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Nicarágua: Explicação a partir de um enfoque crítico de esquerda

Por Tomas Andino Mencia, veterano militante socialista de Honduras

Tradução: Joana Benario
Foto: Jorge Cabrera/Reuters

 

O mundo ficou surpreso com uma mobilização popular impressionante na Nicarágua, principalmente da juventude, que começou rejeitando as reformas no sistema de Seguridade Social, mas evoluiu para exigir a renúncia do próprio governo. Seu custo é trágico: dezenas de mortos, feridos e detidos, centros de estudo e trabalho destruídos, atividade econômica semi-paralisada.

Esse acontecimento requer uma explicação. E a esse respeito, há três explicações propostas: a direita e o império americano, a do governo nicaraguense e a que provém da esquerda crítica.

A explicação da direita e do império é que se trata de um governo “socialista” ou “de esquerda” que, por sua própria natureza, é ditatorial e inimigo da democracia. Mas se fosse esse o caso, a propriedade seria coletiva, estatal ou solidária, e não é assim: a propriedade privada capitalista é onipresente e o país é tão neoliberal quanto muitos outros na América Latina, de modo que esse argumento não ajuda a entender nada.

A explicação do governo mostra o movimento de jovens nicaraguenses como uma conspiração da CIA. Em seu discurso em 21 de abril, Daniel Ortega acusou os jovens de serem “pequenos grupos de extrema-direita” que querem “destruir a paz desfrutada pela Nicarágua”. Como resultado, seu governo seria a “vítima” de uma ofensiva bem orquestrada, semelhante à das “guarimbas” da Venezuela.

Minha explicação não tem nada a ver com as anteriores.

Creio que o que vemos é a explosão de um descontentamento social muito profundo acumulado ao longo de uma década, que é baseado em um conjunto de contradições entre o governo e o Povo, incubadas no capitalismo nicaragüense, nas mãos de decisões impopulares, atitudes ditatoriais impostas pela dupla Daniel Ortega e Rosario Murillo.

 

O contexto conflitivo da crise atual

Citarei apenas dez dessas contradições entre o governo e o povo:

Em primeiro lugar, a aprovação da construção do canal  inter-oceânico por uma empresa chinesa a um custo económico e social muito elevado (US$ 50 bilhões), gerou forte insatisfação porque envolve a destruição de muitas comunidades rurais, obviamente contra a sua vontade, e ceder a soberania territorial para dita empresa por um século. A partir daí surgiu um amplo movimento camponês e cidadão de oposição, que é reprimido e vilipendiado pelo governo, mas que se mantém  até hoje.

Em segundo lugar, a atividade extrativista, particularmente de mineração, quase duplicou a área concedida nesse período (de 12% para 22%) gerando fortes conflitos nas áreas rurais e com os movimentos ambientais, também reprimidos.

Terceiro, a pressão sobre a terra exercida pelas monoculturas industriais, como a palmeira africana e o açúcar, bem como o grande aumento na atividade pecuária, deixam menos terras disponíveis para as e os camponeses.

Em quarto lugar, a negligência ambiental, cuja última manifestação foi a negligência do governo em relação ao incêndio da reserva de Índio Maíz, mobilizou setores da juventude para protestar.

Quinto, o controle tributário contra as organizações não-governamentais, especialmente das ONGs de direitos humanos e feministas, que não perdoam a arbitrariedade, a repressão e as acusações de abuso sexual, mantém em alta tensão as relações governamentais com o mundo da chamada “sociedade civil”.

Em sexto lugar, a reeleição presidencial, proibida pela Constituição, que foi imposta usando o mesmo mecanismo que o JOH (Juan Orlando Hernández, presidente de Honduras, reeleito em um processo claramente fraudulento que foi imposto com um saldo de dezenas de mortes, NT) utilizou: uma decisão da Suprema Corte, fez com que fosse visto como autoritário.

Sétimo: O mesmo efeito tem tido as acusações de fraude eleitoral nas últimas duas eleições presidenciais, onde a fórmula orteguista foi imposta.

Oitavo: A vice-presidente Rosario Murillo, esposa de Ortega, exerce um forte controle sobre a mídia, do que se ressente a  mídia independente, chegando a propor o controle das redes sociais.

Nono: A corrupção generalizada de altos funcionários públicos, que se tornam milionários da noite para o dia, enquanto o povo está passando por dificuldades econômicas, causa muito desconforto. Começando pelo próprio casal presidencial, que é questionado por ter acumulado recursos desde a “negociata” acordada com Arnoldo Aleman, e por administrar cerca de 4 bilhões de dólares em recursos da ALBA, sem prestar contas de  seu destino; até casos como o de Orlando Castillo Guerrero, gerente do aeroporto, por um desfalque milionário.

Décimo: Depois de vários anos de boas relações com o governo, uma parte da comunidade empresarial nicaraguense (afiliada ao poderoso COSEP – Conselho Superior da Empresa Privada) começa a duvidar da conveniência de continuar o casamento que manteve por uma década com Ortega-Murillo, período em que se beneficiou em todos os sentidos, por medo de perder os favores do império, depois que Donald Trump aprovou a Nica-Act (Lei americana que condiciona os empréstimos à Nicarágua a mudanças no regime, que parece ser a política americana na a América Central NT) e começou a aplicar sanções a autoridades nicaraguenses. Desde então, eles colocaram suas barbas de molho.

Apesar disso, a Nicarágua tem uma boa reputação por suas fontes de trabalho e pela ausência de crimes. Isso porque as maquilas migram muito para aquele país justamente porque os salários de seus trabalhadores e trabalhadores estão entre os mais baixos da América Central e, nessas condições, as empresas capitalistas se sentem como num paraíso. A ausência de delinquência, que anda de mãos dadas com o emprego, é, na verdade, sua melhor condição competitiva.

Portanto, a Nicarágua é um país em que teve um importante crescimento capitalista, não equitativo, no qual fortes contradições econômicas e sociais se acumularam, com uma cidadania disposta a se manifestar sobre elas, que não conseguiu fazê-lo, não é levada a sério ou paga a conta com discriminação e repressão.

 

INSS, o conflito detonante

Nesse contexto, houve um conflito sobre a reforma do INSS, exigida pelo Fundo Monetário Internacional. Não foi a primeira vez que se fez uma reforma (em 2013 houve uma que fracassou), só que desta vez ocorreu quando o descontentamento pelas causas apontadas está no seu auge, principalmente entre os jovens que nasceram após a Revolução de 1979. Os protestos começaram com os diretamente afetados, aposentadas e aposentados. Estes foram seguidos pelos jovens estudantes; e depois outros setores da população. Finalmente, aderiram os empresários, que antes haviam quebrado as negociações sobre o assunto, na Comissão Tripartite.

Portanto, a crise atual não cai como um relâmpago em um céu claro, mas tem um histórico importante que explica isso. Problemas estruturais e conjunturais de difícil solução nas mãos de um casal presidencial fechado, autoritário e repressivo.

 

A irracionalidade da argumentação oficial

Por isso, dizer que as manifestações sociais são uma “conspiração” para desestabilizar o governo por parte de pequenos grupos de “ultra direita” é uma afirmação característica de um governo ditatorial, incapaz de dar respostas racionais e necessárias aos problemas levantados e isso insulta a inteligência popular.

Mesmo o observador mais desinformado alertaria que é impossível para a CIA ter tantos agentes infiltrados e pagos em todo o país, aposentados, trabalhadores e um exército de jovens matriculados como estudantes universitários, para se manifestar, no momento apropriado, para “desestabilizar” o governo.

Mas é compreensível: o governo, acostumado a se impor sempre, nunca espera uma reação social tão forte e não foi capaz de construir uma explicação “melhor”.

É a estratégia clássica de um governo “progressista” que se sente encurralado por seu povo: eles manipulam o sentimento anti-imperialista do povo que sente profundo respeito pela Revolução Sandinista de 1979 (incluindo quem escreve estas linhas), de modo que acredite em qualquer argumento, sob a autoridade do que dizia o “líder”, Daniel Ortega.

Argumentos que atingem o absurdo: por exemplo, que estudantes universitários destroem suas próprias universidades, que, como atiradores de elite, atiram em seus próprios colegas de turma, que se auto-torturam e forjam seu desaparecimento; eles queimam prédios públicos para atrair repúdio social a eles, etc. Um manual  digno de um movimento suicida, que parece ter sido escrito por um conselheiro do JOH ou da Polícia Militar hondurenha.

Eles não dizem que a violência é desencadeada inicialmente por gangues motorizadas da clientela jovem do governo, que é usada como grupo de choque e bucha de canhão contra outros jovens. Tudo sob as vistas complacentes das autoridades policiais.

E quando os jovens se defendem desses grupos, ou quando liberam sua indignação sobre os símbolos do governo, então o partido no poder proclama a “demonstração” de suas acusações.  Acham que eles estão lidando com imbecis? Felizmente, a difusão da tecnologia celular tornou possível filmar quando os grupos de choque do governo foram protagonistas de tais eventos.

Alguns camaradas tendem a fazer comparações simplistas. Eles dizem que é um script semelhante ao usado pelos gringos na Venezuela. Se fosse o caso do presidente venezuelano Nicolás Maduro, a explicação de Ortega faria sentido porque, na Venezuela, as “guarimbas” eram organizadas por um partido de direita (“Vontade Popular”, partido de Leopoldo López) para desestabilizar esse governo. Mas NÃO é o caso da Nicarágua. Nesse país, o movimento foi chamado por setores progressistas, da juventude universitária como foi dito. A análise, para ser objetiva, deve ser baseada na realidade.

Vendo as coisas a partir dessa perspectiva, pode explicar várias coisas “estranhas” do governo da Nicarágua:

Não é estranho que Ortega tenha sido o primeiro governo a reconhecer JOH e nunca ter questionado a repressão criminosa que este realizou contra  o povo hondurenho? Não é estranho que o governo dos EUA durante os últimos onze anos, não incomodou Ortega com nenhuma tentativa séria de “desestabilização”? Em comparação, o império promoveu golpes na Venezuela, Honduras, Paraguai e Equador nesse período. Embora a Nicarágua fosse um país muito mais fraco do que aqueles, durante esse período, a deixou “quiet”.

Isso pode ser explicado pela lua-de-mel de onze anos que Ortega manteve beneficiando a empresa privada, nacional e internacional, em que cresceram negócios rentáveis, incluindo o governo golpista de Pepe Lobo e JOH, com a Igreja Católica da Nicarágua reacionária (por isso seu slogan “Socialismo Cristão e Solidário”.

Agora esses tempos são o passado. O casal presidencial Ortega-Murillo tem agora a hostilidade do império, que tentará domar seu governo por meio de ações de boicote econômico; tem o divórcio do empresariado privado nacional ou de um setor significante dele; e tem o repúdio ativo de boa parte do Povo. O rumo que o país tomará, depende, por um lado, da resposta do governo ao movimento de protesto lançado pelos jovens e outros setores populares e da capacidade de conquistar melhores padrões democráticos e sociais. A sorte está lançada e ainda é prematuro dizer que vai acontecer.

Mas o que é incontestável é que, com a mobilização social nas últimas semanas, seja para adiante ou para atrás, começa uma nova era, em que um novo sujeito histórico despertou, sem medo de falar e decidir o seu destino.

Tegucigalpa, M.D.C. 22 de abril de 2018

 

Tradução: Joana Benario

 

LEIA O ARTIGO ORIGINAL (ESPANHOL)