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EDITORIAL

A importância da auditoria da dívida para enfrentar os lucros exorbitantes dos bancos

Editorial de 03 de julho de 2018

Está aberta uma importante discussão programática na campanha de Guilherme Boulos e Sonia Guajajara para a Presidência da República (MTST-PSOL-PCB-APIB, entre outros movimentos e organizações) em torno do tema da dívida pública. Em função da importância desse tema, julgamos fundamental abrir um diálogo franco com o conjunto dos movimentos e organizações que constroem essa candidatura.

A auditoria da dívida é uma proposta constantemente reivindicada pelos movimentos sociais brasileiros e a esquerda socialista nas últimas décadas. Essa iniciativa tem demonstrado ser de grande valor pedagógico para explicar os mecanismos de transferência de dinheiro público para os grandes bancos e instituições financeiras. O próprio PSOL tem, em sua trajetória, uma grande vinculação com esta bandeira. Por exemplo, em 2015, a bancada do partido na Câmara dos Deputados conseguiu incluir a auditoria da dívida no chamado Plano Plurianual. Infelizmente, a ex-presidente Dilma (PT) vetou esta proposta.

Apesar desse veto, não se deve considerar que se trata de uma proposta impraticável. Experiências de auditorias das dívidas públicas já foram conduzidas em outros países, como o Equador e a Grécia. Nos dois casos, independentemente dos seus resultados efetivos, é preciso indicar que essa iniciativa não significou uma ruptura com os agentes financeiros internacionais, o que demonstra se tratar de uma iniciativa possível, mesmo nos marcos do regime político atual. Lembramos, ainda, que a proposta da auditoria da dívida, longe de representar uma proposta de calote nos pequenos investidores, é um recurso previsto na Constituição Federal, e tem como objetivo atacar as ilegalidades na conformação do montante da dívida e nos juros aplicados sobre ela. Portanto, mesmo respeitando os (as) companheiros (as) que divergem de nossa posição, seguimos considerando fundamental que a auditoria da dívida seja parte do programa da esquerda socialista para as próximas eleições, principalmente pelos elementos que listaremos ao longo deste texto.

A dívida brasileira
A dívida interna brasileira saltou de R$ 86 bilhões em 1995 para mais de R$ 3 trilhões e meio em 2018. Esse salto absurdo é fruto dos juros exorbitantes e de especulação financeira. Entre os países da América Latina, o Brasil tem o maior percentual da dívida em relação ao seu Produto Interno Bruto (PIB), chegando a 74%. Segundo previsões de importantes agentes do mercado financeiro, essa relação deve se agravar nos próximos anos, alcançando os 80% até 2022. Portanto, é um erro desconsiderar o problema da dívida e suas consequências sobre o grau de dependência da economia brasileira em relação ao mercado financeiro, seja ele nacional ou internacional.

Segundo o Tesouro Nacional, hoje temos um estoque total de dívida de R$ 3,63 trilhões, sendo 96,33% desta dívida interna, 3,67% externa e 0,37% contratuais (ou seja, através de contratos e não de títulos, com organismos multilaterais, agências governamentais e outros). O valor gasto apenas com o pagamento de juros anualmente é estratosférico, sem considerar o que se paga da dívida em si. Em 2017 foram mais de R$ 203 bilhões gastos em juros, o que equivale ao dobro do que se gastou em todo o ano em Educação (R$ 103 bilhões) ou em Saúde (R$ 102 bilhões).

Já a Campanha Nacional pela Auditoria Cidadã apresenta dados ainda mais preocupantes, indicando que, em 2017, a dívida interna brasileira superou os R$ 5 trilhões. E a dívida externa chegou a 550 bilhões de dólares. Valores que são muito altos e que comprometem bastante a capacidade de investimentos do Estado brasileiro. Segundo a mesma fonte, no ano de 2017, foram pagos R$ 986 bilhões de juros e amortizações da dívida pública federal. Este valor representa cerca de 40% do total do Orçamento da União.

Esse quadro é continuamente agravado pelo fato de que a taxa de juros brasileira continua entre as maiores do mundo. Em um levantamento feito pelo Esquerda Online com 168 economias, o Brasil mantém – mesmo com a recente diminuição da SELIC – uma taxa de juros de quase duas vezes e meia e mediana mundial. Apesar de estar na 43a posição, poucas economias relevantes estão à nossa frente (Argentina, Irã, Equador, Turquia, Egito, Rússia e Iraque). Isto torna o negócio da dívida no Brasil algo muito lucrativo, atraindo bancos e investidores estrangeiros para ganhar dinheiro com esta usurpação nacional.

Quem se beneficia da dívida?
A dívida interna brasileira – que compõe a imensa maioria da dívida pública – não está nas mãos de pequenos poupadores. Segundo o Tesouro, quase metade dela remunera os maiores agentes do mercado financeiro, destacando-se os bancos (21,76%) e os fundos de investimento (27,29%), sempre ligado a bancos. Assim, em 2017, segundo estudo feito pelo DIEESE sobre os balanços dos cinco maiores bancos do Brasil, R$ 199 bilhões das suas receitas tiveram origem justamente nos títulos e valores mobiliários, a maior parte desses valores é ligado aos ganhos referentes ao mecanismo da dívida.

Além de controlarem a maior parte dos papeis da dívida, os bancos também gerenciam as transações desses papeis. Todo ano, o Tesouro Nacional nomeia os chamados “Dealers” (negociantes, na tradução do inglês), que são instituições financeiras credenciadas para controlar as regras do mercado de títulos da dívida. Atualmente, 12 instituições financeiras são os “Dealers” da dívida interna brasileira. Entre elas, nove bancos nacionais e estrangeiros e corretoras de valores e distribuidoras. É a velha máxima: “Colocar as raposas para tomar conta do galinheiro”.

Por outro lado, o fundo público (aquilo que a economia burguesa chama de “orçamento público”) que é usado para remunerar os títulos da dívida é composto majoritariamente por recursos oriundos dos trabalhadores. Em função da estrutura tributária absolutamente regressiva do Brasil, as grandes fortunas não são taxadas e os impostos sobre consumo possuem grande peso, atingindo de forma desproporcional os trabalhadores. Além disso, mesmo os impostos pagos pela burguesia são fruto do trabalho não pago (mais-valor) extraído da classe trabalhadora.

A dívida não é solução
Em função da grave crise enfrentada pelo Brasil, uma parte da esquerda considera que o endividamento do Estado pode ser importante para dinamizar a economia, atacar o desemprego e incentivar os investimentos privados. De acordo com esse raciocínio, uma dívida com maiores prazos de pagamento e remunerada a uma taxa de juros mais baixa poderia gerar os recursos necessários para essa recuperação. Essa proposta se sustenta no arsenal teórico keynesiano.

Partindo de um ponto de vista marxista, nossa posição é outra. Embora o Estado seja um importante indutor das ações econômicas, não é capaz, sozinho, de convencer os milhares de agentes privados a aumentarem seus investimentos. Em uma economia capitalista, o fator mais relevante para incentivar os investimentos privados é a taxa de lucros do capital, que permanece em patamares limitados, quando comparados com os níveis anteriores ao início da crise. Além disso, no cenário de um eventual governo do PSOL, a desconfiança do conjunto da burguesia seria redobrada, tornando-a ainda mais cautelosa em seus investimentos. Ou seja, também não é possível pensar que esse governo contaria com o apoio maciço de uma burguesia “produtiva” em oposição à burguesia financeira.

Em suma, a dívida pública não é uma solução para a crise brasileira, nem deve ser tratada como um tema de gestão técnica do Estado. Se trata, pelo contrário, de um grande problema político, que está na raiz das limitações às ações do próprio Estado brasileiro.

Acabar com o controle dos bancos sobre o mecanismo da dívida
A auditoria da dívida vai ajudar a demonstrar as ilegalidades praticadas pelos grandes bancos e instituições financeiras, suspendendo e anulando as partes ilegais dessa dívida e devolvendo ao Estado brasileiro o controle sobre essas importantes operações financeiras. É ela que possibilitará colocar realmente o “dedo na ferida” e atacar o poder político dos bancos. É impossível pensar um país realmente independente, que ataque os enormes privilégios do 1% mais ricos, sem interromper a terrível transferência anual de recursos públicos para o capital financeiro.

Nos últimos anos, a economia brasileira vem se tornando cada vez mais dependente do mercado mundial. Portanto, não se recupera de forma significativa a capacidade de investimento do Estado brasileiro sem mexer no mecanismo perverso gerado pela dívida pública, com seus juros exorbitantes e amortizações.

Além disto, através das agências de risco, os bancos chantageiam Estados a partir de suas dívidas públicas. Rebaixam notas de crédito quando não aprovam reformas como a da Previdência e Trabalhista, ameaçando assim as dívidas públicas destes países, assim como faziam na década de 1990 o FMI e o Banco Mundial.

Simplesmente levantar uma proposta de alargamento dos prazos de pagamentos e serviços da dívida, ou pior, acreditar que uma dívida deste montante seja positiva para o desenvolvimento nacional, é deixar de enfrentar a grande fonte de lucros exorbitantes e ilegais dos bancos e instituições financeiras em nosso país.

Por isso, a campanha da Auditoria Cidadã publicou uma carta aberta à população, cobrando dos pré-candidatos nas eleições deste ano a defesa da auditoria da dívida pública, entre outras propostas que visam combater os lucros exorbitantes dos grandes bancos.

Vamos, sem medo de mudar o Brasil. E um dos primeiros passos fundamentais dessa mudança deve ser o compromisso fundamental da nossa campanha com a defesa da auditoria da dívida, sempre se apoiando na mobilização e organização do povo trabalhador, da juventude e do conjunto dos explorados e oprimidos para garantirmos a efetivação de nossas propostas e do nosso programa para o país.