Passei algumas horas no Salão de Atos da UFRGS ouvindo relatos e reflexões de várias mulheres e homens que participaram da fundação do Movimento Negro Unificado, em 1978, especialmente na capital gaúcha. As falas emocionadas me fizeram sentir saudade de um tempo que não vivi e, ao mesmo tempo, também ampliaram meu respeito aos que vieram antes da nossa geração. Existem continuidades e rupturas nas ações e na realidade enfrentada, extrair lições e aprender com essa experiência de organização do povo negro é fundamental, por isso, resolvi tentar contribuir com uma humilde reconstituição de um daqueles dias marcantes, a sexta-feira que lançou o MNU às ruas.
“Estamos por nossa própria conta em risco”, esse lema unia negras e negros dispostos a combater o racismo em condições bastante adversas, pelos idos de 1978, em São Paulo. E o risco era real: durante o regime empresarial-militar, a liberdade de ação e organização e o desenvolvimento do pensamento crítico brasileiro foram sufocados pelo conluio entre a tecnocracia militar e a burguesia nacional, ambas subordinadas aos ditames do imperialismo estadunidense e europeu. Num quadro de repressão aos direitos civis elementares, imaginemos a condição da população negra, no centro do processo de expansão urbana que viria a constituir as grandes favelas, menos de um século após a abolição. A cultura autoritária já havia desarticulado a negritude após o golpe de 1937 dissolvendo a Frente Negra Brasileira (FNB), organização com alcance de massas que almejava constituir um projeto para combater a dispersão negra no território nacional, projeto incompatível com as aspirações das classes dominantes sob o comando de Vargas. O novo golpe em 1964, após anos de uma frágil e restrita democracia, sufocou ainda mais a negritude. O Art. 36 da Lei de Segurança Nacional considerava crime incitar o ódio e a discriminação racial, mas as cabeças que ditavam a lei eram formadas nos ditames das experiências de contenção de revoltas negras, não à toa que a PM paulista perseguia jovens negros vestindo um uniforme decorado com o brasão que carrega as estrelas pelos massacres de Porongos (RS), Canudos (BA) e a repressão a Revolta da Chibata (RJ), só para ficarmos em alguns exemplos.
Mas a repressão causa em quem é oprimido um processo de acumulação de energia similar ao de uma mola. A raiva concentra-se até ser sucedida pelo grito, que se distende como onda ampliando o alcance de sua mensagem. Foi justamente o que ocorreu a partir da humilhação vivida por quatro jovens negros do time de voleibol do Clube de Regatas Tietê. O desejo deles era apenas honrar a camiseta do clube, mas o tratamento diferenciado expressou-se cruelmente nas palavras de um de seus diretores: “Se deixo um negro entrar na piscina, cem brancos saem imediatamente”. O caso somava-se ao assassinato de Robson Silveira da Luta, no 44° Distrito Policial de Guaianazes e serviu de estopim para unificar diversas entidades negras paulistanas – do meio cultural, religioso até as novas organizações de esquerda – que nunca haviam se encontrado para uma ação comum.
Assim surge o dia 7 de julho de 1978 na História. Naquela sexta-feira a tarefa era ocupar o Centro da cidade de preto. O Viaduto do Chá, idealizado pelos colonizadores e erguido através do trabalho escravo, foi escolhido como ponto de encontro para ouvir gritos de liberdade. A tensão de quem sai de casa para trabalhar e nunca sabe se retorna agora se somava agora a tensão de protestar, ou seja, subverter-se a ordem. A correria do dia tomou conta de quem organizou a manifestação. Uma tiragem de panfletos modesta, cerca de cinco mil, tomou o tempo de parte do dia de vários militantes, enquanto outros confeccionavam faixas e cartazes, tudo para que não fosse um final de tarde normal no coração da maior cidade do país. Talvez a organização do ato não esperasse que um contingente amplo de pessoas tomasse coragem de incorporar tal ideia. Um protesto contra o racismo? Há quantos anos isso não ocorria no Brasil? Mas aconteceu!
“Mais de mil pessoas estavam presentes por volta das 19h00. Nas ruas, corria de mão em mão, cartas abertas à população, chamando todos os negros a se organizarem numa luta comum, nos bairros, nas vilas, nas prisões, nos terreiros de candomblé e de umbanda, nos locais de trabalho, escolas de samba, igrejas, em todo lugar onde haja negros, para dali atacarem todo tipo de discriminação, unindo-se a um movimento unificado, tornando-o forte, ativo e combatente. Dos setores democráticos, a carta dizia esperar o apoio, criando assim condições necessárias para criar uma verdadeira democracia racial.”i
A solidariedade veio de Belém, Belo Horizonte, Aracajú, Maceió, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e inclusive da Prisão Estadual de São Paulo. Em carta, os detentos organizados no Grupo Afro-Brasileiro Netos de Zumbi, diziam que “todos aqui almejam ter um representante no mundo exterior. Aos afro-brasileiros, (70% dos 6.354 homens), é praticamente negada a ajuda estadual em relação às necessidades judiciais.”ii. Três palavras de ordem centrais ecoaram naquela noite: “contra a discriminação racial”, “contra a opressão policial” e “pela ampliação do movimento, por uma autêntica democracia racial”iii.
As exigências eram incompatíveis com a essência do regime empresarial-militar, mas ali estavam homens e mulheres que se afirmavam como negras e negros em plena ditadura, apresentando uma perspectiva antirracista para os novos movimentos sociais que eclodiam nas lutas que viriam a superar a ditadura. Nas palavras de Neusa Pereira:
“Somos considerados cidadãos de segunda classe, mas no dia 7 de julho, em São Paulo, mostramos publicamente que não mais aceitamos essa classificação. Enquanto algumas pessoas bem vestidas e perfumadas entravam no Teatro Municipal de São Paulo para cumprir seu dever social, um grupo de mais de mil negros abriam seu peito ali em frente, num grito sufocado, denunciando as péssimas condição em que vivemos nesse país. Mais de mil negros, em sua maioria jovens, desmistificavam publicamente o racismo covarde que proíbe de participar do progresso da sociedade, que o atira na sarjeta e o assassina”iv
Não houve repressão ao protesto, mas, quase quatro décadas depois, a divulgação de um documento do IV Exército de Recife mostrou que a ação era friamente monitorada pela repressãov, afinal, imaginem o peso político e social de um movimento similar ao que ocorria nos EUA ou no continente africano àquela altura em nosso país? A inspiração internacionalista daquele movimento fica nítida se olharmos as páginas do AfroLatino-Americavi, publicado na Revista Versus, produção de jornalistas de uma nova imprensa negra que divulgava os fatos relevantes da luta negra e as contribuições teóricas de movimentos e pensadores oriundos de diversos países.
A junção de jornalistas, artistas, detentos, estudantes, esportistas, trabalhadores negros em geral inaugurou um novo período para o movimento negro. Daquela sexta-feira desdobrou-se a construção de um movimento que meses depois realizaria congressos e encontros nacionais, nacionalizando-se retomando a discussão de um projeto político para o povo negro brasileiro. Não foi um dia qualquer. Na contagem fria do calendário ele pode estar distante, mas no tempo histórico marcado pela ação de sujeitos coletivos ele permanece como referência próxima, afinal, a situação do negro nos dias de hoje ainda lembra o quadro descrito pelos ativistas negros que vieram longe.
i – CARDOSO, Hamilton. Revista Versus, São Paulo, Julho/Agosto, 1978. Afro-Latino-América.
ii – Idem.
iii – Idem.
iv – PEREIRA, Neusa Maria. Revista Versus. São Paulo, Julho/Agosto, 1978. Afro-Latino-América.
v – https://www.cartacapital.com.br/revista/867/a-paranoia-nao-tem-cor-1121.html
vi – http://www.youblisher.com/p/1142258-Afro-Latino-America
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