“Se o vaso não está limpo, tudo o que nele derramares se azeda.”
Horácio (65-68 a.C.) Epístolas 1.2.
Valério Arcary, colunista do Esquerda Online
Quando penso nas mobilizações do maio de 1968 francês, além de imagens que remetem ao gigantismo das passeatas e protestos, me lembro de Alain Krivine, Daniel Bensaïd e Arlette Laguiller. Eles dois eram militantes do que veio a ser a LCR – em seu momento, uma das maiores organizações revolucionárias do mundo – ao lado dos camaradas argentinos, e ela da Lutte Ouvriere, uma tradição trotskista que se destaca pela seriedade de sua implantação na classe operária. Os militantes da OCI, liderada por Pierre Lambert animavam a FER (Federação dos Estudantes Revolucionários), e cumpriram, também, um papel no movimento estudantil e no lançamento da greve geral em algumas grandes fábricas. Em 1968 na França, os trotskistas, embora divididos nestas três organizações, estiveram na primeira linha da luta. Cinquenta anos depois, os jovens que se aproximam do programa da Quarta Internacional, podem olhar para este passado com orgulho.
O maio francês foi um daqueles processos que fizeram história. Meio século é um intervalo de tempo suficiente para podermos olhar o passado com sentido de perspectiva. Todos os anos têm doze meses, e todos os dias têm vinte e quatro horas. Mas os dias, meses e anos não são iguais entre si. Há dias que valem por meses, e anos que valem por décadas, pela intensidade dos acontecimentos e suas conseqüências. Quando situações revolucionárias se abrem, quando revoluções se colocam em movimento, a história se acelera e aquilo que parecia utópico ou até impossível torna-se, subitamente, plausível. Mas estes intervalos em que se abre uma janela de oportunidade na história, quando o tempo fica suspenso no ar, são breves. São curtos.
Como explicar a explosão social na França em maio de 1968? A hora da crise econômica que revelou o fim do crescimento dos trinta anos “gloriosos” ainda não tinha chegado. E a derrota na terrível guerra da Argélia tinha ficado para trás. Os primeiros atos de grandes dramas históricos parecem, freqüentemente, triviais. A luta de classes na Europa assumia uma forma previsível e, relativamente, estável, após da derrota da greve geral de quatro semanas na Bélgica em 1961. Mesmo na França, depois do fim da guerra da Argélia, seguia um ritmo contido: lutas, essencialmente, defensivas, e protestos de dimensões modestas, que reagrupavam pequenas vanguardas.
Não obstante, bastaram algumas prisões depois de um ato em solidariedade com a resistência no Vietnam para que o estopim de uma avalanche fosse deflagrado. Na seqüência, pouco mais do que uma centena de estudantes da Universidade de Paris-X, em Nanterre, na periferia de Paris, ocupou a sala do Conselho de Universidade. O movimento estudantil estava engajado em uma campanha contra a reforma do ensino superior. Mas, não eram indiferentes à espetacular repercussão da Ofensiva do Tet que conseguiu hastear a bandeira vietcongue no teto da embaixada americana em Saigon.
A ocupação se estendeu para a Sorbonne, e o reacionarismo e a soberba do governo De Gaulle – uma mistura sempre explosiva – o levou a cometer a provocação de lançar a polícia sobre o Quartier Latin (o bairro latino de Paris, no coração da capital). Não conseguiram, apesar de uma apocalíptica batalha campal, desalojar a massa de estudantes que se defendiam em improvisadas barricadas. O espírito das jornadas revolucionárias de 1848 e de 1871 parecia ter ressuscitado.
Poucos dias depois, algo em torno de um milhão de pessoas desfilaram pelas ruas de Paris em solidariedade com os estudantes e contra o governo. Foi um terremoto político que anunciava que um tsunami estava por chegar: na seqüência, o país entrou em greve geral por tempo indeterminado, portanto, greve geral política, porém acéfala, sem uma proposta de saída política para a crise. O movimento não levantava sequer uma proposta clara de deposição do governo. O PC francês era um dos mais poderosos do mundo. Sua hegemonia na classe trabalhadora organizada era quase monolítica. E a direção do PC estava comprometida com os acordos de Yalta e Potsdam e a divisão de áreas de influência. Qualquer expectativa de regeneração do aparelho estalinista foi enterrada em maio de 68 em Paris. Ficou uma lição histórica irrefutável. Aparelhos burocráticos, mesmo quando implantados na classe operária, são irrecuperáveis.
Não por acaso no auge do processo De Gaulle fugiu para uma base aérea militar francesa em Baden-Baden na Alemanha. Os historiadores tradicionalmente dividem o curso de maio de 1968 em três fases, um “período estudantil” de 3 a 13 de maio; um “período social” de 13 a 27 de maio (data dos acordos de Grenelle, negociados entre Pompidou, o primeiro-ministro e os líderes sindicais, mas rejeitados na base) e um “período político” de 27 de maio a 30 de junho (data das eleições legislativas).
Ao voltar de Baden-Baden, De Gaulle retomou a iniciativa decretando a dissolução da Assembléia Nacional e convocando eleições. Uma maré gaullista reacionária, expressando a reação da França profunda pequeno-burguesa contra a Paris vermelha, garante uma vitória do regime nas eleições antecipadas de 30 de junho. As greves cessam, gradualmente, durante junho, e a Sorbonne em Paris, é evacuada pela polícia.
Um fenômeno novo na Europa do pós-guerra: uma greve geral política apesar das direções dos sindicatos e contra as direções do PS e do PCF, ou seja, um processo, essencialmente, espontâneo, de rebelião operária-popular anti-autoritária. Foi argumentado à exaustão que as massas não queriam fazer na Paris de 1968, uma Petrogrado de 1917. No maio francês, como de resto em todos os processos revolucionários da história, as massas não se lançaram à luta com um plano pré-concebido de como gostariam que a sociedade deveria ser. Os estudantes e trabalhadores franceses sabiam, porém, que queriam derrubar De Gaulle.
Derrubar o governo é o ato central de toda revolução moderna.
Comentários