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EDITORIAL

Mês da diversidade LGBTI+: vivemos uma inequação?

Por: Carlos Henrique de Oliveira, de São Paulo, SP

Chegamos ao final do mês de junho, passando pela data em que relembramos a histórica revolta de Stonewall em Nova York, onde pessoas trans, lésbicas, gays e bissexuais se insurgiram contra a violência institucional e policial de forma mais radicalizada. Um tanto de décadas depois, aqui em terras brasilianas, quais reflexões podemos tomar sobre os avanços e retrocessos nas lutas das pessoas LGBTI+?

No último período, eu tenho falado muito no movimento de HIV/aids sobre o que eu chamo de “inequação”, isto é, aquela conta matemática que aprendemos lá no final do ensino fundamental cuja resposta nunca é fechada, sempre tem arestas, e tenho refletido que a resposta brasileira à epidemia de aids e das outras IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis) e Hepatites Virais estão dentro disso. Há avanços na tecnologia biomédica, na qualidade de vida, mas há pouco avanço social, aliás, há vários retrocessos. Ouso estender esse conceito para a pauta LGBT, para desenhar um paradoxo. E qual seria?

Ao mesmo tempo que falamos mais que nunca sobre diversidade de gênero e sexualidade em programas televisivos, propagandas de produtos e empresas, e até mesmo o capital e o neoliberalismo instrumentaliza nossas pautas para fazer pinkwashing, patrocinar coisas aqui e acolá para parecer democrático, socialmente responsável, nós somos o país que mais assassina pessoas trans e travestis no mundo, e 445 pessoas LGBT morreram somente em 2017. E isso não é de hoje: dados de 2012 , último relatório produzido pelo Brasil, apontam que por dia aconteceram 27,34 violações de direitos humanos de caráter LGBTfóbico, sendo 40% dessas pessoas declaradas como pretas e/ou pardas e 26% como brancas. Mais uma vez demonstrando o quanto raça, classe e gênero se encontram no modelo de exploração capitalista.

Para além da alta mortalidade pela violência direta, empresto o conceito que utilizamos no movimento negro de “genocídio indireto”, para falar da alta mortalidade por doenças tratáveis como a aids, a tuberculose, a pneumonia, sobretudo na população LGBT pobre e negra e a em situação de cárcere. Há estimativas que mais de 3 mil gays, bissexuais e HSH (homens que fazem sexo com homens) morram por ano de aids, dentro do conglomerado de 12 mil mortes anuais em decorrência da aids. Do total dessas mortes, a proporção de pessoas negras, sobretudo de mulheres negras, é três vezes maior que o restante da população. A cada 3 pessoas que morrem de aids, uma morre de tuberculose.

E por que estou falando disso num texto que deveria ser de arco-íris? Porque as condições de vida da população estão piorando na medida em que a exploração do capital sobre o trabalho aumenta. Alguns autores como Achle Mbembe estão falando em “necropolítica”, ou “política da morte” para este período. E eu tendo a concordar com isso, relembrando que as populações historicamente oprimidas são as primeiras a sofrerem os revezes do avanço da exploração. As condições sociais, de moradia, de saneamento, de acesso ao trabalho, de acesso a serviços públicos vão ditar, para além da bala da PM e dos assassinatos perpetrados pela LGBTfobia da sociedade civil, as LGBTI+ mais “morríveis”, mais afetadas pela política de morte.

E o movimento LGBTI+, como está? Bem, eu percebi nesse mês algumas coisas e quero compartilhar com vocês, leitores. A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo e os eventos da semana da diversidade me deram um norteador de algo que eu e algumas companheires de caminhada já andávamos observando: as disputas políticas dentro do movimento seguem o modelo de polarização visto no restante da sociedade, e também há uma tendência à fragmentação cada vez maior do movimento social, sobretudo por uma postura girados à direita ou à defesa do establishment por parte de setores majoritários do movimento LGBT.

Posso listar algumas coisas que indicam o que estou dizendo:

Veto a setores de esquerda: Não permitiu-se que a CUT e a Apeoesp, aliadas históricas do movimento LGBTI+, colocassem seus carros para desfilar na Parada, o que causou amplo repúdio da esquerda. Houve também um movimento de chamar coletivos de saúde LGBTI+ como o que eu faço parte, a coletiva Loka de Efavirenz, para fazer campanhas de prevenção às IST/aids bem superficiais e pró-governo, e houve uma total negativa por parte da Associação em pautar questões relativas a raça e classe social na pauta de saúde LGBTI+ Isso causou revolta em diversos setores do movimento LGBTI+, e inclusive em coletivos independentes do movimento, que insistem em vociferar que a Parada não é LGBTI, mas somente gay e branca.

Pinkwashing (das empresas e de Israel): bancos, empresas famosas de diversos segmentos utilizaram o mês da diversidade e especialmente a Parada do Orgulho LGBTI+ para fazerem “limpeza” em suas imagens, para transparecer a aura de responsabilidade social o bloco de Tel Aviv acabou desfilando no carro do governo tucano, devidamente paramentado, com pessoas de camiseta estampada com brasões israelenses indicando patrocínio, seguindo o modelo de propaganda que não só governos, mas as empresas fazem: utilizar a bandeira LGBT, ou melhor, a “diversidade” (bem abstrata, branca, classe media & ryca, de preferência bonita e modelada na academia) para limpar a imagem. Angela Davis é uma das autoras que mais denunciam tal prática pelo mundo.

Polêmica de Israel: A forma como também se desenrolou a polêmica entre setores sionistas da esquerda e o setorial LGBT do PSOL São Paulo devido à nota de repúdio ao pinkwashing de Israel com o bloco de Tel Aviv, também demonstram as farpas do movimento. Até violências transfóbicas foram desferidas em nome dessa polêmica, e isso é inadmissível. Como revolucionários, não podemos coadunar com o pinkwashing das empresas e nem dos Estados nacionais, sobretudo um que empreende um modelo neocolonizador de ocupação e promove apartheid racial e social com o povo palestino. E com a mesma severidade, devemos combater qualquer fresta de antissemitismo que tal situação pode desencadear, tanto para o povo israelense, quanto para o povo palestino que também é semita. Erva daninha que fez nascer o nazifascismo e que alimentou muito a Inquisição Católica, ele não pode ser tolerado em nossas fileiras.

Segunda onda da Aids: Logo após a Parada surge uma notícia na Folha de SP: 1 a cada 4 homens gays e bissexuais possuem HIV na cidade de São Paulo. No mesmo bojo começam a pipocar aqui e acolá reportagens sensacionalistas de atores pornôs gays que recebem a mais para o sexo desprotegido, ou de clubes de sexo que promovem a transmissão intencional do HIV. Tudo isso sem nenhuma prova, embasamento, nada disso. É o suficiente para se instaurar um novo pânico social: “os gays perderam o medo de morrer”, ou, como disse o Gerson Pereira, diretor substituto do Departamento das IST/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde (DIAHV) “se acham super heróis”.

Ignorando completamente o desmonte do SUS, o fechamento de serviços de prevenção e assistência, o corte de verbas, o congelamento de gastos por vinte anos, a retirada de exames de imunidade para Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA) e de contagem de carga viral (quantidade de HIV no sangue), e várias outras coisas como a proibição da discussão de gênero e sexualidade nas escolas, essas reportagens remontam a um movimento que aconteceu em 2015, de criminalização das pessoas LGBT e das PVHA por via sanitária, e que culminou num projeto de lei apoiado pela bancada da bala, o PL 198/2015, que torna crime HEDIONDO a transmissão intencional do HIV, sem explicar quais os parâmetros para se provar a intencionalidade de tal ato e sem levar em consideração que tal delito já é enquadrado no Código Penal. Por pressão do movimento de aids este PL foi arquivado, mas muito me estranha que o ambiente no qual ele foi apresentado na Câmara volte com mais força ainda, justamente no mês da diversidade de gênero e sexualidade. A título de informação, eu deixo aqui o link de dois artigos que escrevi sobre o assunto: o da agência aids e este que escrevi e colaborei com Gustavo Bonfiglioli e Carué Contreiras.

Gentrificação e LGBTI+ sem moradia: É notório o aumento de LGBTI+ sem moradia nos grandes centros urbanos do país, e especialmente em São Paulo é assustador verificar nas regiões centrais e nos feudos LGBTI+ o aumento da população de rua. Mas também aumentou-se a resistência LGBTI+ dentro dos movimentos de moradia e ocupações urbanas. Por outro lado, há um movimento do Poder Público, e do setor imobiliário em higienizar os centros urbanos para aumentar a especulação imobiliária. E não é diferente no segmento LGBTI+. Em São Paulo, o governo Dória e agora o governo Covas, em conjunto com o governo do Estado, tem empreendido uma gentrificação nos territórios historicamente ocupados por nós, fazendo um movimento de expulsão de trabalhadoras e trabalhadores sexuais, de mulheres trans e travestis e de LGBTI negras e pobres de regiões que começam a abrigar estabelecimentos “gayfriendly” bem caros, “bem frequentados e bem vigiados”. Notícias de encarceramento em massa de moradores de rua, de trabalhadoras sexuais e de pessoas trans começam a ser frequentes na região central da cidade. E coisas análogas começam a se tornar cada vez mais comum no restante do país. Um ícone desse movimento é a reforma que será feita no Largo do Arouche em parceria com o consulado da França e algumas empresas. Dória vociferava que faria do Arouche um boulevard francês gay. Mas sabemos que esse boulevard só deverá ser frequentado por público consumidor. Enquanto isso, nenhuma política de moradia é pensada seriamente pelo Poder Público para as LGBTI+.

Fragmentação do movimento: Na sexta-feira da semana da Parada nós tivemos a primeira marcha das pessoas trans e travestis, com patrocínio de empresas. No sábado tivemos a Caminhada das Mulheres Lésbicas e Bissexuais e no domingo a Parada. Isso não é à toa: há muito tempo existe a reclamação que os setores majoritários e com mais poder dentro do movimento são dominados por homens gays brancos, e as pautas não levam em consideração os recortes de raça, classe e gênero na maioria das vezes. Ano passado após muita disputa conseguiu-se pautar a lei de identidade de gênero, e esse ano o “Vote LGBT”, tendo ficado em segundo lugar a pauta da Saúde LGBT e o HIV/aids. Há nos corredores do movimento quem diga que logo mais teremos um movimento LGBT negro, pois as pautas da negritude são muito secundarizadas (e são mesmo na minha opinião). Mas e aí, como construir agendas em comum e pontes de interação entre todos esses movimentos mais que legítimos num momento em que os de cima, as elites estão muito bem organizadas para nos explorar cada vez mais, usar as opressões para tal empreitada?

A esquerda revolucionária e os movimentos de luta precisam se debruçar sobre tal demanda, de não só aliar os setores da classe trabalhadora e os setores oprimidos da sociedade para se insurgir, mas também pensar em construção de pontes entre os próprios movimentos sociais que estão se fragmentando. Precisamos sim reconhecer os avanços que tivemos, e que foram tão somente fruto das lutas dos de baixo e do movimento LGBT, como o reconhecimento do nome civil das pessoas trans sem necessidade de laudos médicos e processo judicial, a união estável igualitária, e demais demandas alcançadas no último período, porém precisamos radicalizar nossas lutas e pautas e construir pontes para a unidade necessária para enfrentar os setores reacionários que ganham cada vez mais força, e para derrubar esta inequação, este paradoxo todo, construir uma nova sociedade.

Foto: Reprodução / Ebc

Marcado como:
lgbt / opressões