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Contra o pessimismo

Por: Betto della Santa, de Niterói/RJ

O pessimismo e o otimismo fazem parte do senso comum. São estados de espírito que, como polos opostos, não deixam de ser vulgares, e até algo banais. Quando associados a visões de mundo messiânicas, de tipo milenarista, alcançam o status de sagrado e – com retórica inflamada – podem subir aos céus ou descer aos infernos. Os exemplos são muitos. Abundam. Mas dado o contexto efetivo em que nos toca viver vale a pena ver, mais de perto, os mais próximos. Qual diria Brecht, estranhar àquilo que nos é familiar. Vale a pena acompanhar de perto o argumento de Terry Eagleton (2015) sobre a questão.

A tradição cristã – por exemplo – é ali considerada uma concepção total de mundo mais pessimista do que um qualquer humanismo secular ao mesmo tempo em que seria, sem qualquer termo de analogia, imensamente mais otimista. Se por um lado é dum brutal realismo em relação a tudo o que tem a ver com uma inamovível natureza humana – da inexorabilidade do mal à perversidade da autoilusão, até o escândalo do sofrimento – por outro também constitui absoluta redenção a esta tão terrível condição. De tão possível – pasmem ou regojizem-se? – já se-a fizeram em nosso nome: — Praise the Lord! Aleluia!

O último dos stalinistas convicto e confesso, o mais preguiçoso e vulgar, jamais poderia proclamar impune – nos dias de hoje – que o socialismo é o inexorável e, menos ainda, que ele já apareceu sem que sequer nos tivéssemos dado conta. Para as profissões de fé, contudo, o advento dum tal Reino é, de antemão, assegurado. Pois a vinda de Jesus, do Mundo dos Mortos, teria-o já fundado. A nova sociedade – a cidade futura – é possível em base a um corpus transfigurado. E é isso o que se celebra, na Páscoa. A Ressurreição.

Mas, atenção! Não era lá o caso de uma concertação sindical ou barganha política. Nada de negociações. Sem pactos. O Messias é um irredutível: ou se está a favor – ou se está contra. Nada de meios-termos tão ao gosto das suscetibilidades mais contemporâneas. Nem migalhas de pão nem servir vinho novo em velhas garrafas. Outro mundo possível e necessário é prenúncio ou encarnação, mas nunca gradualismo. Neste exato sentido muito específico Cristo foi, mais que reformista social, um vanguardista revolucionário.

Cristo não dava nome a uma transição pacífica – do velho para o novo – à maneira de qualquer socialismo evolucionário à la Edward Berstein ou seu Partido Socialdemocrata Alemão. Dada a urgência e até severidade da aludida condição – que os Gospels dirão o Pecado do Mundo – alcançar uma ordem social igualitária envolve passar mesmo pela morte, pela condição do Nada, o mais absoluto, turbulência irascível: o pior dos flagelos.

Mas por que os seguidores de Jesus Cristo tão-só esperam a tal vinda do Reino dos Céus? Tem a ver com algo que pode soar até bastante banal, para nós, mas que não podia fazer qualquer sentido, para eles. Não havia no horizonte, de toda a gente, qualquer noção de que a atividade humana poderia jogar algum papel de auxílio em sua fundação na terra. O cristianismo primício imaginou-o antes como dom-de-Deus — e não um ato histórico. Não à-tôa foi necessário um desenvolvimento histórico de longa duração para superá-lo. O otimismo e o pessimismo também fariam história nas ideias políticas do socialismo: em um outro tipo de escrita da história, e toda uma outra forma de fazimento da história.

O novo tempo do mundo?
O espectro da autodeterminação – um novíssimo modo de fazer história – só surgiu nos últimos duzentos anos. A única concepção de história disponível naquele então era uma ‘Heilsgeschichte’ ou, em miúdos, algo como a História da Salvação – ‘Sagrada’ – e todo um outro tempo. Walter Benjamin tematiza, ao final de suas Teses sobre o Conceito de História, uma possibilidade efetiva para a instauração de um novo «Tempo-de-Agora». O materialismo histórico e a história sagrada se voltam contra a ideia de progressivismo. Acreditamos que este espectro ronda o globo e é um tema que vale a pena rever adiante.

A remissão a valores e crenças de que se navega a favor da corrente do mar da história, a confiança cega no incessante desenvolvimento material das forças sociais produtivas, a fé inexorável – em uma imparável elevação da consciência social do proletariado – e a asseveração de inevitabilidade à finalidade socialista do curso dos acontecimentos foi um ópio socialdemocrata do movimento da classe trabalhadora, de sindicatos e partidos. Seria, hoje, politicamente farsesco repetir à tragédia histórica naïf de inícios do Século XX.

O Kulturpessimismus não deixa de ser o marco epocal que divide águas no socialismo. A quarta vaga geracional do marxismo continental europeu fez renascer a este idioma. Usando expressões até então ininteligíveis – para Engels e Marx, Mehring ou Labriola,  de Rosa Luxemburg a Leon Trotsky – diferentes marxistas tal Adorno, Sartre, Althusser e Benjamin foram bastiões intelectuais deste novo pessimismo teórico da razão crítica. A derrota histórica da revolução no Século XX deixaria profunda marca em seus expoentes.

A Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer pode ser considerada magnum opus do pessimismo marxista, campeã invicta da negação dialética na Europa ocidental. A Crítica da Razão Dialética de Sartre valoriza o tema da escassez em uma nova chave. E Althusser é responsável por articular a noção de ideologia tal qual um Appareil d’État. Mas é Benjamin quem irá desafiar vigorosamente o cânone do progresso enquanto tal. O mais peculiar marxismo ocidental – para Anderson (1974) – é, também, o mais típico.

As inovações temáticas do assim-chamado marxismo ocidental antecipam problemas reais (e fulcrais) de toda história do movimento socialista pós-primeira guerra mundial. Muitas das preocupações de Adorno com a natureza, que à altura apareciam enquanto desfasamento algo perverso no relativo à orientação das obras do Instituto de Frankfurt, reapareceram, subitamente, nos amplos debates, posteriores, sobre o meio-ambiente. A incursão principal de Althusser, sobre a ideologia, foi diretamente inspirada pela onda de revoltas no interior do sistema de educação superior do mundo capitalista avançado. O tratamento do problema da escassez por Sartre esquematizou a cristalização universal da burocracia, após todas as revoluções socialistas – levadas a cabo nos países atrasados.

Todas as principais inovações e/ou desenvolvimentos teóricos, no seio deste corpus, se distinguem da tradição prévia do materialismo histórico pela falta de clareza dos seus corolários e de suas conclusões. A este respeito, entre 1920 e 1960, o marxismo mudou – lentamente – de cores e texturas no Ocidente. A confiança herdada, o otimismo dos fundadores, e a altivez dos sucessores, desaparecera, inescrutavelmente. Quase todos os principais temas novos da história intelectual, desta época triturada, revelam a mesma diminuição da esperança e a mesma perda de convicções. O arco da descrença distópica.

Para onde vai a teoria?
À melancolia intelectual – impregnada na obra dos críticos de Frankfurt – falta qualquer nota de energia militante que se lhe possa fazer frente. Adorno/Horkheimer puseram em causa a própria ideia de domínio do homem sobre a natureza como o reino da liberdade, para lá do capital. O pessimismo de Althusser, ou Sartre, tivera outro horizonte. Mas não menos grave que o anterior; o socialismo realmente existente. Althusser afirmou que até o comunismo permaneceria opaco, enquanto ordem social para os indivíduos que nele vivessem, enganando-os com a perpétua ilusão do livre-arbítrio. Sartre rejeitou a própria ideia de ditadura do proletariado, como impossível. E interpretou à burocratização das revoluções como o produto invariável de uma escassez cujo fulcro seguiria insuperável. Estas teses conjugaram-se com acentos particulares, e cadências gerais, perfeitamente invulgares na história precedente do movimento socialista internacional. E foram estas também, de forma menos direta ou verbal, sinal inconfundível de alterações profundas.

O tom e as alegorias que Adorno e Althusser, Sartre e Benjamin, iriam utilizar mudaram drasticamente todo ambiente literário precedente. Benjamin foi quem melhor sintetizou uma concepção de história da intelligentzia centro-europeia em linguagem que teria sido quase incompreensível para todas as gerações anteriores: «Eis como retratamos o Anjo da História. A sua face está virada para o passado. Onde nós percebemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma única catástrofe que mais não faz do que empilhar naufrágio sobre naufrágio e os atira para diante dos pés. O Anjo gostaria de permanecer nesse lugar, de acordar os mortos e reconstruir o que foi destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso: tomou as suas asas com tal violência que o Anjo não as pode já fechar. Esta tempestade impele-o irresistivelmente para o futuro, para o qual as suas costas estão voltadas, enquanto o amontoado de escombros que se lhe depara cresce em direção ao céu. Esta tempestade é aquilo a que chamamos Progresso». E Benjamin soía afirmar que mesmo mortos não estariam a salvo – enquanto seguirem vencendo os vencedores…

É certo que Benjamin – como Antonio Gramsci – foi vítima do fascismo enquanto dava luta sem quartel contra o stalinismo. Mas também no segundo pós-guerra mundial o tom sombrio foi inequívoco. Talvez o mais urgente de todos os escritos de Althusser, por exemplo, possa advertir – com feroz violência – para o desenvolvimento social desde o nascimento à infância. Desenvolvimento, este, que estaria na origem do surgimento do inconsciente qual uma provação a que todos os seres humanos teriam de passar ao largo da vida. Com inspiração em Freud, o professor d’Ulm irá retratar uma ‘guerra infinita’ e algo como a ‘morte não-oficial’, de uma série ininterrupta de pulsões de vida, no mundo dos homens. Também Sartre iria usar metáfora atroz, para comparar as relações entre os homens, em chave de escassez – ‘raritá’ de Galiani –, ‘duplo demoníaco’ e, até, ‘outra espécie’. Passagens como estas fazem parte de uma prosa fundamentalmente estranha ao mundo – da política e das letras – de Marx, de Labriola ou de Trotsky. E trazem um pessimismo subjacente para lá de intenções ou das teses – declaradas – dos seus autores.

As características que circunscrevem esta constelação de marxistas tal tradição distinta tem a ver com a origem no malogro das revoluções socialistas nas zonas desenvolvidas do capitalismo europeu após a primeira guerra mundial. Desenvolvendo-se no meio de uma crescente cisão entre a teoria política socialista e prática da classe trabalhadora, o abismo entre ambas, que começou a ser cavado pelo bloqueio imperial à Revolução dos Soviets, veio a ser ampliado e consumado – institucionalmente – pela burocratização da URSS e do Comintern durante o regime de Stálin. Para os expoentes do novo idioma não estava em causa uma renúncia formal à ideia de revolução. Mantiveram o horizonte intelectual de uma transformação social, radical, mediante a agência humana, socialista. Mas longe de qualquer ativismo este léxico marxista ateve-se a uma República de Letras. E virou letra – e república – morta.

Um divórcio estrutural, entre a teoria e a prática, impediu a consecução de um trabalho político e intelectual de conjunto, do tipo do que definiu todo marxismo precedente. Em consequência disso, os teóricos refugiaram-se nas academias, afastando-se do modo de vida e de luta das classes trabalhadoras dos seus próprios países. E a teoria abandonou a economia e a política pela filosofia e a estética. Esta especialização conjugou-se com uma linguagem cada vez mais truncada, cujas barreiras ergueram-se em função da sua distância das massas. Inversamente, ela conjugou-se também com um rebaixamento do nível de conhecimento mútuo – ou de comunidade internacional – entre os próprios teóricos dos diversos países. Foram localistas onde e quando seus ascendentes eram internacionalistas. A perda de todo e qualquer contacto dinâmico com a prática da classe legou o método como impotência, a arte como consolação e o pessimismo como acicate.

Mas não podemos reduzir tal tradição, como um todo, a este triste panorama. Apesar de tudo, os seus principais quadros mantiveram-se autoimunes ao reformismo tradicional. Apesar de se encontrarem tão apartados das massas, em geral, e dos trabalhadores, em particular, quase nenhum deles – exceção ao que veio a ser o renegado Horkheimer – veio a capitular ao capitalismo triunfante, como antes deles fizeram alguns teóricos da Segunda Internacional, triste memória de Karl Kautsky, muito mais próximo da luta de classes. E tanto mais – por entre as suas próprias inibições e silêncios – a experiência histórica de quê as suas obras eram uma expressão cabal foi também, em certos aspectos particulares, das mais avançadas do mundo, pois que englobavam às mais altas formas de economia capitalista, o proletariado industrial mais antigo e as mais longas tradições intelectuais do socialismo. Trata-se – sem sombra de dúvidas – de um riquíssimo legado.

Outro marxismo?
Ora, poderíamos dizer que esta tradição intelectual – para além de alguns epígonos e/ou de casos isolados – encerrou seu ciclo histórico com a onda internacional de revoltas e a crise estrutural do capital que sucedeu o fim dos anos 60 e o início dos 70 no Século XX? Sempre soa algo definitivo demais colocar uma pedra sobre qualquer grama. O mundo ‘vasto e terrível’ sempre dá voltas. Cremos que parte importante deste tipo de marxismo encontra-se viva. O marxismo das formas de Frederic Jameson, nos Estados Unidos, ou o ensaísmo crítico de Paulo Arantes, no Brasil, dão mostras de uma produção instigante. Mas nos parece que o caso mais significativo, naquilo em que aprofunda e também no que desprega da tradição pós-clássica, é mesmo o de Perry Anderson. De um otimismo político acachapante nas urgentes teses, de 1974, a pessimismo intelectual tão aterrador quanto cortante no editorial manifesto, de 2001, vai lá uma distância de muitos alqueires. O paladino dos marxistas soixante-huitards – sessenta-e-oitistas – foi o mais longe deles:

“(…) é hoje visível o advento de um novo período no movimento dos trabalhadores (…). A revolta francesa de Maio de 1968 constitui … um profundo ponto de viragem histórica. (…) Nos anos que se seguiram assistiu-se a uma onda internacional cada vez mais ampla de insurreições …, diferente de tudo àquilo que tinha sucedido. (…) A possibilidade de reposição duma relação íntima entre teoria marxista e prática de massas, resultante das lutas reais da classe trabalhadora, torna-se muito maior. As consequências de tal unificação entre a teoria e a prática poderão transformar o próprio marxismo recriando a condições que à sua hora estiveram na origem dos fundadores do materialismo histórico.” (Anderson, Perry, 1974, , tradução nossa)

Anderson apostava as suas fichas – em meio ao processo revolucionário em curso, o «PREC» da Lisboa insurrecta e a sua tão celebrada revolução de cravos nos fuzis – no propício cenário que ia de finais de 1967 a meados de 1975, em que a Europa ocidental tendia a produzir outro tipo de marxismo à hora e lugar dos atos, bloqueios e barricadas. A galvanização, combustível e dinamização desse marxismo caberia a uma tradição em tudo alheia ao que conformou o mais típico dos marxismos daquele rincão do mundo. Na sua fase mais “bolchevique-leninista” Anderson expressa – de modo mais acabado – a sua mais nova adesão à corrente de tradição trotskista como um cânone de interpretação.

Enquanto a vanguarda da cena, na história das ideias socialistas, fora ocupada por esta vertente outra tradição, em tudo distinta, teria se gestado por fora dos holofotes centrais. O marxismo ocidental sempre sofrera uma constante ‘atração magnética’ por parte do comunismo oficial enquanto ‘a’ única encarnação histórica da classe trabalhadora. Nunca aceitou totalmente o stalinismo, embora também nunca o tenha combatido ativamente. Mas fosse qual fosse o tipo de atitude, que os seus sucessivos expoentes adotaram em relação àquele, para todos efeitos não existiriam outras esferas nem qualquer outro meio realista de ação socialista fora deste raio de influência. Tal dique os separou de Trotsky.

Se é verdade que o caráter ultrassintético deste escrito tenderia a muitas simplificações – o material original serviria de introdução a uma coletânea de textos dos ‘ocidentais’ –, também o é que a letra de Anderson dá vazão a dadas expectativas revolucionárias gerais. Para além deste legado, de Trotsky, houve o operaísmo italiano, o maoísmo francês e o conselhismo alemão, para citar tão-só alguns exemplos. Mas enquanto uma objetivação duradoura de uma esquerda antistalinista internacional, não seria um exagero afirmar-se a importância que assumiu a teoria e o movimento de tradição trotskista em nível global.

Mas um largo isolamento da classe trabalhadora organizada e a ausência prolongada de levantamentos revolucionários de massas imprimiu-lhe inexoráveis efeitos deletérios. A reafirmação da validez da revolução social e/ou da democracia direta, contra os tantos acontecimentos que as denegavam, inclinou-lhe involuntariamente ao conservantismo. A preservação da doutrina clássica ganhou prioridade sobre o desenvolvimento da teoria revolucionária. Certo triunfalismo relativo à causa do trabalho e dado catastrofismo na análise do capital – concepções defendidas mais através da vontade otimista do que da inteligência pessimista – foram, nas suas formas usuais, peculiares vícios desta tradição.

A autocrítica que Anderson realiza, em seu Posfácio, é nada menos do que demolidora. Após o fim dos eventos políticos – do ciclo histórico aludido – a ‘coruja de Minerva’ é, daí, implacável. A leitura seria algo ativista, irresponsável? A distinção, entre clássicos e ocidentais, reducionista e insustentável? O próprio leitmotif de nexo teoria-movimento – e/ou razão-revolução, ciência-classe, materialismo histórico-insurreição do trabalho –, de tão sólido, se desmancha no ar. Da expectativa revolucionária ao que Gilbert Achcar irá denominar ‘pessimismo histórico’ (Duncan, Blackledge, Elliot) Anderson resume o novo signo da época de grande parte da intelectualidade socialista após a queda do muro. O otimismo, um Kautsky ou Bukharin, seria substituído por empedernido pessimismo. Após pôr fim à ideologia e ponto final à história, já chegou a se falar n’o último homem.

O fim do fim da história
Ninguém foi mais claro ou carregou mais nas tintas desta visão criticamente pessimista sobre o presente histórico do que Perry Anderson no editorial-manifesto que refundou a revista de ideias mais longeva de toda a história publicística de toda esquerda mundial. O texto Renovações é a epítome do que Anderson chamaria de irreconciliável realismo (‘uncompromising realism’). Escrito no ocaso do Séc.XX fala despudorada, abertamente, sobre uma derrota acachapante da esquerda em nível global. O diagnóstico apocalíptico chamou a atenção de Gilbert Achcar, Boris Kagarlitsky, James Petras e muitos outros. Para não poucos, tratar-se-ia dum adeus às referências cultivadas no período precedente.

A segunda série, a nova New Left Review, traduziu o novo espírito de época tal qual era pensado por muitos outros expoentes que não tiveram clareza a política ou honestidade intelectual de elaborá-la tão cristalinamente. “O bloco soviético sumiu. O socialismo deixou de ser um ideal ampliado. O marxismo já não predomina na cultura de esquerda. Até mesmo a socialdemocracia se dissolveu em grande parte. Dizer que essas mudanças são enormes seria um eufemismo.” Senão a morte do marxismo seria o ‘fim da história’?

Os anos noventa foram especialmente duros para o marxismo quando sicofantas a soldo do capital decretaram que o que tivera fim – na URSS e no Leste Europeu – não fora a ditadura stalinista mas, sobretudo, o próprio socialismo. O término da Guerra Fria propiciou oportunidade – por primeira vez na história – para que o capital e sua ordem pronunciassem os seus nomes próprios, abertamente, numa ideologia que anunciava a chegada do ponto final ao próprio devir, construído, este, sobre as premissas do livre-mercado, para além do qual seria impossível imaginar quaisquer melhorias substanciais.

Francis Fukuyama deu-lhe expressão teórica mais ampla e ambiciosa enquanto noutras elaborações – mais vagas e populares – também se difundiu uma mesma mensagem: o capitalismo é destino histórico-universal, permanente e inevitável, do gênero humano enquanto tal. Ou “por fora da realização deste destino pleno”, dizia-se, “there is no alternative”. O argumento de ‘O Fim da História e o Último Homem’ foi deslocado em sua mais nova obra, produzida após-invasão do Iraque, a bastante reveladora ‘América na Encruzilhada’. O ‘fim da história’ – de Hegel, Kòjeve, Fukuyama e, até mesmo, do último Anderson – assistira desta forma ao seu próprio final. Se de-há pouco se sentiu anunciar ao que seria a crise à ‘crise do marxismo’ ver-se-ia um fim ao ‘fim da história’.

A miséria terrena, e pensamento único, da dita “falência das metanarrativas” deu lugar, nada obstante, a um aluvião de novos ares – proveniente daquilo que Marx chamaria o ‘movimento social como um todo’ – e tem permitido novos céus sob assalto da teoria marxista. A crítica espontaneísta, à universalização de sua forma mercantil, presente de modo difuso em várias insígnias anticapitalistas, de Wall Street ao México e da Europa mediterrânea ao mundo árabe, enredou-se a uma crítica teórica e política mais radical à propriedade privada, pista de voo pavimentada pelo autor d’O Capital. As iniciativas de luta contra as expressões fenomênicas da ordem do capital encontra, em perspectiva marxista, um importante pilar. O colapso do stalinismo e o declínio da socialdemocracia expressam uma crise de direção dos dominados; o atoleiro de Washington e de Bruxelas manifestam a crise de hegemonia dos dominantes. O otimismo e o pessimismo não tem lugar em um tempo presente que insiste em intercambiar de lados a medos e esperanças.

Uma rápida olhada nos catálogos das principais editoras de esquerda em língua inglesa, idioma que assumiu a supremacia linguística do marxismo contemporâneo, vai mostrar que nos terrenos da crítica da economia, da política e da cultura a perspectiva socialista está longe de estar intelectualmente derrotada. Com um cauteloso otimismo e genuína alegria desde o Brasil organizamos, participamos, assistimos a uma série muito animada de colóquios, congressos, tertúlias acadêmicas e lançamentos editoriais associados à efeméride dos 150 anos da edição do Livro I d’O Capital, à comemoração de 100 anos da Revolução de Outubro e os 80 anos de Antonio Gramsci. E muito mais correu mundo.

Mas o seu contraste é evidente. Não houve qualquer termo de comparação possível em profundidade e extensão – quantidade ou qualidade – de atividades extra-acadêmicas e não-editoriais que tivessem já lugar em sindicatos, movimentos de trabalhadores e/ou partidos identificados com a luta socialista que fossem dignas de nota, infelizmente. Se serve de algo, nos Estados Unidos da América e Europa ocidental, além de consagradas atividades científicas relacionadas à concepção materialista da história, aí, sim, se fizeram notar eventos deste tipo no âmbito de organizações coletivas no terreno político da esquerda socialista radical. Mas, ainda assim, tampouco sem um qualquer vestígio de uma audiência e/ou participação ativa, de massas. São tempos difíceis, é verdade. Mas tampouco foram fáceis, convenhamos!, os anos vividos por Marx e Engels, Lenin e Trotsky, Rosa Luxemburg e Antonio Gramsci. É preciso encontrar saídas e explicações. No ano do 200º aniversário do velho mouro sobretudo é preciso tecer alternativas. Pra já.

Do desespero convincente à esperança viável
É possível encontrar dos mais baixos vales, depressão pessimista, aos mais altos cumes, de euforia otimista, no interior da tradição marxista. O exercício de topologia intelectual não deixa de ser algo tal qual sismógrafo político a auscultar o pulso das massas de perto. Salvo ledo engano não poderia haver mais catastrófica preleção sobre o futuro humano do que o alerta de Friedrich Engels para o fato mesmo de que o sistema solar vai ter fim. A absoluta convicção na aniquilação do Planeta e todo o gênero humano sobre a face da Terra, afinal de contas, não é propriamente a mensagem dum ensolarado café da manhã. O destino último para o qual sucessivos militantes – de Blanqui a Lyotard – imaginaram fugas intergalácticas, voos interplanetários e repovoamentos épicos, dignos de melhores constructos da indústria cinematográfica de Hollywood em seus delírios mais fantásticos (se é que Los Angeles ainda é capaz de produzir algo digno de atenção), não encontrou no mais bem-disposto, bem-alimentado dos fundadores do materialismo histórico solução:

“Milhões de anos podem se passar, centenas de milhares de gerações nascerem e morrerem, mas inexoravelmente chegará o tempo em que o calor declinante  do Sol não será o suficiente para fundir o gelo que vem dos polos, em que a espécie humana, acotovelando-se cada vez mais no centro do globo, já não há de encontrar, nem na Linha do Equador, o calor que torna possível a vida humana, em que esta perecerá, gradualmente, e se extinguirá pari passu todo e qualquer vestigio de vida orgânica, e a Terra, então esta esfera congelada e extinta, ora parecida à Lua, continuará a girar por toda a escuridão infinita mais profunda em órbitas cada vez menores entorno a um Sol também findo e, por fim, juntar-se-á ao defunto Astro.” (Engels, Friedrich, 1965, tradução nossa)

A sombria mortalha, imagem literária tão portentosa, foi usada por sucessivas vagas de militantes socialistas para referir um destino fatal, mas distante. Rosa Luxemburgo, por exemplo, usava constantemente uma macambúzia alegoria para designar a ativação dos “limites internos absolutos” do próprio capital, em reprodução ampliada, teoricamente verdadeira, como tese, à qual opunha a “luta de classes”, como antagonista derradeiro, muito antes de vir a ser. Tal limite interno era qual a “extinção do Sol” de tão longínquo. Vibrando na mesma frequência desta largura de ondas, Trotsky imaginara um futuro mais que brilhante nos seus escritos sobre Literatura e Revolução para o gênero humano.

“A sociedade futura irá se destacar da áspera e embrutecedora preocupação do pão de cada dia. Os restaurantes coletivos prepararão, à escolha de cada um, comida boa, sadia e apetitosa. As lavanderias públicas lavarão bem as roupas. Todas as crianças serão fortes, alegres, bem alimentadas e absorverão os elementos fundamentais da ciência e da arte, como a albumina, o ar e o calor do sol”. Assim, “(…) as paixões liberadas irão se voltar para a técnica, para a construção, inclusive da arte, que naturalmente se tornará mais geral, madura, forte, a forma ideal de edificação da vida em todos os terrenos. A arte não será simplesmente aquele belo acessório sem relação com qualquer coisa”. «É difícil prever o espectro da autodeterminação a que o homem do futuro poderá alcançar (…). O homem se tornará incomensuravelmente mais forte, mais perspicaz, mais polido; seu corpo terá uma forma mais harmônica, seus movimentos serão mais dotados de ritmo, sua voz será mais musical.» (…) o próprio corpo humano “(…) será mais harmonioso, seus movimentos mais rítmicos, sua voz mais melodiosa. As formas de sua existência adquirirão qualidades dinamicamente dramáticas. A espécie humana, na sua generalidade, atingirá o talhe de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx. E sobre ela se levantarão novos topos.” (Trotsky, Leon, 1924, tradução nossa)

É a hora e a vez de prestar atenção aos conselhos do criador do Berliner Ensemble. Já é tempo de deixar o pessimismo marxista para os dias melhores. Em seu poema, Aos que virão, Brecht insiste em que só haveria que desesperar se e quando houvera injustiça sem resistência. E, mesmo nos tempos aparentemente sem resistência, o passado de luta constituiria valor como luz ao fim de um túnel. Recuperar o Dia do Juízo ainda que toda a justiça não se imponha ao final – uma vida dedicada à busca da felicidade do gênero humano continuaria digna de encomio. Não triunfar não é o mesmo que ter fracassado, da mesma forma que não é verdadeiro que bem está / é o que bem chega já a seu termo. Quem não luta com toda força até o fim nunca saberá se evitar o mal era factível ou não.

Não é à-tôa que sejam tão afamados os escritos de tom messiânico de Walter Benjamin. Uma era de revoluções sociais e transformações políticas não precisaria de tal antidoto. A reputação tão duradoura e estimada da Escola de Frankfurt em geral contrasta com o quasi-desconhecimento, por parte dos marxistas revolucionários, dos estudos culturais do marxismo inglês. Contemporâneos dos autores alemães, foram antipodas, à altura, do que foi este seu Kulturpessimismus. Sem opor a banalidade do otimismo ao pessimismo fatalista, The uses of literacy (1958), de Richard Hoggart, Culture and society (1958), de Raymond Williams, e The making of the English working class (1963), de Edward Thompson, lavraram o terreno que nutria a cultura tal qual uma ensamble intrincada de práxis e, tais práxis, a conformar a atividade vital humana que molda o curso da história.

Mais vale, como nos conta Williams – em entrevista a Terry Eagleton –, tornar viável a esperança do que convincente o desespero. É preciso distinguir as sementes de vida das sementes de morte. O critério ulterior da razão crítica é, para Williams como para Marx, um ato histórico, e não mental. “You are a Marxist aren’t you?”. Pois então mãos à obra. Como já dissera um outro marxista conterrâneo, o mundo não vai se transformar sozinho.

 

 

Bibliografia

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Marcado como:
Marxismo / teoria