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EDITORIAL

Entendendo a Economia: Mulher, mercado de trabalho e desigualdade

Por: Priscila Santana e Eline Matos, de Salvador, BA

Indústrias

Ao observarmos a sociedade capitalista, identificamos que existe uma divisão em classes sociais e uma divisão também de gênero do trabalho, ou seja, historicamente tem se configurado um padrão social no qual homens e mulheres não ocupam posições iguais nesta sociedade. Obviamente que esse quadro não decorre de leis naturais ou por determinações divinas, mas sim de modelos sociais instituídos historicamente por aqueles que definem politicamente a organização da sociedade entre quem vai produzir (vender sua força de trabalho no mercado de trabalho) e quem vai reproduzir (fazer o trabalho doméstico, aquele trabalho de cuidados) que mantém essa sociedade.

Na economia brasileira, quando analisamos a distribuição ocupacional das mulheres, identificamos que esse grupo não só tem altas taxas de participação nas piores situações da informalidade (trabalho não remunerado e emprego doméstico sem carteira de trabalho), como também, com relação aos empregos formais, encontram-se naqueles setores dos baixos salários. Se quisermos extrair mais informações desse cruzamento entre desigualdade de classe e de gênero no capitalismo brasileiro, vamos ver ainda que neste universo ocupacional as mulheres estão alocadas, em sua maioria, em um conjunto estreito de setores tidos em muitos discursos como profissões “naturalmente” femininas (empregos domésticos, magistério, enfermarias, na assistência social, etc.).

Essas observações são corroboradas com os dados relativos ao quarto trimestre de 2017 da PNAD Contínua, que confirmam que as mulheres ainda têm muito pelo que lutar no âmbito do mercado de trabalho. A pesquisa mostra que na categoria empregadores os homens ocupam 6%, enquanto que a participação das mulheres nesta categoria era de 3,3%, praticamente a metade. Contudo, na posição de trabalhador familiar auxiliar (profissão caracterizada pelo não recebimento de salário) as mulheres ocupam proporcionalmente 3,6%, nível acima aos dos homens que representa 1,5%. Ademais, há um dado bem revelador da forte divisão de gênero no mercado de trabalho brasileiro, que é o seguinte: a) naquelas profissões identificadas como “naturalmente” femininas e associadas a menores salários, a maior desigualdade encontra-se na categoria de empregados domésticos em que 92,3% são mulheres. Isso significa que mesmo quando o trabalho das mulheres está inserido no rol de atividades consideradas produtivas, ou seja, mesmo quando essas atividades são mediadas pelo salário, ainda assim a sociedade mantêm as mulheres predominantemente em postos de trabalho que parecem uma extensão do trabalho doméstico (de cuidados).

A história da consolidação do sistema capitalista no mundo inteiro – seja na Inglaterra do século XVIII, no Brasil da virada do século XIX para o XX, na China do presente, ou em qualquer outro lugar – está marcada pela exploração do trabalho produtivo e reprodutivo (de cuidados). Se lembrarmos que a consolidação do capitalismo – primeiro na Europa, e depois como modo de organização mundial da sociedade – teve como alicerce os ideais burgueses de liberdade e igualdade, instantaneamente reconheceremos que a realidade, especialmente a realidade das mulheres no mercado de trabalho, se contrapõe brutalmente a esses ideais repetidos como um mantra, mas tão distantes da realidade concreta em muitos países.

Essa divisão de gênero do trabalho, que se perpetua através das ideias que buscam naturalizar a subordinação e inferioridade das mulheres aos homens, se expressa nos dados da pesquisa que apontam que as mulheres estudam mais, têm maior nível de instrução, mas recebem menores salários do que os homens. Desde o Censo de 1991, constata-se que o percentual de mulheres com ensino superior supera o de homens com esse mesmo nível educacional. Contudo, ainda perduram gritantes diferenças salariais, bem como uma inserção das mulheres majoritariamente em ocupações mais vulneráveis, precárias e informais. Ainda que historicamente as mulheres tenham adentrado em áreas laborais predominantemente ocupadas por homens, dispondo em muitas situações da mesma qualificação ou até de qualificação superior à dos homens, ainda recebem menores salários.

A pesquisa da PNAD Contínua estima que as mulheres ganhem, em média, aproximadamente 24,4% menos que os homens. É importante destacar que colabora para uma menor remuneração das mulheres a necessidade de muitas trabalharem em jornadas parciais, a dimensão da empresa e a densidade sindical (por se inserirem predominantemente em empresas de pequeno porte e menor nível de sindicalização).

Os obstáculos não param no âmbito das profissões ou ocupações em que as mulheres estão inseridas. Sendo as mulheres ainda as principais responsáveis pelo trabalho doméstico, isso significa que elas realizam um “mais-trabalho”, um trabalho excedente em casa, que é não-remunerado, e é apropriado pelo modelo de família predominante que depende dele todos os dias para viver. Desse modo, a participação das mulheres não depende apenas da demanda empresarial pelo trabalho delas, mas também envolve responsabilidades familiares, cuidados, presença ou não de filhos. A mesma pesquisa da PNAD Contínua aponta que as mulheres dedicam 18 horas semanais a cuidados de pessoas ou afazeres domésticos, 73% mais tempo do que os homens (10,5 horas). Essa característica arraigada na sociedade patriarcal, determina que grande parte das mulheres procurem por ocupações em tempo parcial como estratégia para conciliar trabalho produtivo (mal pago) e trabalho doméstico (não-pago).

Como já afirmado, o modelo patriarcal ainda dominante na sociedade atual condiciona as mulheres a serem as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados. Para reduzir os níveis de desigualdades da inserção da mulher no mercado de trabalho é extremamente relevante que o Estado desenvolva, como em alguns países, políticas sociais que universalizem o direito de acesso às creches, à educação infantil, básica e média, todas em tempo integral. Contudo, no caso do Brasil, a ascensão de Temer à Presidência da República em 2016 vai exatamente no sentido oposto dessas possibilidades de melhorias, pois este governo significou o reforço do modelo de subordinação e desvalorização das lutas das mulheres. Vale lembrar que uma das primeiras medidas do (Des)governo Temer foi exatamente a extinção do Ministério das Mulheres. Além disso, tanto a Emenda Constitucional n.95 – que estabelece o congelamento dos gastos sociais (educação, saúde, infraestrutura, etc.) pelos próximos 20 anos, afetando diretamente a possibilidade de ampliação de oferta de creches e pré-escolas -, quanto a reforma trabalhista e a terceirização, promovem a devastação dos direitos sociais, dificultando mais ainda a vida econômica para as mulheres. A nova regulamentação trabalhista, por exemplo, estabelece a prevalência do negociado sobre o legislado, que visa permitir os acordos individuais sobre as pausas para amamentação; negociação livre das férias e das horas extras; ampliação de horas do contrato de trabalho parcial. Ou seja, essa nova legislação certamente resultará em acordos individuais desfavoráveis para mulheres, perpetuando e ampliando a vulnerabilidade, a precariedade e as ocupações instáveis e informais.

Priscila Santana –  Integrante do Núcleo de Estudos Conjunturais da Faculdade de Economia (NEC/UFBA). Mestra  em Economia pela Universidade Federal da Bahia. 

Eline Matos – Integrante do Núcleo de Estudos Conjunturais da Faculdade de Economia (NEC/UFBA). Mestra  em Economia pela Universidade Federal da Bahia. 

*Texto publicado originalmente em Bocão News e cedido pelas autoras ao Esquerda Online

Marcado como:
economia / opressões