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Insurreição popular e política norte-americana na Nicarágua

Por: Tomas Andino Mencía, de Tegucigalpa

Artigo enviado em 16 de junho de 2018.
Tradução do espanhol: Ronaldo Almeida, São Paulo (SP)

Após o massacre do Dia das Mães (30 de maio), quando uma das maiores manifestações na história da Nicarágua foi atacada a tiros pela polícia e pelos grupos de choque de Daniel Ortega, o conflito subiu a um estágio de maior confrontação.

Antes dessa data, a Aliança Cívica pela Democracia e Justiça estava disposta a aceitar um acordo pelo qual Daniel Ortega e Rosario Murillo renunciariam ao poder através da antecipação das eleições, um mecanismo democrático para eleger um novo governo. Por isso, concordaram em participar da “Mesa de Diálogo” convocada pelo governo e moderada pela Igreja Católica; inclusive, houve um momento em que chegaram a suspender todas as ocupações em nível nacional, aguardando uma proposta de saída pacífica do governante. Apesar disso, a repressão continuou por todo o país.

O massacre de 30 de maio fez o Povo entender que o governante não está disposto a sair por conta própria e que deve ser removido com ações mais eficazes. Desde então as tomadas de rodovias (ou “tranques”) e as ocupações de distritos e centros de estudo com medidas de autodefesa rudimentar, passaram a ser o principal método de luta popular, substituindo as manifestações de rua da primeira etapa. O princípio permanece o mesmo, tornar a desobediência civil ativa e pacífica, mas não mais indefesa.

Além disso, a experiência ensinou às pessoas que a “Mesa de Diálogo” serviu apenas para distrair a atenção das organizações da oposição e dar ao governo tempo para tomar a ofensiva nas ruas. Toda vez que o movimento decola, Daniel convoca a dita Mesa, mas quando esse se acalma, o governo a abandona e intensifica a repressão. Por causa disso, a resposta do povo tem sido contundente.

No momento da redação deste texto, há, na Nicarágua, 131 “tranques” populares permanentes, que seguem sitiados e sob feroz ataque da polícia e dos grupos paramilitares fortemente armados. Jovens e moradores dos bairros populares defendem-se com armas improvisadas (morteiros, estilingues, chimbas) e, em alguns casos, com armas de fogo leves, em uma luta desigual contra um adversário muito melhor equipado e mais experiente no campo militar.

É lamentável que jovens e não tão jovens morram dos dois lados. Ninguém deveria se alegrar com isso, mas o responsável é um governo ditatorial que arma seus seguidores como grupos de choque para massacrar seus irmãos. Sua teimosia torna mais dolorosa sua partida. É assim que os ditadores agem. Um democrata paralisaria as hostilidades para encontrar outra saída que não a do derramamento de sangue entre compatriotas, mas ele não é tal coisa.

A grande maioria das baixas é do lado da oposição. Estão morrendo jovens das favelas, camponeses (as), estudantes, trabalhadores, pequenos empresários, desempregados e, claro, não faltam os lumpens ou párias, cada um com suas motivações e seus característicos comportamentos sociais. É uma constelação de classes sociais unidas em torno do objetivo comum de eliminar a ditadura, o que nem sempre é fácil de suportar, da mesma forma como em Honduras saíram às ruas todos os tipos de agrupamentos sociais contrários à ditadura.

É digno de nota que a propaganda de alguns setores da esquerda pró-Ortega, comprometidos por diferentes razões com o governo, tentam fazer com que esta insurreição popular poli classista apareça como uma revolta de “vândalos e gângsteres” que, significativamente chamam de “praga”, buscando introduzir no imaginário coletivo uma justificativa para o massacre que realizam contra o movimento. Se fosse uma revolta dos “vândalos”, este movimento não poderia ter reunido tantas pessoas durante tanto tempo em todo o país, incluindo cidades inteiras, e que mobilizou todas as universidades; trata-se das manifestações sociais mais populares nos últimos tempos na Nicarágua.

Este é um confronto desigual entre um movimento social com armamento defensivo rudimentar e, de maneira geral, inexperiente na luta, contra um adversário bem equipado e experiente. Mas a determinação do Povo é tal que quanto mais balas e estilhaços recebem, mais “tranques” aderem à luta. Especialmente notável é o caso da heroica cidade de Masaya, onde seus habitantes têm erguido centenas de barricadas na maioria dos bairros, agora imitado por Jinotepe e Leon, onde recentemente aconteceu uma greve municipal bem-sucedida. Também têm se levantado muitos bairros de Manágua, com a ocupação de bairros e ruas por 24 horas, antes de um recuo temporário.

Por esta razão, nas últimas duas semanas, o conflito teve uma escalada da violência, sem que o governo tenha alcançado o objetivo de empurrar de fazer o Povo recuar; mas também cresceu em extensão, com a adesão de muitas localidades aos bloqueios de estradas, com a paralisação, praticamente total, do comércio externo e interno.

A onda insurrecional é tão forte que atores importantes que antes tinha uma postura cúmplice ou temerosa, começaram a ser impulsionados pela pressão social. Este é o caso de centenas de membros da FSLN e ex-funcionários orteguistas, bem como filhos de militares e policiais, que têm vergonha das políticas repressivas de seu governo e agora aderem às ocupações; é o caso de setores de comerciantes de porte médio e produtores rurais, que cruzam seus tratores nas estradas, muitos deles “empresários patrióticos” que anteriormente eram beneficiados pelo regime; os comerciantes do Mercado Oriental de Manágua, o maior centro comercial da América Central, se declararam em desobediência civil. Todo mundo sabe que os dias do regime estão contados e preferem aderir ao movimento para dar um fim à causa da crise.

No entanto, a grande ausente é, ainda, a poderosa classe trabalhadora da Nicarágua. Compreensível, diante do controle político e da repressão contra aqueles que se atrevem a desafiar os patrões orteguistas, um temor justificado devido à cooperação dos sindicatos controlados pelo governo. Mas há sinais de que ela tem se incorporado, difusa e anonimamente, às grandes manifestações da oposição. Um exemplo disso foi a enorme diferença entre o Dia das Mães patrocinado por Daniel Ortega e a demonstração gigantesca feita pela Aliança Cívica. Não existe outra explicação, se não o fato de a FSLN ter perdido milhares de apoiadores, mesmo entre os funcionários públicos. A entrada da classe operária, enquanto classe, neste processo é o que vai definir o destino do regime.

Merece destaque a paralisação convocada pelo Conselho Superior da Empresa Privada e pela Câmara de Comércio Americana da Nicarágua (AMCHAM) no último 14 de junho. Essas associações empresariais têm seguido um caminho diferente daquele trilhado pelo movimento popular; não são favoráveis à queda de Ortega como resultado de uma revolução popular, mas via o processo eleitoral, como querem os americanos. Esta alternativa permite-lhes apoiar seus candidatos liberais tradicionais, como sempre fizeram. Por isto a paralisação era apenas de 24 horas e teve como principal demanda a instalação do enganoso Diálogo do governo, que não leva a nada, a não ser perder tempo.

Não é estranha a posição dos grandes empresários, pois é sabido que a COSEP tem muitos interesses em comum com Ortega e porque a AMCHAM é a patronal das empresas ianques, da qual Laura F. Dogu, embaixadora dos Estados Unidos, é membro honorária. As razões para essa posição serão entendidas mais adiante neste texto. Mas quaisquer que sejam seus motivos, o simples fato desta greve ter sido convocada e ter obtido um êxito total indica que Ortega foi abandonado pela maior parte da burguesia, que era sua principal aliada no passado recente.

Relações idílicas entre o império e o orteguismo
Ao contrário do que muitos companheiros supõem, o governo americano não é o grande organizador nem o dirigente dessa insurreição, como pinta a esquerda pró-orteguista. Essa é uma tese cujo objetivo é enfraquecer a solidariedade com a luta desse povo, e não tem base sólida na realidade.

Vamos começar dizendo que o governo de Ortega, dois meses após o início da crise, não fez nenhuma apresentação pública ou em nenhum tribunal, para fornecer evidências convincentes, como estudos científicos, documentos vazados verificáveis, fotos, vídeos ou depoimentos, para apoiar essa suposição; o que é estranho, dado que a inteligência sandinista, juntamente com a inteligência cubana, é a mais eficaz na América Latina. Ao contrário do que aconteceu na Venezuela, onde a evidência de interferência dos EUA em redes sociais abundou. Para o orteguismo, os processos judiciais são um obstáculo; eles não precisam de provas; as balas de seus rifles decidem quem é culpado e quem é inocente.

O que a informação disponível mostra é que o papel dos Estados Unidos nesta crise é atípico: O Estado norte-americano tem trabalhado para que Ortega seja substituído, a longo prazo em futuras eleições, por uma candidatura liberal confiável e estável, mas eles não apoiam a ideia de que Ortega seja derrubado pelo atual movimento insurrecional. Pode ser surpreendente que um governo imperialista, que promove golpes em várias partes do mundo, não esteja interessado em derrubar violentamente um governo que se declara “de esquerda” e “socialista”, mas neste caso é precisamente porque este governo não é uma coisa nem outra, e, porque, em sua mentalidade capitalista, a relação custo-benefício indica que é preferível manter, tanto quanto possível, a ordem estabelecida, fazendo um ou outro ajuste, do que descartá-la em troca de um projeto popular incerto.

Essa política de apoio sorrateiro a Ortega frente à crise, não é recente, tem sido sua política nos últimos anos. Senão, vejamos a história: doze anos se passaram desde que o FSLN retornou ao poder em 2006, e nesse período não foi incomodado pela menor tentativa de um golpe “suave” ou “duro” por dois governos sucessivos dos Estados Unidos. Isso contrasta com o fato de que, no mesmo período, países como Honduras, Venezuela, Paraguai, Equador, Brasil e Bolívia, só para mencionar a América Latina, sofreram tentativas frustradas ou exitosas de golpe, enquanto na Nicarágua, sendo este o país mais pobre da ALBA, Bush filho e Obama não incomodaram seu governo durante o período 2006-2018.

Outro indicador das excelentes relações entre o governo de Ortega e os gringos, até este ano, é o fato de Ortega permitir a presença americana, à vontade, em muitos campos, alguns dos quais muito sensíveis à segurança nacional deste pequeno país. Por exemplo, a USAID financiou muitos programas sociais estatais; o Exército da Nicarágua fez, durante esta década, manobras militares com as forças do Comando Sul dos Estados Unidos, seu suposto “arqui-inimigo”, e o Departamento de Defesa Norte-americano deu apoio direto aos militares daquele país, com dinheiro e equipamentos. Tudo está documentado e pode ser encontrado nos sites da USAID, do Exército da Nicarágua e das notícias que circulam há anos.

As razões para essa conduta atípica do império para com a Nicarágua, e vice-versa, não são tão difíceis de entender, se analisarmos seu contexto e sua história.

Primeiro, há fortes interesses econômicos envolvidos. O investimento norte-americano é o mais importante, tanto nas indústrias das Zonas Francas, quanto nos investimentos financeiro, hoteleiro, comercial etc. Os investimentos dos EUA geram cerca de 300 mil empregos, representando 10% da população economicamente ativa.

Em segundo lugar, Ortega deu todas as facilidades para a expansão do investimento imperialista, ao custo de uma superexploração de sua classe trabalhadora. Assim, as indústrias maquiladoras, principal setor produtivo do país com forte componente norte-americano, goza de enormes privilégios nas chamadas “Zonas Francas”, onde são explorados mais de 120 mil operárias e operários com o menor salário mínimo da América Central, em condições precárias que nada têm a invejar daquelas que ocorrem em Honduras ou no Haiti. Ao contrário da Venezuela, onde houve nacionalização de algumas indústrias estratégicas e corte de lucros para as transnacionais, na Nicarágua a indústria imperialista é tratada como uma indústria nacional e nas zonas francas é tratada mesmo com maiores privilégios do que isso.

Em terceiro lugar, a Nicarágua é um “bom pagador” da sua onerosa dívida externa, que no 3º trimestre de 2017 totalizava US$ 11,277 milhões (semelhante à de Honduras) a instituições financeiras controladas pelos Estados Unidos, como o Banco Mundial, o BID e o FMI. Não por outro motivo o país é constantemente felicitado e colocado como um “exemplo” de como um bom governo neoliberal deveria se comportar.

Em troca, o governo dos EUA concedeu à Nicarágua, durante vários anos até 2014, um estatuto preferencial chamado Nível de Preferência Tarifária (TPL). Privilégio que permitiu vender roupas feitas com matérias-primas de outros países fora da DR-CAFTA, sem pagar impostos no mercado dos EUA, uma prerrogativa que mesmo países como Honduras não possuíam.

Se, do ponto de vista econômico, os negócios iam muito bem com Ortega, por que o império se preocuparia em criar crises desnecessárias para tirá-lo do poder? A estabilidade da Nicarágua nesse período e sua boa reputação de “crescimento econômico” se devem justamente a esses fatores. Esse boom econômico permitiu que o orteguismo implementasse uma série de programas de bem-estar, o que aliviou bastante as condições de pobreza de parte da população; mas também é verdade que os critérios pelos quais esse apoio foi distribuído sempre foi com a intenção de ligar uma massa clientelista dependente para apoiar seu projeto de reeleição, e sequer atingia todos os necessitados, seguindo o modelo de qualquer regime capitalista dos países subdesenvolvidos. Se tivesse sido o contrário, centenas de milhares de famílias pobres não estariam nas ruas demonstrando e exigindo sua saída do governo.

Em resumo: estamos diante do que tem sido uma exploração capitalista neoliberal e pró-americana bem administrada, nas mãos de um suposto governo de “esquerda”.

O giro moderado da política norte-americana em 2014
No entanto, desde 2014, um fator geopolítico prejudicou essa relação. Ortega e Murillo, que já haviam se tornado bilionários com as negociatas na ALBANISA (Alba de Nicarágua S.A. – empresa privada mista, propriedade da PDVSA venezuelana e da nicaraguense Petronic), iniciaram negociações com outras potências capitalistas, como China e Rússia, para diversificar suas fontes de enriquecimento; com a primeira, lançou a ideia de construir o Canal Interoceânico, um projeto faraônico de US $ 50 bilhões que concede uma franja de terra de 278 km por 116 anos para uma empresa privada chinesa. Com a Rússia, foram feitos negócios com a compra de 50 tanques T-72b1, aviões Mig-29 e equipamentos militares. Estes laços comerciais e militares com essas potências rivais incomodaram Washington, que entendeu que era a hora de fazer alguma coisa para tirá-los do poder por razões geopolíticas.

Para alcançar este objetivo é necessário alguém que possa substituí-los com servidão ao império e com estabilidade.

Daí começam os problemas: por um lado, a oposição liberal é muito fraca na Nicarágua e não tem o poder e a agressividade da venezuelana; é também muito desacreditada perante o Povo, devido ao papel desempenhado por personagens nefastos como os liberais Arnoldo Alemán e Enrique Bolaños, quando foram governo. Por outro lado, o rígido controle de Ortega sobre os processos eleitorais impediu a oposição de participar com garantias democráticas suficientes e sem o risco de fraudes. Portanto, antes de pensar em mudar o governo no curto prazo, o imperialismo se viu perante a necessidade de mudar essas condições desfavoráveis ​​no longo prazo.

Por estas razões, nem Bush filho e nem Obama se propuseram fazer uma mudança brusca, mas começaram a pressionar o governo Ortega a realizar reformas nas leis que permitiriam à oposição burguesa liberal fortalecer-se e participar de forma segura no processo eleitoral. Enquanto o negócio corria bem, o império não tinha pressa e seguiu cultivando boas relações econômicas, políticas e militares com o governo Ortega, não sem antes eliminar o privilégio da TPL em 2014, para fazê-lo sentir o seu inconformismo, desenvolvendo, simultaneamente, alguma influência sobre a liderança juvenil, silenciosamente através de programas da USAID, NED e NDI, agências dos EUA que implementam programas sociais e políticos na Nicarágua.

Mas e quanto a Trump? Quebrou ou deu continuidade a esta política de Bush e Obama?

Qual é o lado de Trump?
Com Trump, a estratégia ianque para a Nicarágua sofreu algumas mudanças. Como é seu estilo, ameaçou cortar o apoio econômico se as reformas eleitorais não fossem feitas, mas, verdade seja dita, não avançou muito neste processo. As únicas medidas importantes tomadas por seu governo, especificamente contra o Estado da Nicarágua, foram duas:

• A “Nicaraguan Investment Conditionality Act of 2017 Act”, vulgarmente conhecida como “Lei Nica”, um instrumento para asfixiar o crédito à Nicarágua, caso não sejam cumpridas suas normas de democracia e direitos humanos, promulgada em sua versão mais recente em abril de 2017 pela extrema direita ianque; no entanto, até hoje, e apesar da crise atual, essa lei ainda não foi definitivamente aprovada pelo Senado dos Estados Unidos, e muito menos aplicada, e esperemos que nunca seja.

• A outra medida foi aplicar o “Global Magnitsky Act” a Roberto Rivas, presidente do Conselho Supremo Eleitoral (CSE) da Nicarágua em 2017 sob a acusação de corrupção, entre outros 11 funcionários de diferentes países, precisamente para pressionar por reformas eleitorais.

A recente revogação do TPS, na realidade não se enquadra nessa categoria, pois é uma medida de aplicação regional, destinada a afetar vários países e não apenas a Nicarágua, foi aplicada também a Honduras e ao Haiti.

Como pode ser visto, toda a confusão de Trump é reduzida a ações muito tímidas, que não se comparam às medidas agressivas que ele toma contra a Venezuela. Mas a coisa não para por aí. Em meio à atual crise política, o governo Trump, em vez de reduzir seu apoio a Ortega, parece aumentá-lo. Alguns indicadores são os seguintes:

1) De 17 a 21 de maio, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos visitou a Nicarágua e encontrou muitas graves violações dos direitos humanos perpetradas pelo governo de Ortega, mas, apesar disso, o seu secretário-geral, Luis Almagro, não promoveu qualquer sanção significativa contra o país amparando-se na Carta Democrática da OEA (como no caso da Venezuela); ele apenas pediu educadamente ao governo da Nicarágua que reiniciasse o processo de reformas que foi solicitado pela Missão de Observação Eleitoral de 2016.

2) Em 24 de maio passado, a Câmara dos Representantes dos EUA pediu ao Departamento de Defesa a lista dos funcionários mais corruptos da América Central, mas essa lista não inclui a Nicarágua, apesar da pressão dos setores mais direitistas do Congresso, e da reformulação do Projeto da Lei Nica, que incluiu o tema da corrupção.

3) Em 2 de junho, o cidadão norte-americano Sixto Henry Viera foi assassinado na cidade de Manágua, em condições confusas, como resultado da violência política. Em outras condições, o incidente teria sido suficiente para Trump iniciar uma campanha para criminalizar o governo de Ortega, mas não houve sequer uma reação da sua embaixada.

4) Em janeiro de 2018, Luis Almagro tinha a posição de deixar Daniel Ortega governar até 2021, enquanto a oposição nicaraguense exigia eleições antecipadas; agora que a oposição exige a retirada imediata e incondicional de Ortega e Murillo, Almagro pede pela antecipação das eleições. Ou seja, Almagro está sempre mais próximo das posições de Ortega-Murillo do que da Aliança Cívica pela Democracia e Justiça. Não é por acaso que as relações entre os primeiros são de harmonia e entre os segundos de conflito.

5) Na recente Assembleia Geral da OEA, em 4 e 5 de junho, a lealdade mútua dos governos dos Estados Unidos e Nicarágua, se manifestaram em três eventos que tiveram que ver para crer: a) o representante da Nicarágua em seu discurso ante o Plenário, não proferiu uma única palavra para denunciar a “conspiração” do governo gringo que supostamente está “por trás” da revolta popular; b) representantes dos EUA e Nicarágua assinaram coincidentemente um projeto de declaração exortando as partes a abdicar da violência (como se houvesse uma disputa empatada) e a aderir ao Diálogo enganoso, sem mencionar as graves violações dos direitos humanos perpetradas pelo regime de Ortega-Murillo; projeto aprovado por aclamação; e, c) faltando à solidariedade com o governo venezuelano, o representante da Nicarágua se absteve de votar quando foi decidido se a Venezuela seria ou não expulsa do órgão.

6) Na Nicarágua existem vários grupos armados que se opõem à Ortega, como os “Rearmados” e similares, que, embora não sejam um adversário militar para o experiente Exército da Nicarágua, poderiam ser utilizados pelo governo dos EUA como justificativa para o desenvolvimento de uma intervenção militar em meio ao atual conflito, como fez na Líbia e na Síria (como advoga a ultradireita ianque). Ao contrário, as comunicações da Embaixada sempre exigem diálogo e reconciliação e não há sinal de que Trump esteja interessado nesse caminho. Espero que isso nunca aconteça.

À vista desses fatos, pode haver alguma dúvida de que o governo dos EUA mantém uma linha geral de apoio ao governo de Ortega e que não está interessado em sua derrubada violenta, aproveitando-se do atual processo insurrecional?

A questão chave é por que o governo Trump age assim? Precisamente o que foi dito anteriormente: porque se cai Ortega de imediato, ele não seria substituído por um político liberal manejável e de sua confiança, mas pela Aliança Cívica pela Democracia e Justiça, liderada por estudantes, agricultores, dirigentes comunitários, dirigentes das “tranques”, no interior da qual múltiplas ideologias e posições políticas convivem, desde setores da direita e da esquerda socialistas, mas muito sensíveis a uma democratização sem interferências externas. Em outras palavras, um governo de combatentes sociais que dificilmente poderia controlar.

Discrepâncias no interior do Império, que salpicam no movimento
O governo dos EUA não é homogêneo. Em seu interior existem diferentes tendências que lutam para impor suas políticas e abordagens. A referida política do Departamento de Estado é atualmente a oficial, mas a ela se opõem, internamente nos Estados Unidos, setores radicais da direita que exigem uma atitude mais agressiva contra Ortega. Já mencionamos o caso do setor mais recalcitrante da direita representado por Ileana Ross-Lehtinen e Marco Rubio, que exigem de Trump a aplicação da Lei Nica, sem que até agora tivessem sido bem-sucedidos. Recordamos que durante o tempo do golpe de Estado em Honduras, o mesmo senador, pública e abertamente, apoiou o então governante de fato, Roberto Micheletti, enquanto Obama criticou o golpe e tomou tímidas medidas contra os usurpadores.

Na atual crise política na Nicarágua, e em contradição com a política geral do governo dos EUA, este setor de ultradireita está mais interessado em abordar os setores da oposição da Nicarágua para influenciá-los com sua agenda ultraconservadora. Um exemplo dessa atitude foi o convite feito pela Fundação “Casa da Liberdade” a 40 líderes estudantis, escolhidos por eles, para visitar vários congressistas e senadores americanos para promover sua causa. Ingenuamente, muitos estudantes aceitaram o convite, mas não foram eles que decidiram a agenda, que foi imposta, como descrito por um proeminente líder do movimento. Eles se encontraram com a senadora Ross-Lehtinen, Ted Cruz e Marco Rubio para pedir apoio à causa deles. Rapidamente, esses políticos ultradireitistas aproveitaram a ocasião para organizar um lobby no Congresso gringo em favor de uma atitude mais agressiva do governo em relação a Ortega, aproveitando o atual movimento. Além disso, eles não economizaram em tirar fotos com esses estudantes, que agora circulam ao redor do mundo. Felizmente, como indica a reportagem de Dick Emmanuelson, a maioria dos senadores e parlamentares não compareceu à visita, alinhada com a política oficial do governo.

A esquerda pro-orteguista aproveitou este incidente para deitar veneno da pior espécie, dizendo que a visita “demonstra” que o movimento oposicionista obedece à agenda da ultradireita ianque, tirando do seu contexto os fatos que a cercaram e descontextualizando também o conjunto da política norte-americana dos últimos doze anos.

Estou de acordo com quem saudavelmente reage questionando a visita, pois merece a mais dura crítica e repúdio. É inaceitável ir ao império solicitar que este aplique os instrumentos intervencionistas que criou para subjugar nossos povos, pois qualquer saída que este imponha será em detrimento do Povo da Nicarágua. Igualmente foi repudiável a visita que fez aos Estados Unidos, em 2016, a então coordenadora do Movimento de Renovação Sandinista (MRS), Ana Vigil, para reunir-se com senadores e congressistas – incluindo a senadora Ross-Lehtinen – com o objetivo de pedir-lhes a intervenção no caso da fraude implementada por Ortega nesse ano.

Mas uma coisa é questionar o fato e outra é generalizar fazendo conclusões abusivas. É como se pretendêssemos generalizar tachando os abusos de Ortega como uma característica de todo sandinista; ou que, para citar o caso de Honduras, que disséssemos o mesmo do Povo Indignado pelo fato de Ariel e outros dirigentes desse movimento terem ido a Washington para realizar visitas similares com senadores ianques. Seria uma errônea indução. Um enfoque objetivo desses casos, distinguiria entre, por um lado, a atitude oportunista de algumas lideranças que pedem apoio ao próprio Diabo, independente das suas boas intenções, e, por outro, a justeza do movimento que empreende o Povo nicaraguense que ocupa as ruas para lutar contra uma ditadura. Quem faz uma crítica saudável sabe fazer a diferença.

O fato inaugurou uma controvérsia no interior do movimento estudantil e popular, pois dita visita causou indignação nos setores de esquerda e progressistas do movimento, que não se sentem representados pelos estudantes que se prestaram ao papel. Felizmente o movimento democrático popular não tem uma só cabeça dirigente, ao contrário, trata-se de uma condução coletiva e isto permitirá que tais condutas sejam corrigidas.

Tampouco significa que tudo é harmonia e colorido no seio do movimento democrático popular. As contradições de classe em seu interior, tarde ou cedo, irão aflorar dando continuidade ao progresso da sociedade nicaraguense.

Opções e cenários possíveis
De tudo o que foi dito, deve-se notar que o império pode mudar sua posição se os eventos se precipitarem e se a derrubada do governo e a instalação de um governo da oposição popular for iminente. Como tem feito em outros países: em 2011 até o último minuto apoiou ao ditador do Egito, Hosni Mubarak, mas quando a sua queda era inevitável seus esforços foram destinados a influenciar o novo governo. Se isso acontecesse, os gringos mudariam sua agenda, e setores como a ultradireita de Ross-Lehtinen e companhia poderiam ser mais ouvidos no governo Trump. Tudo vai depender de qual é o próximo passo do governo de Ortega-Murillo.

Sentindo que o piso é movediço, o governo nicaraguense tem ativado a tática da “Mesa de Diálogo”, prometendo responder na sexta-feira, 15 de junho, o pedido para incluir na agenda a questão da democratização. Contudo, nesta ocasião, a experiência feita com as falsas promessas do regime torna muito difícil o resultado dessa tática. Tanto que mesmo a promessa de avançar nas eleições não poderia acalmar a máquina da revolução iniciada na Nicarágua. As pessoas nas barricadas não querem o avanço das eleições, mas que o governo se vá imediatamente.

Se sua manobra de manobrar o movimento da Mesa falhar, o regime terá três opções: uma é manter o poder a qualquer custo, continuando com suas políticas repressivas atuais através da polícia e dos grupos de choque orteguistas; outra é exigir a intervenção do exército para que execute uma repressão ainda maior que a atual; e a terceira é dispor do poder nos interesses de uma transição ordenada com o apoio do governo dos Estados Unidos.

A primeira opção é insustentável, porque à medida que incrementa a repressão policial e para-policial, a resposta do Povo aumentará, somando outros setores à luta. Essa estratégia a longo prazo estimula e fortalece a mobilização popular, e está fadada ao fracasso.

A segunda opção é pouco viável e pode piorar as coisas, pois poderia levar, ou ao esmagamento total do movimento por um banho de sangue pior do que o executado por Somoza em 1979, ou a uma guerra civil, o que poderia fraturar o exército sandinista, já que não é o mesmo lutar contra um exército de ocupação do que contra seu próprio povo.

Outra variante desta mesma opção, daria uma desculpa para os setores mais radicais do império americano para elevar suas pressões pelo aumento da intervenção militar dos EUA que, se bem-sucedida, poderia aumentar o conflito, como aconteceu na Síria.

A terceira opção é a mais provável e, de fato, há sinais dela. O influente presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado dos EUA, Bob Corker, enviou, em 9 de junho, Caleb McCarry, um especialista em questões de “transição política”. Ortega poderia considerar que embarcando no processo eleitoral, desativaria a mobilização atual e daria uma pausa necessária para reorganizar suas forças, descumprindo, mais tarde, todos os acordos.

A quarta opção está reservada para o Povo, no sentido de que triunfe o movimento insurrecional em toda a sua extensão, com Ortega sendo derrubado pelo Povo mobilizado, um governo da Aliança operária-estudantil-camponesa e popular se estabeleça e se abra para a Nicarágua um período de democratização profunda do Estado, em que prevaleçam os interesses da população explorada e não os do grande negócio e nem os do Estado norte-americano.