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A outra face de Stálin

Por: Paulo César de Carvalho, de São Paulo/SP

O afastamento da realidade, o distanciamento que se acentuava continuamente, dominando cada vez mais um número maior de pessoas, não era uma característica especial do regime nacional-socialista. Ora, enquanto em circunstâncias normais dar as costas à realidade é uma atitude corrigível pelas opiniões das pessoas que nos rodeiam, pela zombaria, pela crítica, pela perda de confiança, no Terceiro Reich não havia tal corretivo.
(Albert Speer, Por dentro do III Reich: in A significação na fotografia, Antonio Vicente Seraphim Pietroforte, Annablume, 2016, p.19).

Os espelhos refletiam sempre a imagem do meu rosto, a única imagem que eu podia ver refletida neles. Nenhuma visão estranha perturbava a uniformidade daqueles cem rostos, sempre os mesmos, a uniformidade do meu eu multiplicado
(idem, p.20).

Reprodução

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Depois da derrota da Alemanha para o México na Copa da Rússia, começou a circular na rede um meme com a foto de Stálin e a seguinte frase: “Eu avisei: aqui a Alemanha não vence”. O “recado” faz alusão à vitória do Exército Vermelho contra os nazistas, na Segunda Guerra: os alemães capitularam na Batalha de Stalingrado, em 1943, sendo definitivamente derrotados em 1945, quando os russos invadiram Berlim e tomaram o Reichstag (o parlamento alemão). Por isso, Stálin está rindo com sarcasmo, em trajes militares e pose triunfal, como se fosse o grande estrategista da queda do Terceiro Reich.

Mas ele está com o rosto virado: não aparece na foto a outra face. Como está olhando “oblíquo e dissimulado” para a câmera, não dá para ver também as suas costas: a foto não mostra o que está “por trás” dessa história. Por exemplo, a assinatura do “Pacto Molotov-Ribbentrop” (em 1939, em Moscou), firmando o compromisso de não-agressão entre os dois países na guerra de rapina imperialista. Não aparecem na foto os vinte milhões de civis e militares russos que tombaram na resistência à ofensiva alemã: nem, obviamente, os dois milhões de corpos não localizados. O sorriso irônico do georgiano para a lente disfarça que ele foi surpreendido por Hitler, traído pela confiança no cumprimento do “pacto de não-agressão” pelos nazistas.

A foto também não mostra o germe dessa espúria relação, já que a foto é sempre um recorte do presente. O passado não posa para a câmera, não aparece no retrato: quem olha para o “velho Stálin” não consegue ver a sombra do “jovem Josef” na Alemanha de 1923. De volta ao passado, nesse mesmo ano em que os franceses ocuparam a região do Ruhr, um bolchevique próximo do futuro ditador, Radek, havia se tornado o principal dirigente do KPD (Partido Comunista Alemão), após a reunião do Comitê Executivo da Internacional, realizada em Moscou.

No encontro – atenção! – ele defendeu que os comunistas deveriam se aliar à extrema-direita, para derrotar os invasores. Essa proposta, sintomaticamente, daria origem à chamada “linha Schlageter”, em homenagem ao nazista fuzilado na ocupação francesa, transformado em “herói nacional” com a vitória do nazismo. O trecho a seguir, do livro A Revolução Alemã (1918-1923), de Isabel Loureiro, explica melhor a tática do dirigente:

Com isso, Radek retomava a ideia anterior de dois militantes comunistas, conhecida como ‘nacional-bolchevismo’ (…). Radek supunha, além disso, que essa aliança ajudaria a Rússia soviética, adversária das potências ocidentais no terreno da política externa – daí a proposta de união entre a Rússia e a Alemanha derrotada contra o Ocidente, já descartada por Lênin em janeiro de 1920 como ‘um enorme disparate (…).
(Editora Unesp, São Paulo, 2005, p.147).

Charge de 1939, sobre o pacto de não-agressão. Hitler pergunta a Stálin – Até quando essa lua de mel irá durar?

Refrescada a memória, enfim, eis a questão: o “pacto de não-agressão”, assinado em 1939 por Molotov e Ribbentrop, não parece ter reeditado como “farsa” (guardadas as diferenças) a “tragédia” da contrarrevolucionária aliança “nacional-bolchevique” de 1923? Lênin não sobreviveu para testemunhar as consequências desastrosas do erro tático que denunciara: a linha equivocada dos comunistas alemães fortaleceria de fato a extrema-direita, colaborando para a derrota da esquerda e o triunfo do nazismo.

Na época, quem estava no poder era a socialdemocracia, representada pelo SPD: os comunistas do KPD preferiram se aliar aos nazistas a compor uma frente única com os socialdemocratas. Em 1939, a esquerda já havia sido destruída: o poder já estava nas mãos do “nacional-socialismo”. A aliança, disfarçada sob a designação eufemística de “pacto de não-agressão”, não parece uma espécie de “versão 3.9” daquela “proposta de união entre a Rússia e a Alemanha contra o Ocidente”?

Quem postou a foto do “velho Josef” no face, desconhecendo a história, não poderia mesmo ouvir a reprovação indignada de Lênin no “negativo”: “um enorme disparate”. Que “grande comandante”, afinal, daria de vantagem ao inimigo a vida de vinte milhões de soldados, para ganhar tempo e se armar, defendendo-se e partindo para a ofensiva, como prova de “superioridade” nos jogos de guerra? A pose do georgiano sorrindo sarcástico no meme esconde o jogo: no campo de batalha, os russos venceram os alemães apesar do “técnico”. Quem compartilhou a imagem ignorando os fatos não notou que todos os “louros da vitória” foram oportunisticamente colhidos pelo “técnico”: os “jogadores”, os verdadeiros responsáveis pela “virada”, não aparecem na foto da vitória.

Aliás, já que a Alemanha, a Rússia e Stálin estão na mira, vem bem a calhar a metáfora de Marx em A Ideologia Alemã: a “câmara escura” da ideologia contrarrevolucionária soviética não revelou a imagem dos milhões de soldados que a miopia do “coveiro” pôs na mira dos canhões arianos. Parafraseando outro alemão, sob a lente crítica de Nietzsche, dá para entender porque a foto não poderia mostrar que “os deuses têm pés de barro”: sem as distorções de ótica da “falsa consciência”, o oportunista jamais seria digno do epíteto de “Grande Líder”, sustentando-se no alto pedestal de “Super-Homem”. Não fosse a “fábrica de falsificações” da “revolução desfigurada”, Josef nunca seria visto como o “Guia Genial dos Povos”: subvertendo o ditado, só em terra de cegos quem tem um olho pode virar ditador. Em outros termos, era preciso que houvesse órfãos, sentindo-se pequenos e indefesos, para que o amassem e temessem, chamando-o de “Pai dos Povos”.

A máquina de propaganda do Estado burocrático trabalhou ininterruptamente para ampliar a sua imagem, multiplicando-a em fotos, quadros, cartazes, bandeiras, broches, estátuas… Stálin foi forjado pela “agência oficial de mentiras” como um ser onipresente, onipotente, onividente, pairando como uma gigantesca divindade ciclópica, num reino de anões crédulos de olhos vazados. Tornou-se tão grandioso que, solenemente, virou até nome de cidade: no XIV Congresso do PCUS (em 1925), Tsaritsyn (fundada em 1589) passou a se chamar Stalingrado (rebatizada Volgogrado, em 1961).

O meme que viralizou no face associa a eliminação da Alemanha na Copa à derrota do exército nazista na Segunda Guerra: a frase “eu avisei, aqui a Alemanha não vence” faz alusão à Batalha de Stalingrado, que marca o início da vitória dos russos. Na foto de Stálin, de cujo sorriso sai o recado sarcástico, não está escrito que o “Pacto Molotov-Ribbentrop”, sob o álibi de ganhar tempo para organizar o Exército Vermelho, sacrificou vinte milhões de vidas: ironicamente, a partir da batalha na cidade que carregava seu nome.

Aliás, esse “batismo” foi também uma farsa tramada pela “agência de falsificações” históricas: o XIV Congresso do PCUS transformou o carrasco georgiano em grande líder da resistência contra os invasores do Exército Branco na batalha de Tsaritsyn, em 1920. Esse episódio da Guerra Civil marcou as divergências militares entre Stálin e Trótski. Para contextualizar, lembremos que, em 1918, começou a se formar no Exército Vermelho uma oposição contra Leon: Josef se opunha à presença dos oficiais do antigo regime, convocados por Trótski para integrar o quadro de estrategistas das divisões bolcheviques.

Stálin desprezava o argumento do dirigente, segundo o qual era imprescindível contar com os grandes conhecimentos e a larga experiência dos especialistas para derrotar os inimigos: a força e a coragem dos operários e camponeses não seriam suficientes para a vitória dos Vermelhos – faltava-lhes a técnica da guerra, que os adversários dominavam. A “oposição militar”, alimentada pelo arrivismo de Josef, era contrária não só à presença dos oficiais de carreira, mas também à centralização do comando, defendendo a autonomia local das tropas.

Stálin enviou um memorando ao Comitê Central, criticando a direção de Leon e solicitando a destituição de todos os oficiais, bem como o direito de formar “exércitos independentes”. Indignado, Trótski pediu demissão: Lênin não só recusou o pedido, como também deu total apoio ao organizador do Exército Vermelho. Os historiadores stalinistas omitem que, numa reunião do birô político, o líder bolchevique estendeu uma folha de papel a Trótski, dando-lhe uma inequívoca prova de confiança:

Conhecendo o caráter rigoroso das ordens do camarada Trótski, estou convencido, tão absolutamente convencido da oportunidade e da necessidade, para o sucesso da nossa causa, do rigor do camarada Trótski, que assino embaixo sem reservas. V. Ulianov-Lenin
(Victor Serge, Vida e morte de Trotsky, Editora Ensaio, São Paulo, 1991, p.108-109).

Na foto de Stálin compartilhada no face, evidentemente, não aparece a assinatura de Lênin desautorizando as pretensões do futuro ditador. Aliás, a foto não poderia mesmo revelar os fatos que desmentem a versão forjada pelos falsificadores, como mostra este retrato feito pelo revolucionário Victor Serge:

Stálin foi objeto de sanções muito moderadas por parte do bureau político e do governo. Geralmente se esquece que, nesse meio tempo, se perdeu a importante posição de Tsaritsyn, que, pela via fluvial, ligava a Rússia ao Cáucaso e à Ásia: os Brancos se apossaram dela, no final de junho de 1919, e a ocuparam por muitos meses.
(idem, p.108).

Levando tudo isso em conta, não é muito sintomático que, no ano seguinte à morte de Vladimir, o XIV Congresso do PCUS tenha substituído o nome de Tsaritsyn por Stalingrado? Será que os internautas que postaram o meme com a frase “Eu avisei: aqui a Alemanha não vence” conheciam essa história? Será que os torcedores digitais têm consciência das implicações deste post? Enfim, entre os que compartilharam o sorriso sarcástico do “coveiro da revolução”, há “inocentes de boa-fé” e “equivocados de má-fé”: estes devem ser combatidos; aqueles, esclarecidos. Ainda que ambos tenham feito “gol contra”, perdendo a revanche sem precisar jogar… Aliás, onde é mesmo que a Alemanha entrou nessa história?

Para encerrar a partida, imagine um meme com este recado: “Eu avisei: aqui stalinista não vence”. Agora a coisa ficou russa: cartão vermelho para quem veste a camisa de Josef!

* Paulo César de Carvalho, o “Paulinho”,  joga no time da RESISTÊNCIA-PSOL.

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