP

Nesta terça-feira (11), mais uma mãe foi impedida de amamentar seu bebê em público. Thaís Magalhães, de 21 anos, estava no Terminal de Ônibus Vila Luzita, em Santo André (SP), quando foi abordada por três seguranças enquanto amamentava o seu bebê de apenas um mês, por tratar-se, segundo um deles, de um atentado violento ao pudor. Os seguranças ameaçaram chamar a polícia caso ela insistisse em alimentar seu filho no terminal. Thaís conta ainda que tentou contornar a situação pedindo para que pudesse amamentar no banheiro, mas ainda assim foi tratada com hostilidade e novamente ameaçada pelos seguranças.

Diante dessa situação ainda tão comum, como mãe, me solidarizo com Thaís e tantas outras mães que já passaram e ainda irão passar por essa violência.

“Amamentação é resistência”. Sempre me pego pensando nessa frase que não sei dizer onde li, mas faz absolutamente todo sentindo. Quem vê uma mãe amamentando seu bebê pode não ter a dimensão de quanta luta se esconde naquele momento. Os seios rachados e as fissuras do início são apenas um aperitivo de dores muito mais fortes. É algo ainda mais profundo que a sociedade muitas vezes desconhece, sobretudo as próprias mulheres. Muitas vezes, aquela mãe que até aquele momento era uma militante feminista cercada de companheiras, se sente solitária em sua luta.

As pautas sobre maternidade deveriam ter mais visibilidade dentro dos movimentos feministas, que muitas vezes abordam o assunto, porém não de maneira aprofundada. Embora saibamos que nem todas as mulheres desejam a maternidade, essa pauta é inerente ao nosso gênero. E são muitas as nossas pautas: direito ao pré-natal gratuito e completo, parto seguro e sem violência obstétrica, creches públicas e de qualidade, entre muitas outras. Nesse texto irei destacar o direito à amamentação em público e em livre demanda, ou seja, sempre que o bebê manifestar vontade, independente de onde ele esteja ou há quanto tempo tenha sido a última mamada.

Pode parecer absurdo que ainda nos dias de hoje esse assunto seja um tabu, mas essa questão ainda está muito presente em nosso cotidiano e não apenas no Brasil, mas também em outros países onde a amamentação ainda é vista com maus olhos: recentemente uma mãe norte-americana foi abordada por um policial que ameaçou prendê-la por estar amamentando e consequentemente deixar parte de seu seio  à mostra. E quem nunca viu uma mãe amamentando seu bebê tampado com uma fralda ou toalha para que as pessoas ao redor não enxerguem o “acontecimento” como se fosse algo ofensivo? Ou uma mãe que é aconselhada a amamentar em um banheiro sentada sobre um vaso sanitário? O que leva as pessoas a acharem compreensível que isso ainda aconteça, se ninguém gosta de comer com um pano cobrindo seu rosto e menos ainda dentro de um banheiro? Afinal, por qual motivo um bebê precisa passar por isso?

O motivo é o sexismo, o machismo e a misoginia enraizados em nossa sociedade que transformam nossos corpos em objetos sexuais. Não é por acaso que os mesmos seios, tão explorados no carnaval, tornam-se algo ofensivo quando aparecem em um restaurante ou terminal de ônibus. No momento em que a mãe amamenta o seu bebê, o seio exerce a função de fornecer alimento e vida. É mais do que necessário desvincular a imagem dos seios a um objeto erótico para apreciação masculina e naturaliza-lo como fonte de alimento e vida.

Para nós, mães, são muitas as lutas diárias para garantir o pleno exercício da amamentação. Lutamos contra teorias ultrapassadas e sem embasamentos científicos de que o leite materno é fraco e insuficiente, contra a indústria dos leites artificiais que patrocinam convenções de pediatria. Lutamos para amamentar nossas crianças até a idade que julgarmos necessária, para ter acesso a informações de qualidade, que nos garantam nossos direitos.

No entanto, muitas vezes é difícil resistir e não ceder a pressões sociais, afinal a criança que é amamentada tem realmente um maior apego à mãe e isso, de fato, limita a vida social e dificulta seu retorno ao trabalho, transformando-se em um grande dilema a ser enfrentado. Tudo isso já é um processo muito doloroso por si só e acaba por prejudicar ainda mais a mulher que tenta, em meio as dificuldades da maternidade, retomar a sua rotina.

Em alguns desses momentos difíceis não é comum ocorrer um processo de desmame precoce, no qual o bebê deixa de receber o leite materno muito antes do tempo necessário para que seu organismo esteja pronto e bem desenvolvido para outros alimentos ou tipos de aleitamento, podendo trazer consequências negativas como a falta dos anticorpos transmitidos através do leite materno, importantes para a prevenção de infecções e doenças.
Segundo dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) e do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), apenas 40% das crianças menores de seis meses são amamentadas exclusivamente e apenas 23 países têm a taxa de amamentação exclusiva acima de 60%.

No Brasil, a taxa é de apenas 39%. Esse resultado negativo não é culpa da mãe. Não é fácil lidar com a crítica da sociedade que julga e abala emocionalmente a mãe por necessitar deixar seu bebê com outra pessoa ou em creche para trabalhar, por não ter orientação e condições de deixar o próprio leite para seu bebê, conforme a recomendação médica.

Mesmo aquelas que decidem e têm condições de continuar amamentando seu filho exclusivamente, também enfrenta críticas de quem acha isso desnecessário. Isso leva ao seu isolamento: para continuar cuidando e amamentando seu bebê, a mãe passa a ficar mais tempo reclusa em sua casa, muitas vezes abdicando de sua carreira profissional e acadêmica.

Isolamento que é ainda maior e mais cruel com as mães solos e adolescentes, que sozinhas precisam lidar com os problemas e dificuldades para criar uma criança. Sendo julgadas e até mesmo “convidadas a se retirar” de determinados espaços por ali estarem, amamentando ou não, como é o caso de mães estudantes. É inadmissível assistirmos caladas o que ocorreu, por exemplo, recentemente na cidade de São José dos Campos, onde uma faculdade sugeriu que as mães fizessem trabalhos em casa ao invés de frequentarem as aulas acompanhadas de seus filhos.

Felizmente, como forma de apoio, tem surgido ações que buscam conscientizar e incentivar as mães a amamentarem seus bebês exclusivamente com leite materno até os seis meses de idade e continuar a amamentá-lo pelo menos até os dois anos. Inclusive em lugares públicos, prevendo multa para os estabelecimentos que impedirem. Um desses avanços é a campanha Amamente Livre, que busca estabelecimentos que estejam abertos à amamentação, que ofereçam um lugar confortável e receptível, sendo esses locais adesivados com o selo da campanha e mapeado para que as mães os encontrem com facilidade.

Contudo, sabemos que o ideal seria que não necessitássemos de iniciativas como estas para não sermos constrangidas enquanto exercemos nosso direito a algo tão natural quanto alimentar nossos bebês. Nesse sentindo o único caminho possível é dar visibilidade a essa pauta visando a conscientização. Deste modo, repito a necessidade da maternidade e suas implicações serem uma pauta mais recorrente dentro do feminismo e dos demais movimentos sociais. Precisamos, por exemplo, que o direito à amamentação em público também seja assunto nas discussões entre mulheres e em todos os lugares onde houver mães em nossa sociedade.

*Ana Carolina é mãe, feminista e professora

Foto: Francielle Caetano/Arquivo PMPA