Desde o início da greve dos caminhoneiros na última segunda-feira, inúmeras críticas e acirradas discussões têm sido travadas entre os militantes de esquerda, ainda que a maior parte das organizações políticas ligadas à classe trabalhadora tenha divulgado seu apoio formal à greve (nem sempre com implicações práticas). De um lado, este debate se explica pelas dificuldades de compreensão decorrentes da heterogeneidade da categoria dos caminhoneiros, da especificidade desta greve, da diversidade das pautas e do apoio de grupos políticos, contraditórios entre si, ao movimento paredista. De outro, é necessário reconhecer que muita desinformação e preconceito foram disseminados nestes dias. Por isto, é importante começar reconstituindo a trajetória deste movimento.
Uma greve, duas conjunturas
As primeiras ações que desencadearam a greve foram impulsionadas pela Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA), que em 15 de maio protocolou ofício com duas reivindicações centrais: congelamento do preço do diesel e fim da cobrança dos pedágios sobre eixos suspensos. A partir do silêncio/negativa do governo, a greve é deflagrada no dia 21 de maio, acrescentando-se à pauta a defesa do novo marco regulatório dos transportes. Outras entidades passaram a ter atuação destacada, em especial a Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), ao mesmo tempo em que entidades empresariais são contemplados e apoiam a defesa da redução dos custos do diesel. Por outro lado, há reivindicações trabalhistas de grande importância que contrariam os interesses dos patrões, em especial a política de preços mínimos dos fretes e o novo marco regulatório. O Projeto de Lei 528/2015, que cria a política de preços mínimos para os fretes, repousa há meses na gaveta do senador Romero Jucá do Senado Federal, indicado como seu relator (2). Já a discussão do novo marco regulatório envolve a possibilidade de avanços importantes aos caminhoneiros empregados, como o tempo mínimo de repouso de 11 horas diárias e o pagamento das horas de espera pela carga (que atualmente são absurdamente consideradas como “descanso”). (3)
Ao longo dos três primeiros dias o peso dos interesses empresariais e da cobertura midiática, aliados à ação errática de boa parte da esquerda, bem como a forma como o desgoverno Temer conduziu as negociações, tornaram possível que tenha se imposto a centralidade da pauta da redução do custo do diesel, e sob um formato bastante conservador, que é o da redução de impostos sem mudança da política de preços da Petrobrás. Claramente as entidades dos transportadores ocuparam espaços e buscaram valer seus interesses. Isto não significa que a greve tenha sido, na verdade, um locaute, como sugeriram muitos (e que é o tom predominante na narrativa midiática e governamental), mas que estas entidades conseguiram se fazer ouvir com força. Ao mesmo tempo, grupos reacionários atuavam no interior do movimento e ganhavam força, disseminando a defesa de “intervenção militar”. Enquanto isto, à esquerda, muitos discutiam se era greve ou locaute, se os caminhoneiros autônomos são trabalhadores ou não e se seu conservadorismo impedia que lhes prestassem apoio. Ou seja, condições que possibilitaram que ganhasse força uma leitura conservadora da pauta.
A manobra do governo Temer na tarde desta quarta-feira rearranjou inteiramente o tabuleiro. Em reunião com setores empresariais e a CNTA sem garantias concretas, Temer, apoiado em “estudos” e promessas vazias, armou o circo de um falso acordo que visava apenas a legitimar a repressão militar aos grevistas. A imensa maioria dos caminhoneiros, assim como a Abcam (que abandonou a reunião antes de seu encerramento), repudiou o pretenso acordo e reafirmou a continuidade da greve. Ato contínuo, Temer determinou a repressão militar (deixando inicialmente dúbio se envolveria o exército ou apenas forças policiais e policiais rodoviárias), abrindo uma nova conjuntura. Os meios de comunicação passaram a condenar mais ostensivamente a greve, tratada como obra de “minorias radicais”, “chantagistas” e “produtoras do caos”, em estreita coordenação com o vocabulário governamental. A partir daqui não pode restar dúvidas de que se trata de uma greve, e não de um locaute, demandando das forças de esquerda uma ação concreta e efetiva de apoio.
Uma greve polêmica no interior da esquerda
A fragilidade da intervenção da esquerda, devida sobretudo à demora na tomada de uma posição, cobra elevado preço, tendo facilitado a propagação de ideias reacionárias e golpistas no interior do movimento. Algumas preocupações expressas neste debate são legítimas, como as que remetem à dificuldade em compreender as distintas dinâmicas que constituem a categoria dos caminhoneiros, o risco de captura do movimento pelos interesses empresariais e a posição específica de cada uma das diferentes entidades envolvidas. A discussão sobre se tratava-se de uma greve ou um locaute se insere neste contexto.
Muitas críticas difundidas nas redes sociais, no entanto, são inteiramente descabidas e contraproducentes, a começar pela recorrente afirmação de que “os caminhoneiros apoiaram o Golpe, agora tem que se ferrar”. Ainda que fosse verdadeira, seria uma afirmação politicamente irresponsável e mesmo suicida, considerando que no momento de sua execução o Golpe contou com apoio de em torno de 60% dos brasileiros. Mas esta afirmação baseia-se em uma falácia. A greve dos caminhoneiros contra Dilma Rousseff, em novembro de 2015, foi organizada por um movimento informal, denominado Comando Nacional dos Transportes (CNT), e não teve a participação das entidades nacionais dos caminhoneiros como a CNTA, a Abracam ou a União Nacional dos Caminhoneiros (UNC) (4) e as lideranças daquele movimento não estão à frente da atual greve. Ainda mais forçada e anacrônica é a comparação entre a atual greve com a greve dos caminhoneiros do Chile de 1972, que só pode fazer algum sentido na lógica delirante de quem é capaz de ver em Michel Temer um líder socialista como Salvador Allende. Curiosamente, tais críticas esquecem de discutir a grande greve dos caminhoneiros de 1999, reprimida pelas Forças Armadas a mando de FHC, e que em certa medida marca o início da crise de seu governo.
Outra crítica recorrente remetia à recusa em qualificar os caminhoneiros autônomos como trabalhadores, já que são proprietários de seus “meios de produção”. Em nosso entendimento, é uma análise formalista insustentável, que desconhece as duríssimas condições de trabalho e de saúde a que são submetidos estes trabalhadores e inclusive a forma particular como são submetidos à dinâmica capitalista. A considerar tal argumento, seríamos obrigados a considerar todos os trabalhadores pejotizados como pequeno-burgueses, o que teria consequências teóricas e políticas desastrosas.
Finalmente, o debate sobre a redução de impostos é provavelmente o principal cerne da polêmica. Para muitos críticos a centralidade na defesa da redução de impostos sobre o diesel (que entendemos que só foi possível pela fragilidade da intervenção da esquerda, aliada à ação de grupos empresariais) confirmaria o caráter regressivo da greve. É verdade que a redução ou eliminação da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) tem dramáticos efeitos sobre a Saúde, Previdência e Assistência Social e que, portanto, é a pior dentre as saídas possíveis. Mas apenas ser contra a demanda de redução dos impostos sem denunciar as injustiças da estrutura tributária brasileira é igualmente uma péssima saída. A estrutura tributária brasileira é absurdamente regressiva. A eliminação dos impostos sobre o diesel diminuiria os custos dos alimentos, mas é necessário dizer claramente que isto só seria possível compensando as perdas em arrecadação através da taxação de grandes fortunas e das heranças milionárias, da grande propriedade rural e dos ganhos do capital financeiro, etc. Os caminhoneiros estão corretos quando dizem que não faz sentido cobrar ICMS sobre o diesel, com todos efeitos cascata sobre os preços dos alimentos que isto produz. O problema é que apenas eliminar impostos sem cobrar a conta dos grandes capitais nem questionar a dívida pública simplesmente agrava o desmonte das políticas públicas. Então, sem deixar de enfatizar sempre que a questão central é a política de preços da Petrobrás sob a gestão de Pedro Parente, é necessário parar de dizer que a redução de impostos sobre o diesel implica em si mesmo na redução do Estado e no agravamento de políticas neoliberais. Este debate pode, ao contrário, ensejar a necessária e inadiável discussão sobre a estrutura tributária brasileira.
Por uma Petrobrás verdadeiramente pública
A articulação entre a questão tributária e a política da Petrobrás foi captada de forma irretocável no pronunciamento de Guilherme Boulos, quando ao mesmo tempo atacou “a política tributária do Estado Brasileiro que cobra mais imposto do consumo e da produção e menos imposto da renda e da propriedade” e defendeu que “empresa pública tem que servir ao povo brasileiro, e não para meia dúzia de acionistas lá fora. Este tem que ser o objetivo da Petrobrás”.(5) Este tem que ser o eixo da ação da esquerda junto ao movimento dos caminhoneiros para que seja capaz de denunciar os efeitos das políticas neoliberais e, ao mesmo tempo, apontar saídas concretas.
É necessário dizer claramente que a redução ou eliminação de impostos não é suficiente para garantir a redução do preço do diesel! É necessário que a Petrobrás volte a controlar os preços dos combustíveis (o que inclui também, é fundamental salientar, o gás de cozinha!). Desde outubro de 2016, Pedro Parente passou a administrar a Petrobrás como uma empresa privada e substituiu o controle dos preços por uma política que tem como único objetivo garantir os maiores lucros possíveis aos acionistas internacionais. Sem controle de preços, qualquer redução de impostos pode ser compensada com novos aumentos em poucas semanas. A Petrobrás é patrimônio do povo brasileiro e existe para garantir acesso aos combustíveis por preços justos, e isto é possível, pois o Brasil é autossuficiente em petróleo.
Uma mudança de política da Petrobrás é inteiramente sustentável e a fortalece como empresa pública. Como indica a Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET), “a mudança na política de preços, com a redução dos preços no mercado interno, tem o potencial de melhorar o desempenho corporativo, ou de ser neutra, caso a redução dos preços nas refinarias seja significativa, na medida em que a Petrobrás pode recuperar o mercado entregue aos concorrentes por meio da atual política de preços”. (6)Apenas desta forma é possível reafirmar que “a Petrobrás é uma empresa estatal e existe para contribuir com o desenvolvimento do país e para abastecer nosso mercado aos menores custos possíveis”.(7)
Foi a política neoliberal de Pedro Parente de livre flutuação dos preços que levou a uma absurda elevação do valor dos combustíveis superior a 50% em um ano, e não há alternativa sem a reversão desta política! A esquerda precisa apoiar ativamente a greve e se inserir nos seus espaços de discussão defendendo o controle de preços, e ao mesmo tempo tensionar as posições mais reacionárias (cuja existência é inegável) também por fora, através de manifestações de apoio conduzidas por movimentos sociais e que expressem uma compreensão ampliada do problema, que permita superar a armadilha da centralidade da crítica aos impostos.
*Gilberto Calil é historiador e professor da Unioeste, no campus de Marechal Rondon (PR)
Foto: Faixa a favor da intervenção militar, em piquete na Reduc, em Duque de Caxias (RJ)
NOTAS
1 – Parte das informações deste histórico foram retiradas da postagem de Larissa Riberti, disponível nesta publicação no Facebook
2 – http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=955516
3 – http://www.penaestrada.com.br/o-que-pode-mudar-na-vida-do-caminhoneiro-com-o-marco-regulatorio/
4 – https://www.huffpostbrasil.com/2018/05/24/de-2015-a-2018-o-que-mudou-entre-as-duas-greves-dos-caminhoneiros_a_23442914/
5 – https://www.facebook.com/guilhermeboulos.oficial/videos/1040504386100112/?hc_ref=ARSjrqTF6F-l7fVex8YazioSxA0MSN8K6WMWdoGqCN8BMTooalGD8YeaZkYmHOA_sE8
6 – https://jornalggn.com.br/noticia/nota-da-aepet-sobre-a-politica-de-precos-da-petrobras
7 – Idem
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