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MUNDO

As tragédias ensinam, as atitudes inspiram

Waldo Mermelstein

Desabafo. Desculpem pelo texto longo e pessoal. Mas sinto que precisava falar alguma coisa mais personalizada. Em meio ao horror, é hora de refletir. Escutei e li muitas coisas sobre o massacre de Gaza. Algumas emocionantes, sentidas, sofridas, surpresas, enojadas. Outras cínicas. Algumas diretamente desumanas, burras, cruéis, ignorantes, racistas, islamofóbicas, justificatórias. Não subestimo as últimas, mas elas merecem o meu desprezo total.

Queria compartilhar com aqueles que estão chocados, os que não sabiam o que significava o terror sionista, um depoimento que me emocionou da forma mais forte. Uma mulher, judia, israelense, Nurit-Peled Elhanan, cujo avô foi um dos signatários da declaração de independência do estado de Israel, cujo pai foi Mati Peled, um general herói de guerra de Israel e que já na reserva se transformou em um pacifista. Em seus círculos familiares e de conhecidos estava o atual assassino que dirige Israel, cujo nome não quero repetir. Pois, em 1997, após todas as frustrações de muitos anos de abandono, miséria, perseguição, um terrorista suicida se explode, matando algumas pessoas. Entre elas, sua filha, Smadar, 13 anos. Como se sabe, não há dor maior que a perda de um filho. Ao terminar o enterro, as cerimônias, a imprensa pediu para que ela falasse o que pensava sobre a responsabilidade da direção palestina pelas mortes. Sua resposta foi clara: “Isso é o fruto dos crimes de Israel”. Acrescentou: “Isso serve aos seus propósitos. Querem matar o processo de paz e colocar a culpa nos árabes”.

Ela já era de esquerda, mas a morte de sua filha a fez colocar todas as suas energias para combater as raízes do mal que causou a morte de sua filha. Ela tornou-se ativista contra as práticas do estado e seu irmão, Miko Peled, começou sua militância como ativista antissionista, inspirado na trajetória, atitude e palavras de Nurit. Ela publicou um livro notável sobre a educação das crianças em Israel, mostrando como são incutidas de ódio aos palestinos, e com uma versão que ignora quem habitava o país (Palestine in Israeli School  Ideology and Propaganda in Education). Seu irmão, Miko, publicou sua trajetória no livro “O Filho do General” e se tornou um grande ativista antissionista.

Tenho amigos de infância que continuam apegados aos velhos mitos da supremacia sionista. Paciência. A história julgará, já que eles não aprenderam da sua própria. Outros, queridos amigos, que há muito romperam com isso e com quem tenho o maior prazer de compartilhar ideias e emoções. Cada um tem seu ponto de ruptura. O meu foi ainda em Israel, em 1970, com 17 anos, quando em um ônibus de Ashkelon para Gaza, eu descia no meio do caminho para ir para o kibutz em que estava trabalhando. O ônibus estava lotado de trabalhadores palestinos que voltavam para suas casas após trabalharem em Israel. Um deles, perguntou para mim: “aonde você vai?”. Eu falei, “para o kibutz Zikim”. E ele, “minha família morava lá há 23 anos”. Eu fiquei atordoado, fiz que não havia entendido. E desci do ônibus. Foi o ponto decisivo para entender que éramos intrusos, invasores, colonos, que a terra tinha donos (Ou como uma comissão de rabinos húngaros que visitou a Palestina ao início do século XX a mando dos sionistas e voltou dizendo: “A noiva é bonita, mas já está comprometida”.

Poderia citar também, Tikva Honnig-Parnass, que tinha 17 anos em 1947, lutou na Guerra e compreendeu como o processo estava mal parado. Desde então, hoje com 89 anos, escreve textos excelentes sobre o sionismo, um deles, devastador, sobre a sua versão de “esquerda” (The False Prophets of Peace: Liberal Zionism and the Struggle for Palestine). Aqui uma entrevista com ela.

Desde então, fui rompendo com o sionismo por processos intelectuais. Provavelmente, a família daquele palestino ainda vive em Gaza, possivelmente alguns deles nunca puderam sair de lá, pois é um lugar cercado e fechado, controlado pela potência colonial, ajudada pelos governos egípcios. Muitos anos depois, verifiquei nos mapas da Nakba, feitas pela organização israelense Zochrot, dedicada a mapear as aldeias e cidades que foram eliminadas pelos sionistas em 1948, que efetivamente havia uma aldeia palestina onde tinha sido construído o kibutz.

Minha mãe, D. Fany, como já contei várias vezes, tinha outra visão. Tinha vindo criança ao Brasil e sua família tinha sido exterminada em Aushwitz. Ela dizia, “não havia outra saída”. Em 1982, foi a experiência decisiva dela. Com a invasão israelense, as milícias falangistas cristãs do Líbano ocuparam os campos de Sabra e Chatila, nos arredores de Beirute, e executaram centenas de palestinos refugiados, com a proteção das tropas sionistas que lhes deram total cobertura. Uma imensa crise atingiu Israel, centenas de milhares de pessoas saíram às ruas em protesto. Minha mãe tomou a decisão e na semana seguinte, quando as pessoas que recolhiam sua contribuição para a Organização Sionista chegaram, ela disse: “Depois de Sabra e Chatila, não haverá mais um centavo para vocês!”.

Bem, são essas as atitudes que inspiram. As tragédias servem para ensinar. Que regime é capaz de fazer o que fez Israel em Gaza, sem que provoque uma comoção nacional? Houve algumas centenas de pessoas se manifestando em Tel-Aviv, além das manifestações dos palestinos de Israel. Mas foi só. Quem sabe este evento seja o momento de despertar de muitos judeus israelenses e pelo mundo.

A dominação de Israel é a maior desde que começou a colonização sionista. Parece absolutamente triunfante. E tem sido. Mas seus pés são de barro. Não é uma fanfarronice bizarra, para me animar ou os militantes, mas uma reflexão histórica. Nenhum colonizador conseguiu impor-se eternamente. A não ser que tenha praticado o genocídio, como os que colonizaram os EUA, ou a América espanhola, ou o Brasil.

O regime do apartheid sul-africano também era um sucesso completo por muitas décadas. As semelhanças com o regime israelense são notáveis. Aliás, os ativistas que estiveram em Israel dizem que o apartheid não era tão duro e inumano como o que viram na Cisjordânia. E ele caiu. A luta dos negros tornou impossível a sua manutenção. Mas os negros pagaram um preço terrível, entre mortos, presos, torturados, esfomeados e humilhados. Mas venceram. E sua estratégia era a de unir a todos os que se opunham ao apartheid. Foi a estratégia de Mandela, do Conselho Nacional Africano. Pagaram com décadas de prisão, mas a força da luta interna e da solidariedade mundial acabou se impondo.

Os mesmos que consideravam Mandela um terrorista (Thatcher!), tiveram que se curvar. Entre os aderentes do CNA, muitos brancos, inclusive muitos judeus, como Ruth Fischer, Joe Slovo, Ronnie Kasrils (que ainda vive), da alta direção do CNA e do PC sul-africano. Akhmed Katrada, dirigente do CNA, da colônia hindu do país, que passou cerca de vinte anos preso com Mandela, tomou uma posição muito clara sobre o sionismo.

Aliás, Katrada conta um detalhe que eu não sabia: Gandhi, sim, aquele da luta não violenta contra o império britânico foi várias vezes pressionado a apoiar os projetos sionistas. E vejam o que ele respondeu: “A Palestina pertence aos árabes, da mesma forma que a Inglaterra pertence aos ingleses, ou a França aos franceses. É errado e inumano impor os judeus sobre os árabes… certamente, seria um crime contra a humanidade reduzir os orgulhosos árabes de forma a que a Palestina possa ser restaurada para os judeus em parte ou no todo, como sua nova pátria”.

E já ao final da vida dizia: “Mas em minha opinião, eles [os judeus} erraram muito ao tentar se impor na Palestina com o apoio americano e britânico, e agora por meio do terrorismo puro… Por que deveriam depender do dinheiro americano e das armas britânicas para forçar sua presença em uma terra que não os quer? Por que deveriam eles recorrer ao terrorismo para conseguir seu pouco forçado na Palestina?”

Sua última declaração antes de ser assassinado em 1947, foi: “O problema se tornou quase insolúvel. Se eu fosse um judeu, eu diria a eles: ‘não sejam tão estúpidos em recorrer ao terrorismo…Os judeus devem se reunir com os árabes, tornar-se amigos deles e não depender da ajuda britânica ou americana, salvo o que provenha de Jeová”.

Ghandi, como lutador anticolonial, compreendia que os judeus estavam repetindo o papel dos colonizadores em outros lugares e que teriam problemas similares, que os nativos, os palestinos, nunca aceitariam perder a sua pátria. “Compartilhá-la com respeito sim, como acolheram bem os primeiros imigrantes até perceber qual era sua atitude e com quem se aliavam”. 

Por isso, não é estranho que não haja estátuas de Gandhi em Israel, ou se as existem são muito, muito raras.
Quanto à África do Sul, infelizmente, na queda do apartheid, as conquistas políticas se viram limitadas pelo acordo com a elite capitalista branca e o apartheid econômico se perpetuou.

Todos esses são exemplos a serem seguidos. Não pelo apelo emotivo, mas pelo significado profundo. Assim como ninguém que defendesse princípios democráticos duvidava da necessidade de boicotar o nefasto regime do apartheid nos anos 1960, 1979 e 1980, espero que cada vez mais se compreenda o porquê de boicotar Israel. Não foi um movimento de curto fôlego. Levou décadas para começar a produzir efeitos. O BDS ainda é uma criança, tem só 13 anos, mas o desespero e a agressividade dos sionistas contra ele são um alento, mostram que, pouco a pouco, começam a perder a batalha pelos corações e mentes. Que os mártires de Gaza, a rebelde, a insubmissa, sirvam para inspirar ódio, repulsa, e coragem aos muitos que ainda hesitam. Não é hora de se calar!

Foto: Massacre dos campos de Sabra e Chatila, em 1982, com a cobertura das tropas de Israel.

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Israel / palestina