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Aprender com a experiência: lições dos moradores da Maré sobre a ocupação militar de 2014-2015

Por: Igor Dantas, do Rio de Janeiro, RJ

O recente assassinato da vereadora do PSOL Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes reacende na sociedade o debate sobre a segurança pública, sobretudo no Rio de Janeiro onde uma intervenção militar deu poderes para o Exército gerir a segurança pública no Estado. É preciso refletir sobre a ligação entre esses acontecimentos, aplicados atualmente em um cenário de retirada de direitos da população, assim como um endurecimento do regime para quem ousa lutar e questionar esse modelo de segurança pública e de sociedade em que vivemos.

Marielle representava muito em nossa sociedade, era mulher, negra, bissexual, lutava pelo socialismo e por direitos humanos, e era cria da Maré. Este último fato não é algo a ser desconsiderado. Ela era a única das raras vozes vinda da Maré, e das favelas em geral, tanto na câmara de vereadores, como nos cargos legislativos do Estado. O complexo da Maré é um conjunto de 16 favelas da cidade do Rio de Janeiro, um dos bairros mais populosos do Rio e possui muitos dos problemas vistos em outras comunidades periféricas. No entanto o local possui algumas particularidades importantes sendo que vivenciou uma ocupação militar entre abril de 2014 e junho de 2015. Essa experiência pode trazer a luz experiências e valiosas lições nesse momento difícil para a segurança pública e para sociedade em geral.

Nesse sentido, é muito importante divulgar iniciativas que visam dar voz aos moradores das comunidades e suas experiências com o atual modelo de segurança pública, como a pesquisa realizada pela ONG Redes da Maré com colaboração da Queen Mary, University of London. A pesquisa, denominada “Percepção de moradores sobre a ocupação das Forças Armadas na Maré” foca no período de ocupação militar do complexo entre 2014 e 2015. De fevereiro a setembro de 2015 foram entrevistados 1.000 moradores, com idades entre 18 e 69 anos, distribuídos em todas as comunidades da Maré ocupadas pelos militares.

Apesar da presença de outras forças armadas, a pesquisa ressaltou o protagonismo do exército na ação, que representou mais de 80% do efetivo da operação. Uma das perguntas feitas aos moradores foi: “antes da ocupação da “força de pacificação” na Maré, o/a senhor/a se sentia inseguro/a com que frequência?”41,6% dos moradores afirmou que nunca se sentia inseguro.

Já ao serem questionados se sua sensação de segurança mudou com a entrada da “força de pacificação” na Maré, cerca de 30% considera que melhorou, para aproximadamente 20% piorou e para 46,8% não mudou em nada. Isso mostra que não foi debatido e/ou não estão claras para os moradores questões importantes como a necessidade da operação, seus objetivos e possíveis melhorias.

Um senso comum que costuma ser reproduzido pela criminologia midiática e por algumas figuras da extrema direita é a máxima: “bandido bom é bandido morto”. Pela percepção dos moradores do complexo da Maré essa ideia parece não se sustentar. A grande maioria (69,8%) respondeu que discorda totalmente que a força de pacificação deva matar alguns integrantes das facções mesmo que tenham a possibilidade de prendê-los, enquanto apenas 7,7% concorda totalmente com isso.

Apenas 9% dos participantes afirmaram ter sofrido violações de direitos pelos militares, apesar de ser um número relativamente baixo, dado o tamanho das comunidades do complexo ele não pode ser considerado insignificante. Posteriormente na pesquisa, esses moradores disseram que em 87% dos casos que não denunciaram o abuso junto a alguma instituição, e que 98,5% dos entrevistados nunca pediram ajuda para a “força de pacificação”, isso sugere uma falta de confiança e até medo em revelar esse tipo de violação ou pedir auxílio.

Um exemplo da falta de confiança no trabalho do Exército é que 38,6% concorda totalmente com a afirmação de que a cor de uma pessoa influencia na forma como ela é tratada pela “força de pacificação”, um percentual relevante sobre um problema tão sério.

Essas críticas parecem compor a má avaliação geral sobre atuação da “força de pacificação”, em que apenas 23,9% dos participantes considera como boa/ótima, enquanto somando as respostas “regular”, “ruim” e “péssima” se obtém 73,5%.

O estudo conclui avaliando a ocupação militar na Maré como um equívoco e fracasso, e aponta algumas demandas para a segurança pública nas favelas:

  1. a participação da população local na construção de formas inovadoras de regulação do espaço público;

  2. o aumento de investimentos em políticas sociais e na estrutura econômica o que exige maior presença estatal e de empresas;

  3. um plano de desenvolvimento global, de longo prazo e integrado, com um fórum institucional com poder de construir tal iniciativa, avaliá-la e propor retificações de rumo, se for o caso. Articulado a esse conjunto de ações, há a necessidade de reconhecer os GCAs (grupos criminosos armados) como forças efetivas no território, o que exige a construção de ações e estratégias que não podem passar apenas pelo confronto armado. Em outra escala, exige que a luta pela descriminalização das drogas atinja um novo patamar, o que passa por construir um plano de comunicação que amplie o apoio social à mudança da legislação nesse tema, no Brasil. (p.97)

Essa pesquisa nos garante dados mais profundos e fidedignos do que o que costuma-se ter acesso nos veículos da grande mídia. Esta baseia sua visão na criminologia midiática, permeada de conservadorismo e preconceitos, como diz o jurista argentino Raúl Zaffaroni (2013, P.197):

A criminologia midiática cria a realidade de um mundo de pessoas decentes, diante de uma massa de criminosos, identificada através de estereótipos, que configuram um eles separado do resto da sociedade, por ser um conjunto de diferentes e maus. Os eles da criminologia midiática incomodam, impedem que se durma com portas e janelas abertas, perturbam as férias, ameaçam as crianças, sujam por todos os lados,e, por isso, devem ser separados da sociedade, para deixar-nos viver tranquilos, sem medos, para resolver todos os nossos problemas. Para isso é necessário que a polícia nos proteja de seus assédios perversos, sem nenhum obstáculo nem limite, porque nós somos limpos, puros, imaculados.

Essa é a base ideológica que, ao incidir nos medos da população, legitima diversos abusos das forças policiais e um isolamento cada vez maior do grupo determinado como “suspeito”, que não por acaso são uma parcela da população historicamente marginalizada, em sua maioria negros, jovens e pobres. A realização e divulgação de pesquisas como a realizada pela Redes da Maré é ferramenta importante no combate a tanta desinformação, e consequentemente no combate a repetição dos mesmos erros nas políticas públicas de segurança.

Referências:

Livro Pesquisa Exército Maré maio de 2017
Eugenio Raúl, ZAFFARONI. A questão criminal. Rio de janeiro: Editora Revan, 2013

Foto: EBC