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EDITORIAL

Vivas nos queremos! A Argentina mostra o caminho: aborto legal, seguro e gratuito, já!

Editorial 15 de junho de 2018
Mulheres argentinas comemoram vitória. Foto: Jorge Saenz/AP

Mulheres argentinas comemoram vitória. Foto: Jorge Saenz/AP

Amanhecemos nesta quinta (14), com a expectativa da votação sobre a legalização do aborto na Argentina. Em mais de vinte horas de debates, a Câmara dos Deputados foi palco de uma disputa ímpar, voto a voto, que dividiu bancadas políticas e regionais. Do lado de fora, a pressão popular se fez sentir na gelada noite portenha. A primeira batalha foi ganha e a votação segue agora para o Senado, em uma situação que nos parece irreversível.

Os debates realizados no parlamento argentino foram de ótimo nível e, em quase sua totalidade, usaram argumentos de cunho científico – seja sob a ótica do direito, da biologia ou da sociologia. Mas a prevalência do argumento que defendeu a aprovação do projeto se baseia irrevogavelmente na política: o voto não se dividia entre aceitar ou não a legalidade do aborto. O voto se dividia entre aceitar a realidade e optar entre defender a vida das mulheres que praticam, sim, o aborto, tornando-o legal e orientado por um protocolo de práticas em saúde ou se condenariam as mulheres a seguir submetendo-se aos abortos em clínicas clandestinas, aos remédios vendidos irregularmente e às práticas caseiras.

Votar sim permitiria às mulheres, que necessitam ou desejam, poderem abortar em segurança sem impôr nenhum risco ou restrição às mulheres que desejam seguir sua gestação. Votar não imporia às que não podem ou não querem dar sequência à gestação a clandestinidade e a violência psicológica e estatal (criminalizando a prática).

Ganhou a realidade que é o aborto existente, apesar de proibido, e que mostra que na Argentina, como no Brasil, a prática do aborto seguro é uma questão de classe: quem tem dinheiro, paga; quem não tem, corre risco de morte. Na Argentina, diferentemente do Brasil, a legalização do aborto rompe o moralismo e se impõe como uma questão de saúde pública e de direitos reprodutivos das mulheres.

VEJA O MOMENTO DA COMEMORAÇÃO

O debate generalizado na sociedade argentina e os argumentos dos defensores de cada opinião, assim como o mapa geográfico dos votantes, nos mostram referências importantes. A mídia tradicional informou que ao sul do Parlamento, espaço destinado aos apoiadores do “não”, “algumas centenas de participantes, majoritariamente homens, carregavam faixas com dizeres religiosos em defesa da vida” e, ao norte do Parlamento, local reservado aos apoiadores do “sim”, “algumas dezenas de milhares de pessoas, majoritariamente mulheres, acompanhavam a votação com seus lenços verdes”.

Não nos surpreende o amplo apoio masculino ao “não” em uma sociedade onde a responsabilidade naturalizada do cuidado da criança é atribuída às mulheres. O mesmo apego ao feto não se manifesta em apego à criança. Usando dados do Brasil, os índices de abandono parental, considerando apenas a ausência registro civil da criança, demonstra que há cinco milhões de menores sem o reconhecimento e, consequentemente, sem a responsabilização paterna. A gestação e o cuidado parecem desconectadas para alguns.

A divisão geográfica das bancadas também demonstrou uma situação importante: as bancadas do norte do país, regiões mais pobres e de marcada política caudilhesca, votaram majoritariamente pelo “não”, enquanto o sul do país, região mais desenvolvida economicamente, votou majoritariamente pelo “sim”. Este aspecto nos permite observar o profundo recorte de classe que atravessa esse debate e que impõe uma “moralidade” a partir da confortável posição econômica das elites, sustentada na possibilidade real de, mediante uma gravidez indesejada, realizar o aborto em condições salubres em caras clínicas clandestinas ou em países onde o procedimento é legalizado (Uruguai, Colômbia, Portugal).

Outro aspecto relevante é que, apesar de a Argentina ter uma das maiores bancadas parlamentares femininas da América Latina, apenas 49 das 100 deputadas votaram a favor do projeto, o que nos mostra que, mais do que a condição de ser mulher, é necessário uma decisão política de luta pelos direitos das mulheres.

O centro dos argumentos contrários, ainda que bem construídos, se dão com defesa da Convenção Americana do Direitos Humanos, sob uma concepção de que a vida se origina a partir da concepção e, na qual, o direito do feto está acima do direito da mulher que o gesta, pois o feto é um ser novo, de DNA próprio, que o Estado tem o dever de defender. Contudo, é importante ressaltar que esta interpretação de “origem da vida” desconsidera um outro ponto comum da concepção científica hoje: a vida existe quando há atividade completa do sistema nervoso central, o que no feto só acontece com as 12 semanas de vida. Por isso, é necessário coerentizar os argumentos e este foi, visivelmente, o esforço de diversos parlamentares nas mais de 20 horas de debate: que o critério para decretar a vida seja o mesmo utilizado para decretar a morte, cientificamente. Associado ao argumento da “origem da vida” a partir da concepção apresentam-se pressupostos religiosos do direito à vida como um dom divino e não passível de julgamento humano. Realçamos que esta visão em nenhum momento considera os desejos pessoais e as possibilidades materiais das mulheres que gestam os bebês e, tampouco, estendem os deveres de “defesa da vida”, apregoados ao Estado, à criança nascida: educação, alimentação, saúde, moradia digna, emprego, nada disso entra na pauta como parte do “direito à vida”.

Já os argumentos dos que defendem o “sim” ganham lastro da realidade das mulheres para além do direito individual, elencando as necessidades sociais coletivas de atendimento à mãe e ao bebê durante toda a vida, ao mesmo tempo apresentaram duros argumentos e denúncias sobre o papel da Igreja nos abortos de prisioneiras da Ditadura Militar Argentina e no silenciamento, quando não o apoio, às medidas de austeridade do governo Macri. No debate, a pressão das ruas definiu a primeira parte da jornada pela legalização do aborto na Argentina e a próxima batalha será impôr a mesma pressão ao Senado.

O processo argentino, que ainda nos permitirá aprofundar as análises e nos permite já muitos aprendizados, deve ser inspiração e também deve impactar o Brasil sobre o tema. Tramita para julgamento no STF a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442 movida pelo PSOL que visa descriminalizar as práticas abortivas. Em agosto haverá a primeira audiência pública chama da pelo STF (ministra Rosa Weber) como espaço de construção da argumentação para o voto do Tribunal. Será um primeiro espaço para aferirmos o grau do debate político sobre o tema no país.

Porém, a luta no Brasil também se dá contra o conservadorismo que se amplia na opinião pública e se materializa em movimentos como “Escola Sem Partido” que tenta bloquear qualquer direito à educação sexual e de gênero nas escolas. Precisamos também enfrentar o lobby da Bancada da Bíblia, que durante os governos petistas impôs sua força e usou os debates dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres em barganhas políticas, às quais os governos cederam como a não implementação do protocolo de abortos previstos na legislação sobre o SUS e o impedimento do kit de combate à LGBTfobia. É preciso politizar o debate e ganhar campo na sociedade. A realidade das mulheres brasileiras é a mesma das mulheres argentinas.

FOTO: Mulheres argentinas comemoram resultado, em frente ao Congresso. Jorge Saenz/AP

 

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