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Especiais
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Favela: Espaço, Raça e Classe

Carolina Freitas, de São Paulo (SP)

Duas notícias que circularam nos meios de comunicação durante essa semana chamam atenção: a primeira, o lançamento do “Espaço Favela” para o Rock In Rio de 2019. Será um ambiente cenográfico “grandioso, lúdico e bem colorido”, como aponta a apresentação do evento, com atividades culturais de dança, música, teatro e culinária “típicas” dos morros, com o intuito de “resgatar a autoestima do carioca”.

“Não podemos continuar vivendo no apartheid entre morro e asfalto”, disse Guilherme Affif, presidente do Sebrae. “Quase todos na favela são do bem”, completou Roberto Medina, megaempresário e organizador do evento.

A segunda notícia, reportada pela Folha de S. Paulo, anuncia que morar na favela é um agravante na condenação por tráfico de drogas. Entre os presos em flagrante pelo crime, 40% tiveram sua pena aumentada por conta da sua condição geográfica no Rio de Janeiro no último ano.

As duas informações são expressões da inserção do povo negro no processo histórico de urbanização das grandes metrópoles brasileiras, mas também apontam para as novas estratégias do capital em manter e acentuar a desigualdade de raça e classe nesse período de crise econômica e social no Brasil.

Infelizmente, o espaço em geral não é considerado como uma noção central da luta de classes para a esquerda. Tradicionalmente, o tempo cumpriu a função de medir as relações de exploração e de opressão (tempo excedente de trabalho, dupla e tripla jornada das mulheres) e de ocupar nossas reivindicações históricas (diminuição da jornada).

Contudo, para além da escala internacional da divisão do trabalho, o espaço geográfico vem se tornando, inegavelmente, um importante ponto de apoio para a reprodução ampliada do capital no mundo. A segregação do espaço – entre trabalhadores e capitalistas, entre pobres e ricos, entre negros e brancos – não é apenas expressão das desigualdades sociais escandalosas no Brasil. É ela o próprio mecanismo de manutenção e sofisticação dessas desigualdades para o alcance das taxas de lucro.

Se antes as favelas e periferias eram o espaço de autoconstrução de casas, de trabalho não pago da população pobre, negra e trabalhadora, sem valor de mercado nem investimentos infraestruturais pelo Estado para a reprodução precária da vida, hoje são espaços que não podem ser enxergados apenas sob as lentes das velhas demandas, como moradia, saúde, educação, asfaltamento etc. (embora todas elas ainda estejam vivas e muito presentes na realidade da população favelada e periférica).

O sujeito periférico da transição do século XX para o XXI revela novos elementos da subjetividade da classe trabalhadora dos grandes centros urbanos – jovens negras e negros que vem desenvolvendo formas de organização política profundamente associadas às noções geográficas de si mesmos (o corpo, a rua, as quebradas como lugares de conspiração e resistência). Caracterizam com outro vigor os dilemas da classe.

A tática espacial é uma característica muito marcada dessas novas resistências demonstradas pelos coletivos organizados pelo feminismo negro, pelos slams, saraus, rádios comunitárias, cursinhos populares, associações de amigos e familiares de presos, campanhas de denúncia do genocídio do povo negro, comitê contra despejos provocados pelos megaeventos e uma extensa lista de experiências que fazem trazer o cotidiano das pessoas ao centro da política.

Lamentavelmente, os capitalistas perceberam essas novas tendências de luta genuína antes das organizações históricas da esquerda. O “empreendedorismo social”, o que chamam “favela business”, corre muito além das pequenas iniciativas populares de geração de renda auto-organizada pelos moradores de morros e bairros periféricos.

É um fenômeno que vai do “turismo exótico” para estrangeiros em favelas cariocas, elaborado em tempos de Copa do Mundo e Olimpíadas, à ampla abertura de microcrédito para empreendedores (em grande medida, trabalhadores informais e desempregados).

Dos mais de 12 milhões de brasileiros favelados – e dos mais de 70% destes que são negros –, cerca de 40% gostariam de ter seu próprio negócio, segundo uma pesquisa de 2015 da Central Única de Favelas. Com o índice de desemprego, informalidade e precariedade a que estão submetidos os trabalhadores negros no país, nada mais natural do que a expectativa de não ter mais patrão, quando outras alternativas históricas estão bloqueadas pela reestruturação produtiva e o desmonte trabalhista.

A aposta em si mesmo como potencial competidor no mercado, a absorção do espírito de concorrência e o mérito do esforço individual, são todos elementos dos discursos ideológicos que submetem o povo das favelas e periferias a uma saída única possível para a “inclusão” social, em detrimento da sua exclusão espacial.
E os planos neoliberais não terminam aí: o Sebrae, que vem orquestrando o empreendedorismo em favelas no Rio de Janeiro com cursos, microcrédito e muitos eventos, está intimamente atrelado ao processo de militarização dos morros cariocas. A presença das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) é uma exigência para o fomento aos pequenos negócios.

É aí que se cruzam as duas manchetes da semana: a falsa possibilidade de “inclusão” pelo Sebrae, que se nutre do orgulho legítimo do povo das favelas, que promove eventos com a estética desses movimentos, na verdade se apoia no braço armado do Estado, justamente contra o qual se baseia o discurso afirmativo de resistência política vinda dos morros. Se é contra o racismo, o genocídio e a falta de investimentos do Estado que se levantam as vozes periféricas, as iniciativas empresariais que dizem querer acabar com a segregação “entre morro e asfalto” só existem em função desse mecanismo de exclusão e extermínio permanente. Uma demonstração afiada de como opera a democracia racial em tempos neoliberais.

A realidade é dura e muito contraditória. Parte do povo negro segregado na cidade apoia, por exemplo, a intervenção militar no Rio de Janeiro, outro mecanismo de controle social e capitalização política utilizada recentemente. Mano Brown, em entrevista no ano passado à revista Le Monde Diplomatique, já previa: “O povão quer segurança. Daqui a pouco você vai ver o que o povão vai querer. Vão pedir o Exército e já era”.

Ser oprimido, explorado e espoliado são nuances de uma mesma materialidade que se consagra e se unifica no espaço. Muitos dos novos respiros trazidos pelos movimentos periféricos simbolizam isso. A apropriação sofisticada desses ecos renovados pelo capital já vem dando demonstrações de sucesso para o lado branco da força. Por isso, é papel da esquerda enxergar, mais do que nunca, o espaço geográfico. O endereço de onde nunca devia ter saído. Essa é a lição da nossa companheira Marielle Franco que jamais deve ser esquecida.