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BRASIL

Fim da greve dos caminhoneiros: ameaça superada ou oportunidade perdida?

Gilberto Calil*, de Marechal Rondon (PR)
Foto: Tomaz Silva/Ag Brasil

Foto: Tomaz Silva/Ag Brasil

Ao longo dos onze dias que perdurou a greve dos caminhoneiros, a esquerda foi atravessada pela polêmica entre os que viam na greve uma reação concreta de trabalhadores contra as políticas neoliberais e os que a tratavam como uma ameaça à democracia, sublinhando, inicialmente, um suposto caráter de locaute, e posteriormente identificando a greve com as propostas de intervenção militar que buscaram se projetar utilizando-se dos caminhoneiros.

Encerrada a greve, é necessário um balanço crítico, e entendemos que as hesitações da esquerda implicaram na perda de uma oportunidade de avançar a luta contra o desgoverno Temer e suas políticas neoliberais. O medo de uma suposta intervenção militar – que não estava na ordem do dia e não foi cogitada seriamente nem pela alta cúpula das Forças Armadas nem pela grande burguesia brasileira – levou muitos a se omitirem e eventualmente até apoiarem a “intervenção militar” realmente existente (que se fez contra os piquetes). A única forma de intervenção militar que está na ordem do dia é contra as greves e mobilizações dos trabalhadores, e esta tem como único parâmetro a defesa dos interesses do capital, e nisto não faz distinção entre greves organizadas por sindicatos combativos e greves com características peculiares como a dos caminhoneiros.

Os militares no governo Temer
Desde o final da ditadura, é no governo Temer que os militares concentram maiores poderes, em situação que se aproxima de uma efetiva tutela militar. Esta situação estava colocada já antes da greve e foi reforçada em seu decurso. Assim, para a alta cúpula das Forças Armadas não haveria porque efetivar um golpe. De um lado, porque já detém inúmeras posições de poder no governo Temer e têm sua doutrina de Garantia de Lei e Ordem (GLO) colocada em prática (sem falar na eterna garantia de impunidade). De outro, porque sabem que impondo um golpe de Estado se tornariam vitrine em uma situação extremamente instável, enfrentando crescente descontentamento e isolamento externo, abrindo, portanto, a possibilidade de uma situação que sairia do controle em pouco tempo.

Não se trata de acreditar que a oficialidade militar seja “democrática” ou “legalista”, mas de analisar concretamente sua posição no interior do governo Temer. O “homem-forte” do governo Temer é o general Sérgio Etchegoyen, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que durante toda a greve deu entrevistas como detentor do poder de fato, falando não apenas das estratégias repressivas mas também da política geral do governo em assuntos como implicações orçamentárias e política da Petrobrás. Etchegoyen não é um militar “democrático”, é um defensor da ditadura, oriundo de uma família diretamente envolvida com a repressão e vinculada aos setores mais repressivo do regime instaurado em 1964 (1). E, não obstante, combateu as propostas de “intervenção militar”, qualificando-as como “assunto do século passado”. (2) Isto porque, para estes militares, o “assunto deste século” é a tutela militar articulada à repressão exercida na forma da doutrina de Garantia de Lei e Ordem. A GLO é política oficial do Estado brasileiro desde 2014, (3) instituída por Dilma Rousseff e aprofundada por Michel Temer. A implacável repressão à greve dos petroleiros – com instituição de multa milionária – está aí para mostrar como a institucionalidade vigente é plenamente satisfatória para reprimir as lutas dos trabalhadores. Paradoxalmente, foi o caráter fragmentado da luta dos caminhoneiros e sua recusa a aceitar a rendição proposta pelas suas entidades, que tornou mais difícil a repressão, que não conseguiu encontrar sindicatos a serem multados ou lideranças a serem ameaçadas ou presas.

A ilusão sobre a possibilidade de um golpe militar desempenhou, no entanto, funções concretas e muito efetivas, a começar pela fragilização da potência da greve, afastando grande parte dos ativistas sociais. A atuação de entidades empresariais locais e regionais (sobretudo agrárias) em sua campanha pela “intervenção militar” cumpriu claramente a função de impor uma barreira entre os militantes de esquerda e a greve. A supervalorização do peso da proposta de intervenção e a difusão de boatos e áudios falsos por meio das redes sociais atuaram nesse sentido. (4)

A expressiva repercussão da campanha pela “intervenção militar” – que não pode ser confundida com a greve dos caminhoneiros – revela igualmente que a extrema-direita tem uma organização efetiva e capilarizada, com condições e capacidade para agir de forma rápida e efetiva. Em nosso entendimento, portanto, a avaliação de que não estava colocado na ordem do dia um golpe de Estado não implica, de forma alguma, na perspectiva de minimizar a ascensão conservadora, e, de forma mais específica, o avanço de uma organização propriamente fascista. (5) O problema está em pretender confrontar este avanço reforçando um regime cuja atuação cria as melhores condições para o avanço destes mesmos fascistas.

Caminhoneiros em luta
O conservadorismo dos caminhoneiros, a ausência de uma organização sindical e a suposta defesa do “estado-mínimo” implícita na defesa da redução do imposto sobre o diesel foram os argumentos mais utilizados nos primeiros dias da greve por parte daqueles que, desde uma perspectiva de esquerda recusavam-se a apoiar a greve. (6) Igualmente, muitos sustentavam que se tratava de locaute, inclusive recusando a considerar caminhoneiros autônomos como trabalhadores, a despeito das duras condições de trabalho a que estão submetidos em função de sua inserção subordinada e precarizada na dinâmica capitalista. Com os acordos de 24/5 e 27/5, celebrados entre o governo e as transportadoras, e referendados por entidades sem nenhuma representatividade junto aos caminhoneiros, as críticas passaram a responsabilizar os caminhoneiros pelos cortes na saúde e educação e pelo crescimento das manifestações por intervenção militar. A nosso ver, estas críticas esperam, de forma idealista, uma consciência de classes prévia à luta, e com isto deixam de estar presentes no processo concreto de luta, renunciando à possibilidade de uma politização dos trabalhadores. É na luta de classes que a consciência dos trabalhadores se desenvolve.

Objetivamente a greve dos caminhoneiros confrontou a política de preços da Petrobrás, e ainda que a maior parte deles não saiba quem é Pedro Parente nem como se produz a formação de preços dos derivados, a grande conquista da greve – a derrubada de Parente da Presidência da Petrobrás – é uma conquista diretamente relacionada à greve. Para uma esquerda (sobretudo os setores lulistas) que prefere se manifestar através de petições online, cartas à Polícia Federal ou mudando o nome no perfil do Facebook, a ação concreta dos caminhoneiros pareceu confusa, perigosa, radical, contraditória… Não se percebeu, com isto, que o enorme apoio popular à greve expressa uma gigantesca insatisfação com a situação atual, que, se não for direcionada pela esquerda antissistêmica para ações concretas, será instrumentalizada pela direita fascista. Muito mais do que as confusões produzidas a partir da consigna de “intervenção militar”, era o “Fora Temer” que unificava caminhoneiros e seus apoiadores. O apoio que os caminhoneiros receberam não se restringiu aos grupos da direita organizada, mas se deu sobretudo de forma individual por gente que identificava sua insatisfação com a manifestação dos caminhoneiros. Quem frequentou os piquetes viu o fluxo incessante de doações individuais.(7)

Mas os caminhoneiros realmente abraçaram a proposta de “intervenção militar”? Uma grande parcela realmente vislumbrou nela uma alternativa. Que a ação dos militares seja vista como forma de resolução dos problemas dos trabalhadores é sempre dramático e expressa limites na consciência de classe. No entanto, para além disto, há mais contradições do que se percebe à primeira vista. Sabemos que uma “intervenção militar” equivale a um golpe de Estado, e muito provavelmente à instituição de uma ditadura. Mas uma grande parcela dos aderentes acredita, ingenuamente, que seria possível uma intervenção dos militares para afastar Temer e conduzir eleições livres e diretas. Existem os que defendem abertamente a ditadura, mas isto está longe de ser majoritário entre os caminhoneiros. Outro ponto fundamental é que o discurso do Estado mínimo NÃO está presente: é impossível entender a insatisfação dos caminhoneiros e seus apoiadores sem identificar que a crítica aos impostos se articula à uma percepção de que faltam investimentos na educação e na saúde. O repúdio unânime dos caminhoneiros à proposta de redução de impostos custeada pela redução de investimentos é sua mais expressiva resposta.

Luta que segue
A desarticulação da greve dos caminhoneiros através da imposição de multas estratosféricas por obstrução das estrada(8), bem como da repressão aos piquetes, aliada à desmobilização da greve dos petroleiros através de multas milionárias aos sindicatos e aos dirigentes sindicais parecia representar um efêmero alívio ao combalido governo Temer, ainda que novas lutas devam ser esperadas já no curto prazo. A crise não está superada, o descontentamento é enorme e neste contexto a ação organizada dos trabalhadores pode fazer toda a diferença. (9)

A queda de Pedro Parente, no entanto, acirra a crise e reafirma a urgência da necessidade de atuação da esquerda socialista na conjuntura. É necessário gritar “Fora Temer!” e impor a derrubada do governo que é hoje a expressão concreta do acordo entre as diversas frações da burguesia brasileira para atacar os direitos sociais. A queda de Temer, neste contexto, representaria uma vitória das mobilizações populares, uma pedagógica comprovação de que as mobilizações não são infrutíferas, e desorganizaria, ao menos por algum tempo, os arranjos que unificam a burguesia em seus ataques.

*Gilberto Calil é historiador e professor da Unioeste, no campus de Marechal Rondon (PR)

 

NOTAS
1 – Não negamos que tenham existido em determinadas conjunturas da greve doações por parte de grandes empresas e interesses escusos. O que negamos é a perspectiva que explica a greve a partir dos apoios empresariais.
2 – Estas multas foram instituídas no governo Dilma Rousseff, como parte da estratégia repressiva coordenada pelo então ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso.
3 – https://www.apostagem.com.br/2018/02/21/sergio-etchegoyen-o-mentor-da-intervencao-o-dna-da-repressao-voce-com-quem-esta-falando/
4 – https://oglobo.globo.com/brasil/intervencao-militar-assunto-do-seculo-passado-diz-ministro-etchegoyen-general-da-reserva-22728784
5 – https://www.defesa.gov.br/index.php/exercicios-e-operacoes/garantia-da-lei-e-da-ordem
6 – https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/30/politica/1527703161_738090.html?id_externo_rsoc=FB_CC
7 – http://blogjunho.com.br/como-combater-o-fascismo/
8 – Discutimos isto em http://esquerdaonline.com.br/2018/05/27/a-esquerda-e-a-boleia-breves-consideracoes-sobre-a-greve-dos-caminhoneiros/
9 – http://esquerdaonline.com.br/2018/05/31/hora-de-sangue-frio-e-cabeca-erguida/