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MUNDO

Quando começou o Maio de 68

O nascimento do movimento 22 de março, a explosão poético-mural, as manifestações contra a guerra do Vietname, as barricadas em Paris… Tinha começado o Maio de 68. Por Daniel Bensaïd. Tradução de Carlos Santos para o Esquerda.net.Mantivemos a tradução original no português de Portugal.

No começo de 67 cheirava a pólvora. Os bombardeamentos americanos sobre o Vietname intensificavam-se. Em França, as medidas gaullistas provocavam o crescimento da agitação social. Após a emblemática greve da Rhodiaceta, as de Caen e de Redon acabaram em motim. Militávamos a tempo completo no campus de Nanterre, onde a JCR estava bem implantada1.

Nanterre-la-Folie merecia bem o seu nome2. A imprensa da época descrevia muitas vezes a no man’s land [terra de ninguém] do campus, encravada entre os bidonvilles [bairros de lata] fotografados por Élie Kagan durante a guerra da Argélia e as colunas ainda dispersas de casas de bairros sociais. A barraca que fazia de estação tinha o aspecto de um apeadeiro abandonado do Far West, perdido às portas do deserto. Uma vez no campus, a jornada decorria entre a cafetaria, o restaurante universitário e a residência, sem frequentar muito os anfiteatros. As reuniões encadeavam-se. Na maior parte do tempo, fazíamos causa comum com o grupo dos anarcas animado por Jean-Pierre Duteuil e Daniel Cohn-Bendit. Quando um comando de extrema-direita desembarcava em Paris para uma incursão selvagem no nosso território (quase) libertado, Xavier Langlade e Jacques Tarnero organizavam a autodefesa deste santuário inexpugnável. Quando o reitor Grapin, revogando os princípios da universidade, autorizou a polícia a intervir no interior dos edifícios, ela sofreu a mesma sorte que os invasores pronazis e foi expulsa prontamente.

Estas atividades tão variadas como transbordantes quase não deixavam tempo para o estudo. [Alain] Brossat e eu estávamos inscritos num mestrado dirigido por Henri Lefebvre. Alain ocupou-se valentemente da “noção de mudança de campo” em Althusser e Foucault. Inspirado por um sexto sentido político, escolhi como tema “A noção de crise revolucionária em Lenine”. Lefebvre aceitou com benevolência dirigir estas “investigações” heterodoxas. Paralelamente devíamos seguir o seminário de Paul Ricoeur sobre Cassirer e as formas simbólicas. Tínhamos coisas melhores em que pensar do que em brincar com essas subtilezas hermenêuticas, sobretudo porque Ricoeur aparecia então como a prova de uma época filosófica caduca, condenada ao lixo da prehistoria pela hegemonia estruturalista.

Movimento 22 de Março - Nanterre, 1968

O pouco que aprendemos naquele ano, foi “à volta da fogueira”. Brossat elaborava o seu tipo de conceitos para combater a mudança de campo. Denise Avenas anotava estudiosamente O Capital para iniciar um grupo liceal de Rueil na teoria do valor-trabalho. Entre a leitura de L’Attrape-cœurs de Salinger e Les Choses de Perec, Martine3 dedicava-se com moderação à sociologia, de preferência sob o ângulo do romance policial. Quanto a mim, como o autodidata de La Nausée, lia por ordem cronológica as Obras quase completas de Lenine, compradas em grupos de cinco, no fim de cada mês, na livraria Racine.

O movimento estudantil estava a ganhar força na Itália e na Alemanha. Apenas um punhado de nós (JCR e também anarcas) protestámos na deserta e glacial explanada dos Invalides contra a repressão de que eram vítimas Modzelewski e Kuron na Polónia. Difundimos a sua Carta aberta ao Partido Operário Polaco, traduzida e policopiada por nossa conta. Em fevereiro de 1968, fomos nach Berlin [a Berlim] para manifestar-nos pelo Vietname. As manifestações internacionais ainda não eram comuns. Com a sua “universidade crítica” animada pelos estudantes do SDS4, fazia de capital da contestação, a meio caminho entre as duas Europas. O nome de Adorno não nos dizia grande coisa. De Marcuse, apenas conhecíamos Eros e Civilização, traduzido por Boris Fraenkel para as edições de Minuit. O Homem unidimensional só apareceu em francês no outono de 1968. Por outro lado, conhecíamos a influência exercida por Lefebvre e a sua crítica da vida quotidiana na Internacional situacionista.

Enchemos um autocarro de pessoas de Nanterres para a expedição berlinense. Manuel Castells, então asistente em sociologia, Paulo Paranagua, um jovem surrealista filho de um diplomata brasileiro, e Sophie Petersen foram connosco. A viagem através das planícies geladas de janeiro durou mais de vinte e quatro horas. Para passar o tempo, repetíamos cânticos revolucionários e seguíamos pela rádio os êxitos de Jean-Claude Killy nos Jogos de Grenoble. Na fronteira alemã oriental, os vopos5, avisados de que íamos a Berlim por uma causa justa, deram-nos um bom acolhimento.

Alain Krivine tinha estabelecido laços privilegiados com o SDS. Rudi Dutschke, o seu líder carismático, deu-nos a honra de uma visita, na véspera da manifestação. Ficámos impressionados com o encanto magnético deste homem pequeno e transbordante de alegre malícia. No dia seguinte, quase meio século após o assassinato de Rosa Luxemburgo, dezenas de milhares desfilaram pelo Kurfürstendamm. A multidão juvenil repetia com bom humor: “Wir sind eine kleine, radicale Minderheit!”6.

De volta a Paris, esta “pequena minoria radicalizada” redobrou o seu ardor. No meio desta efervescência, Xavier Langlade foi detido numa manifestação contra a sede do American Express. No dia seguinte, ao café matinal, Brossat sugeriu uma ação de solidariedade em rutura com a rotina habitual. Em vez de pegarmos como habitualmente nos cartazes, exerceríamos o nosso talento com grafitis nos corredores e anfiteatros. Num tempo em que os stencils e as pichagens ainda não eram habituais, esta simples trasgressão escritural de inspiração situacionista teve o efeito de um detonador. Viu-se aparecer nas grandes vidraças internas frases propícias à meditação, como “A transparência não é transcendente”. A mão anónima que escreveu estas palavras ignorava que, trinta anos mais tarde, o ideal de transparência se tornaria no mantra do panóptico mediático e que o “desejo de transparência”7 consumaria a grande confraria dos aparentes. Não importa: a explosão poético-mural de Maio estava lançada.

Reunião do Movimento 22 de março, em 29 de março com, da direita para a esquerda: Daniel Bensaïd (óculos de sol), Xavier Langlade e, em pé, Daniel Cohn- Bendit
Criado em Nanterre depois da prisão de Xavier Langlade, após uma manifestação contra a guerra do Vietname, a reunião do Movimento 22 de março, em 29 de março com, da direita para a esquerda: Daniel Bensaïd (óculos de sol), Xavier Langlade e, em pé, Daniel Cohn- Bendit

De uma coisa a outra, numa escalada de desafios, a jornada acabou em apoteose, com a profanação simbólica da sala do conselho ocupada. Cerca de sessenta rebeldes festejaram o acontecimento até de madrugada. A servidão militante obriga, perdi esse alegre desenlace: tinha que ir naquela tarde a uma reunião de jovens trabalhadores em Levallois. Sob o impulso desta memorável jornada, organizámos uma sessão aberta na faculdade. O sol foi cúmplice. As comissões brincavam no relvado imundo. Destas cabriolas nasceu o movimento 22 de março. Definiu-se como anti-imperialista (solidário com os povos da Indochina e de Cuba), antiburocrático (solidário com os estudantes polacos e com a primavera de Praga), anticapitalista (solidário com os operários de Caen e de Redon).

A JCR aproveitou as férias da Páscoa para realizar um conclave. Estivemos a um passo de nos batermos por uma questão menor, as eleições na Mútua estudantil. Henri Weber, apoiado pelos partidários de um sindicalismo estudantil tradicional (entre os quais Guy Hocquenghem e Henri Maler) reprovava à nossa comuna de Nanterres a sua aliança comprometedora com os libertários. Os falsos irmãos (inimigos) lambertistas chegaram mesmo a acusar-me de ter chamado aos sindicatos de bordéis, e à UNEF de puta. Era pura calunia. Sem pretender ser um ferveroso feminista da primeira hora, esse não era o meu vocabulário.

Assim estavam as coisas, quando nos chegou a notícia do atentado contra Rudi Dutschke8, abatido por um atirador quando circulava em bicicleta nas ruas de Berlim. Estava em coma, entre a vida e a morte. Revíamo-lo, cheio de ânimo, galvanizando a manifestação de Berlim pelo Vietname. Juntamente com os anarcas, fomos de imediato manifestar-nos em frente à embaixada da Alemanha. O pequeno cortejo estava relutante a dispersar. Uma palavra de ordem transmitida boca-a-boca marcou um novo encontro para o Boul’Mich [Boulevard Sain-Michel]. Aí, a polícia quis interpor-se. A sua intervenção enfureceu o grupo. No canto da rua deÉcoles, qualquer coisa servia de projétil: do terraço do Select Latin voaram copos, chávenas, garrafas, cadeiras, mesas. Os sinais de trânsito foram derrubados, as grades de ferro foram arrancadas junto às árvores. Era um desses momentos imprevisíveis em que o medo do quépi e do bastão desaparece como por encanto. De repente, sentimo-nos invulneráveis. Só depois se compreendem esses sinais impercetíveis que anunciam uma mudança iminente do ambiente de fundo. A manifestação de Berlim aparece assim a posteriori como uma espécie de prólogo do Maio de 68, e os confrontos pascais do Quartier Latin como a prefiguração das barricadas da rua Gay-Lussac.

Depois desta explosão, parecia que o ano universitário iria acabar sobre rodas. Era tempo de pensar em redigir o meu trabalho sobre Lenine e a crise. Com Martine, partimos à boleia para um retiro de estudo na cabana da minha mãe, em Saint-Pierre-la-Mer. De passagem por Toulouse, fomos a um anfiteatro repleto na faculdade Albert-Lautman (nome do grande lógico − tio de Alain Krivine − executado pelos nazis), para contar em detalhe a epopeia de Nanterres. O auditório, muito animado, saiu em manifestação, varrendo de passagem um grupo de Occident (onde seguramente estaria Bernard Antony, o futuro “Romain Marie” da Frente Nacional). Tinha nascido o Movimento do 25 de abril, irmão mais novo do “22 de março”.

Partimos para a costa de Aude com o sentimento do dever cumprido. Fazia um tempo magnífico. Passávamos longas horas a tostar-nos nas rochas, anotando os volumosos tomos de Lenine. De manhã, corria até ao pequeno porto de Brossolette para comprar o Le Monde. Num belo dia, as manchetes anunciaram que a Sorbonne estava ocupada pela polícia e o Quartier Latin estava amotinado. Imediatamente voltámos a embalar o Lenine, os fatos de banho e os cremes bronzeadores.

A JCR tinha reservado acertadamente a grande sala da Mutualité para um encontro europeu a 9 de maio. Eu devia intervir nele como militante do “22 de março”, ao lado de Ernest Mandel, Massimo Gorla (futuro deputado italiano), Paolo Flores d’Arcais (um dos impulsionadores, juntamente com Nanni Moretti, dos girotondi contra Berlusconi) e Henri Weber. À tarde, teve lugar uma concentração improvisada na praça da Sorbonne, em que Dany Cohn-Bendit tratou com aspereza Aragon, chamando-lhe crápula estalinista. Ia chegando a hora e começámos a preocupar-nos com o êxito do nosso encontro. Então Weber teve a ideia de o oferecer ao movimento, abrindo a tribuna e retirando (numa inovadora operação de No Logo) as siglas que decoravam a sala. Cohn-Bendit juntou-se aos oradores inicialmente previstos. No dia seguinte, foi a grande noite das barricadas.

Partindo do velho leão de Denfert, a manifestação de protesto contra o encerramento da Sorbonne chegou ao cruzamento do Luxembourg, onde hesitou sem decidir a dispersar-se. De repente, pancadas secas. Estavam a arrancar-se paralelipípedos. Provocação? Inovação? Espontânea repetição simbólica de um gesto que recordava os gloriosos precedentes da rua Saint-Merri, da rua da Fontaine-au-Roi (defendida por Varlin, Ferré e Jean-Baptiste Clément), da rua Ramponeau (onde Lissagaray disparou), do cruzamento Ledru-Rollin (onde tombou o deputado Baudin)? Em vários momentos pareceu que este arrebatamento se ia extinguir com a queda da noite. Mas apareceram motosserras, não se sabe de onde. Árvores foram derrubadas. Carros virados, transformados em muralhas, com seteiras e matacães. As barricadas rivalizavam em imaginação, como se participassem no concurso do mais belo edifício subversivo, decorando os paralelipípedos com jarras de flores, tecidos, peças antigas. A barricada mais generosamente inútil foi levantada, por uma espécie de ironia, voluntária ou não, à frente do… beco Royer-Collard! Mas os seus defensores não mostraram menos determinação contra qualquer ideia de rendição.

De madrugada, encontrámos-nos com Alain Krivine e um punhado de extenuados sobreviventes, com os olhos avermelhados e lacrimejantes, no pátio da ENS de Ulm. Alguns alunos maoistas da Escola Normal, que na véspera à noite tinham corrido a se esconder, denunciando este capricho de “jardinagem pequeno burguesa”, emergiam envergonhados dos seus sonhos escarlates.

Tinha começado o Maio de 68.

Texto de Daniel Bensaid, extrato de “Une lente impatience”, éditions Stock, abril 2004. Publicado no site danielbensaid.org(link is external) e em contretemps.eu(link is external)Tradução para português de Carlos Santos para esquerda.net


Notas

1 JCR – Jeunesse communiste révolutionaire – organização de juventude francesa (1966-1969) ligada à IV Internacional (ver wikipedia(link is external) em francês).
O nosso círculo contava nas suas fileiras com Xavier Langlade, Bernard Conein, Jean-François Godchau, Nicole Lapierre, Marc Sandberg, Alain Frappard, Dominique y Florence Prudhomme, Scalabrino, Brossat, Denise Avenas, Martine e eu próprio. Durante o ano, juntaram-se a nós Aron Barzman (filho de um guionista americano vítima do maccarthysmo), Pierrette Bourgoin (a filha do coronel), Sophie Petersen (futura conselheira de Mitterrand no Eliseu), Raymond Piskor, Danièle Schulman, Jacques Rzepsky, Manuel Castells (refugiado espanhol, militante da Acción Comunista, então jovem encarregado do curso de sociologia), Evelyne Haas (a companheira de Serge July, coautora juntamente com Geismar e ele, do memorável Hacia la guerra civil). Brigitte Jacque e Pascal Bonitzer fizeram aparições furtivas.

2 Nanterre-a-Loucura

3 Martine Maurance, então companheira de Daniel Bensaïd.

4 SDS : União socialista alemã dos estudantes, próxima do Partido social-democrata.

5 Polícia nacional da Alemanha de Leste.

6 “Nós somos uma pequena minoria radical!”

7 Michel Surya, De la domination, Tours, Farrago, 1999, p. 33.

8 No dia 11 de abril de 1968, Rudi Dutschke foi gravemente ferido com dois tiros na cabeça num atentado cometido por um simpatizante da extrema-direita.

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