Advogada do Sindipetro AL/SE e FNP, Raquel Souza, explica ação de inconstitucionalidade movida pela campanha “O Petróleo é do Brasil”
Preços dos combustíveis não param de subir nas bombas. Caminhoneiros cruzam os braços. O fantasma do desabastecimento ronda as prateleiras. Enquanto isso, o governo Temer avança em sua política de desinvestimento da Petrobrás e anuncia a venda de quatro refinarias de petróleo. O Esquerda Online conversou com Raquel Sousa, advogada do Sindipetro AL/SE e da Federação Nacional dos Petroleiros (FNP) sobre a política do governo Temer para a Petrobrás e seus impactos para a sociedade brasileira.
A advogada também subscreve a petição de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) que pretende anular no Supremo Tribunal Federal (STF) decretos presidenciais que legalizam a venda de refinarias, empresas subsidiárias da Petrobrás e de campos do Pré-Sal sem licitação. A ação foi movida pelo PT em nome do movimento em torno da campanha “O Petróleo é do Brasil”. Raquel nos revela verdadeiros escândalos que configuram uma sistemática de sabotagem e desmonte do patrimônio nacional em favor de empresas estrangeiras. Uma delas inclusive condenada por corrupção em diversos países.
E.O: O Partido dos Trabalhadores ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra o decreto 9355/2018 de Michel Temer que estabelece normas para a venda de ativos na exploração de petróleo. Quais os principais problemas desse decreto?
Raquel Sousa: Em tese, não cabe uma ação desse tipo contra um decreto, já que a Adin se destina apenas a leis. Mas esse decreto é, de fato, uma lei em tudo, menos no nome. Temer, a pretexto de regulamentar alguns artigos da Lei das Estatais e do Marco Legal do Petróleo, acabou criando uma nova lei de licitações. Ele rasgou a Lei 13.303/2016, a Lei das Estatais, dos seus artigos 28 a 84, que trata das licitações. Existe, portanto, uma violação ao princípio da separação dos poderes. O presidente da República não tem poder para fazer leis. Ele pode emitir decretos, mas esses decretos não criam normas jurídicas, apenas regulamentam a execução de uma lei pré-existente.
Temer já tinha editado um decreto nesse sentido, o 9.188/2017, que já tratava do desinvestimento da Petrobrás. Agora publicou um novo decreto, o 9.355/2018, que é idêntico ao anterior. São irmãos gêmeos. Têm 85% de conteúdo em comum. São dois decretos que visam a legalização do desinvestimento da Petrobras. Só que esse novo decreto é ainda pior porque cria hipóteses de inexigibilidade de licitação que são absurdas. Isso fica explícito no art. 1º § 7º, que permite que a Petrobrás, quando operadora de contratos, possa comprar sem licitação navios, sondas etc. O decreto também tira o poder de fiscalização do TCU. Enfim, é um escândalo geral.
Esses dois decretos visam legalizar um processo escandaloso de entrega do patrimônio nacional, já que o governo vinha enfrentando uma oposição na Justiça e sofrendo derrotas. Hoje a Adin tramita em regime de urgência no STF a pedido do relator, o ministro Marco Aurélio.
E.O: Como foi articulada essa Ação Direta de Inconstitucionalidade?
Raquel Sousa: O artigo 103 da Constituição Federal define quem são os legitimados para entrar com Ação Direta de Inconstitucionalidade. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal tem o poder para invalidar uma lei. Apenas um número restrito de atores pode propor esse tipo de ação, dentre eles, os partidos políticos com representação no Congresso Nacional.
Há hoje duas frentes parlamentares mistas atuando em defesa da Petrobrás. Essas duas frentes se uniram numa campanha chamada “O Petróleo é do Brasil”. Esse movimento reúne sindicatos de diversas categorias, centrais sindicais, parlamentares, movimentos ligados à Igreja Católica, partidos de oposição, como PSOL, PCB, PCdoB, PT, dentre outros. Essas duas frentes têm se reunido regularmente para discutir medidas para barrar os leilões do petróleo e vendas de ativos da Petrobrás. E na última reunião, que foi um dia depois da publicação do decreto 9.355/2018 e do anúncio da venda de quatro refinarias que juntas representam 36% da capacidade nacional de refino de petróleo, foram tomadas algumas ações. Uma delas foi a Adin. Eu participava da reunião como advogada da Federação Nacional dos Petroleiros (FNP) e do Sindipetro AL/SE e fui designada, junto com outros colegas advogados, a cumprir essa tarefa.
Uma ação judicial desse tipo deve combater todo sistema legal que versa sobre a mesma matéria. Portanto, uma Adin para ter efeito deveria questionar os dois decretos. O PT já tinha entrado com uma Adin contra o decreto 9.188/2017. Portanto, era mais conveniente entrar com uma ação contra o decreto 9.355/2018 pelo mesmo partido. Então essa Adin foi instrumentalizada pelo PT, mas é uma ação do grupo que compõe a campanha “O Petróleo é do Brasil”.
E.O.: O governo vinha sofrendo derrotas na Justiça por causa de ações populares movidas pelo Sindipetro AL/SE e pela FNP. Fale um pouco sobre essas ações.
Raquel Sousa: Desde outubro de 2016, nós iniciamos o combate ao Plano de Desinvestimento da Petrobrás. Esse plano foi parido com a justificativa de vender tudo que não fosse essencial para capitalizar a Petrobrás. Assim a empresa teria condições de fazer o que ela faz de melhor, que é extrair petróleo e gás. Daí vem a ação de vender Suape e sair do setor petroquímico, vender as Fafens e sair do ramo de fertilizantes, vender a BR Distribuidora, Liquigás, campos terrestres e de águas rasas que precisam de investimento e tudo mais para poder se dedicar ao Pré-Sal. Essa justificativa se mostrou falsa desde o início. O primeiro ativo a ser vendido foi o campo de Carcará, na Bacia de Santos, que é um dos maiores campos do Pré-Sal. Outros campos do Pré-Sal e outras empresas subsidiárias foram negociadas.
Todas essas vendas foram feitas sem licitação, através de uma “sistemática de desinvestimento”. E como funcionava isso? A direção da Petrobrás enviava convites para alguns ‘felizardos’, escolhidos a dedo, para que esses apresentassem proposta. Uma sistemática que é totalmente ilegal. Inclusive foi declarada ilegal pelo próprio Tribunal de Contas da União. O TCU concluiu que essa sistemática trazia sérios riscos ao Plano de Desinvestimento porque restringia a participação dos interessados na compra e deixava dúvidas se os negócios realizados eram ou não vantajosos para a Petrobrás. Foi essa sistemática que nós, através do Sindipetro AL/SE e da FNP, fomos combater no Judiciário. Nós entramos com 11 ações populares entre final de 2016 e início de 2017 na Justiça Federal de Sergipe, argumentando que as vendas foram feitas sem licitação e a preços muito baixos.
Das 11 ações, apenas em uma não conseguimos liminar de suspensão de venda. Algumas dessas liminares foram depois cassadas. Mas, concretamente, Temer não conseguiu vender a BR Distibuidora, nem os campos de Baúna, em Santos, e Tartaruga Verde, na Bacia de Campos. Não conseguiu vender campos terrestres e de águas rasas no Nordeste. A meta da dupla Temer e Parente era vender tudo até 2017. O governo só conseguiu consolidar até agora as vendas de Carcará, da Nova Transportadora do Sudeste (NTS) e da Petroquimica Suape.
E.O: Quais foram as principais irregularidades encontradas nos processos de venda?
Raquel Sousa: Primeiro, o claro caráter desvantajoso para a Petrobrás e para o patrimônio nacional. O campo de Carcará, por exemplo, vendido por US$2,5 bilhões a uma empresa norueguesa, a Statoil tem capacidade estimada de 700 barris de petróleo. Ou seja, a preço de banana. A Statoil pagou só a metade desse valor à vista. O restante só vem quando o campo começar a produzir. Também foram vendidos 40% do Campo de Lapa e 22,5% do conjunto de campos da concessão Iara. Só Iara tem capacidade de produção estimada de 5 bilhões de barris.
Também foi vendida a Nova Transportadora do Sudeste (NTS), que é uma empresa subsidiária que é dona de toda a malha de dutos que vai trazer ao continente toda a produção dos campos do Pré-Sal. Ela foi vendida para um fundo de investimento canadense, Brookfield, e para Itausa, uma holding que controla o banco Itaú. Em seguida, esses mesmos dutos foram alugados pela própria Petrobrás por vintes anos com um contrato com cláusula do tipo “ship or pay”, pela qual a Petrobrás paga mesmo que não use a malha da NTS. Só pra ter uma noção do escândalo dessa operação, em dezoito meses a Petrobrás vai pagar de aluguéis tudo o que recebeu pela venda da NTS. Isso sem falar que a NTS foi vendida pelo valor equivalente a cinco anos de seus lucros.
Agora, pela nova sistemática de desinvestimento normatizada pelo TCU, também está à venda a Transportadora Associada de Gás (TAG) que é dona da maior e mais nova malha de dutos do país pelo valor de quatro anos de seu lucro líquido, no mesmo esquema que foi vendida a NTS, além de quatro refinarias junto com seus terminais e oleodutos. Cabe aqui outra observação, ora, o TCU pode fazer um monte de coisa, mas não pode editar norma, muitos menos definir uma nova sistemática de desinvestimento.
O Governo gastou R$ 9 bilhões para construir a Petroquímica Suape e ela foi vendida por 1,2 bilhão. Pra ter noção da roubalheira. Só nesse mês a Petrobrás pagou ao BNDES uma parcela referente ao crédito para construção do pólo petroquímico no valor de 1,4 bilhão. Ou seja, pagou um valor superior ao que ganhou com a venda de Suape. Isso num momento em que Suape iria começar a dar lucro, segundo um memorando de valoração que foi apresentado no momento da venda.
E.O.: Também houve alguns processos claramente fraudulentos, não é verdade?
Raquel Sousa: Sim. Nos casos dos campos de Baúna e Tartaruga Verde, a Petrobrás tentou vendê-los para a empresa australiana Karoon. A Petrobrás estava negociando os campos por US$ 1,6 bilhão. Esse valor equivale à produção de apenas um ano de Baúna. E o mais absurdo é que a compradora só tinha capital social no valor de 400 milhões de dólares australianos. A Karoon informou que estava associada a uma grande petroleira, também australiana, chamada Woodside. Mas logo a Woodside envia uma carta para a Petrobrás informando que nunca foi parceira da Karoon nessa compra. A Petrobrás já sabia disso desde 2016, antes de entrarmos com as ações. Ou seja, a Petrobrás sabia que estava vendendo campos valiosíssimos para uma empresa que não tinha dinheiro para comprar e que apresentou uma proposta mentirosa. A ministra do STF, Carmem Lúcia, inclusive determinou que fosse aberto inquérito por crime de falsidade ideológica, crime de fraude em licitação. Esse processo está com o Ministério Público no Rio de Janeiro.
No caso da venda dos campos de Lapa e Iara e da Termobahia, tudo foi vendido por US$ 2,225 bilhões. Esse é caso mais escandaloso porque ali nem quiseram disfarçar que estavam fazendo algum processo concorrencial. O argumento é que não era uma venda, mas uma “parceria” com a Total. Essa empresa foi condenada na Itália. Seu CEO e outros grandes executivos foram presos. Ela foi condenada na França e fechou um acordo de leniência nos Estados Unidos. Tudo isso por corromper agentes públicos e políticos para comprar campos de petróleo a preço de banana. A Total não poderia sequer participar de qualquer procedimento licitatório no país, mas ela foi a escolhida pela dupla Temer-Parente para ganhar campos valiosíssimos, termoelétricas, além de tecnologia de exploração de petróleo de graça.
E.O.: Os petroleiros também anunciaram uma greve nacional. Qual a importância dessa mobilização?
Raquel Sousa: A greve dos petroleiros tem como objetivo impedir esse desmonte da Petrobrás. A empresa está vendendo todos os seus ativos, desestatizando todas as empresas. Isso implica em perda de postos de trabalho em todo o Nordeste. Ao mesmo tempo, a empresa incentiva os trabalhadores nas unidades na iminência de fechamento a pedir transferência para outros locais. Mas a conta não fecha. Com tudo sendo vendido, onde essas pessoas vão trabalhar? Então é também em defesa dos postos de trabalho.
A greve vai também contra o aumento dos combustíveis e do gás de cozinha. Nos noticiários se diz que a política de preços anterior é que levou à quebradeira na Petrobrás. Isso é uma grande mentira. A Petrobrás não está quebrada. Agora em março, ela participou da 15ª rodada de licitações da Agência Nacional do Petróleo (ANP). A Petrobrás adquiriu sete blocos pra explorar. Pagou R$ 2,2 bilhões e disse que isso representa 0,9% dos valores que tem para investir de acordo com o plano de gestão e negócios 2018-2022. Fazendo uma regrinha de três, a Petrobrás tem R$ 244 bilhões de reais para investir em quatro anos. Uma empresa que tem uma capacidade de investimento dessa não está quebrada.
Antes a Petrobrás tinha uma política de controle de preços. E isso é correto. Enquanto uma empresa pública, ela não tem que visar ao lucro de seus investidores, ela tem que visar a fornecer um serviço e produtos de qualidade para a população a preços baixos. Ou seja, garantir combustível e gás de cozinha baratos ao povo brasileiro.
Os preços de combustíveis são altos também, porque nós não temos capacidade para refinar. Aquilo que a gente produz a preços baixos, recompramos depois a preços mais caros. É a mesma lógica da economia na época colonial. As medidas que o governo Temer tem tomado na Petrobras contribuem para o aumento dos combustíveis. A venda de refinarias e dutos coloca na mão de empresas privadas o poder de arbitrar o preço que ela quiser. Isso tem um impacto direto na composição dos preços de combustíveis. A greve pretende incidir sobre esse sucateamento da Petrobras.
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