Pular para o conteúdo
Colunas

Três polêmicas sobre a tática na atual conjuntura

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Por Valério Arcary, Colunista do Esquerda Online

 

                                                      A lisonja é incompatível com a nobreza de carácter.                                                   

                                                    A humildade só é virtude quando não revela fraqueza.

                                                                                             Sabedoria popular portuguesa

Cuidado, porque as ideias contam, e o programa vale muito. Já surgiu uma especulação sobre uma possível candidatura única de esquerda. Receio decepcionar muitos milhares de ativistas, os da primeira linha, os mais sinceros, os melhores, os mais combativos, mas é preciso preservar a honestidade na esquerda. A pressão pela candidatura única não vai unir a esquerda, vai dividi-la. Pior, vai fragmentá-la ainda mais.

Estamos unidos na defesa dos direitos de Lula, na luta contra os neofascistas. Mas não teremos a mesma candidatura este ano. Manuela e Boulos têm legitimidade em se apresentar, ou seja, o direito de defender seus programas. As ideias contam. A existência de três candidaturas de esquerda no primeiro turno corresponde a três projetos.

A defesa da candidatura única significaria, em função do peso majoritário do PT, o silêncio dos dois programas alternativos. O projeto petista reivindicará o balanço dos governos e alianças liderados pelo PT. Que culminou no quarto mandato, com Dilma, na defesa do ajuste fiscal de Levy: respeito às pressões do mercado para garantir investimentos, e políticas focadas de distribuição de renda. Não por acaso, o vice de Dilma era Temer. E não se conhece qualquer autocrítica destas alianças. O projeto do PCdB tem forte ênfase na questão nacional.

Manuela alertou, no discurso do Circo Voador, que a luta no Brasil será uma luta entre o “partido” de Tiradentes e o partido dos vende pátrias, dos “Silvérios”. Do que decorre uma política de alianças de inspiração nacionalista de tipo bolivariana, talvez, semi-chavista de esquerda, portanto, “complicadas” com setores da burguesia.

O Psol defende outro programa. Tem inspiração e compromissos anticapitalistas: direito ao emprego, aumento dos salários, a começar pelo salário mínimo, educação e saúde pública de qualidade para todos, enfrentar os rentistas, impostos sobre a riqueza e a propriedade, reforma agrária, defesa ambientalista da Amazônia, reforma agrária e urbana, reforma política para garantir a participação popular, luta sem concessões contra o racismo, a homofobia e o machismo, e por aí vai.

Uma velha brincadeira na esquerda remete a tática do “abraço de urso”. O urso quando se sente ameaçado, se levanta sobre as patas dianteiras e abre os braços. Esse abraço não é amigável. Nós estaremos abraçados contra os inimigos comuns na ruas. Nas eleições, não é possível. A esquerda socialista tem não só o direito, mas o dever de defender seu projeto. As ideias contam. O programa vale muito.

 

                                                                                                A sorte protege os audazes.

                                        A ignorância força-nos a fazer duas vezes o mesmo caminho.

                                                                                             Sabedoria popular portuguesa

 Muitos militantes com paixão revolucionária defenderam nos últimos dias a greve geral diante da prisão de Lula. Só que um pouco de saudável empirismo leninista faz bem. Olhar as coisas como são. Análise concreta. Opor aos atos em defesa de Lula a greve geral não é sério. A “grevicultura” pode alimentar um discurso radical construído com vocabulário trotskista, embora seja de inspiração anarco-sindicalista. Não é política marxista. Parece tática “revolucionária”, mas não é. Trata-se de uma caricatura.  

Acontece que, como sabe qualquer ativista com um mínimo de responsabilidade, não existiam condições para a greve geral. E não há condições porque uma maioria da classe está perplexa, desorientada diante da ofensiva da LavaJato. Não porque esteja em processo de ruptura com o PT pela esquerda. É triste, mas é assim. 

Observo que há uma mentalidade, uma perspectiva, uma visão na esquerda radical, talvez, até um ambiente em que prolifera uma percepção idealizada da classe operária. É como se os trabalhadores estivessem, a todo momento, com disposição de luta. Não estão. Seria como se os dirigentes e organizações que a maioria reconhece estivessem sempre com o pé no freio, impedindo a potencial explosão de um vulcão. Tampouco é correto. Esta visão, muitas vezes sincera e honesta, é ingênua.

Existem, evidentemente, nos sindicatos e nos movimentos sociais correntes moderadas que abraçam um programa reformista, e que cultivam critérios e métodos burocráticos que estão ao serviço da preservação de privilégios sociais. Mas estes aparelhos têm políticas diferentes quando, por exemplo, os partidos que apoiam estão no governo, e quando estão na oposição. Líderes reformistas e burocráticos dirigem, também, muitas greves, à sua maneira, quase sempre sem muito respeito pela democracia sindical, como podemos confirmar na base na Força Sindical entre os metalúrgicos de São Paulo.

A diferença entre política revolucionária e reformista não se resume, nem se define essencialmente, em torno de métodos de luta. Até luta armada já se fez na defesa de um programa reformista. Parece paradoxal, ou até esdrúxulo, mas é isso mesmo: em diferentes países da América Latina, quando das ditaduras, algumas organizações lançaram-se em táticas guerrilheiras com o plano de derrubar os governos tirânicos, para levar ao poder governos de colaboração com frações- desenvolvimentistas, nacionais, democráticas- da classe dominante.

A “grevicultura” infantiliza os nossos dilemas.

                                                 Não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti.

                                                                    Castiga-se a arrogância, dando-lhe as costas

                                                                                             Sabedoria popular portuguesa

 Há na vida política uma dimensão trágica. O papel dos dirigentes conta. Trata-se de uma velha controvérsia dos marxistas com os anarquistas. A liquidação moral e a desqualificação política dos líderes do campo de classe inimigo é um objetivo central em toda luta política séria.

Lula foi preso com tanta pressa porque há eleições no Brasil em outubro. Se permanecesse livre poderia fazer campanha. Não poderia ser candidato, mas poderia transferir votos para um candidato com chances de chegar ao segundo turno. E nos círculos burgueses que apoiaram a pressão militar sobre o STF há insegurança. Será que Alckmin pode recuperar o que perdeu para a extrema direita? Porque é muito provável que se Bolsonaro passar para o segundo turno, o candidato anti-fascista ganhe as eleições. Estão indo tão longe, ao ponto de provocar algum constrangimento internacional, porque precisam neutralizar Lula. Enganam-se aqueles que pensam a prisão de Lula, realizada pelas forças mais reacionárias, favorecerá um desenlace mais positivo na reorganização da esquerda nesta etapa. Pode se dar o contrário. Lula pode sair, relativamente, fortalecido.

Tudo sugere que, embora não tenha acontecido uma explosão popular de fúria, cresceu nos últimos dias a solidariedade com Lula. Muitos milhões estão se perguntando hoje: só o Lula? Por quê? O JN da Globo de hoje dedicou dezenas de minutos a explicar-se sobre este tema. Afinal, como estão os outros processos, contra Aécio, Temer, Alckmin, Maluf, Azeredo, Marconi Perillo, Colombo? Não pode ser acidental.

A defesa de Lula me obriga a esclarecer opiniões sobre um tema que remete à relação entre as lideranças e organizações e as massas. Vivemos uma etapa na qual o papel dos partidos tem sido muito desvalorizado na esquerda. Sem a Lava Jato não teria sido possível a prisão de Lula, uma perseguição política evidente. Só este fato monumental, inescapável, do tamanho do Pão do Açúcar, já deveria ser suficiente para a parcela da esquerda radical que não teve, até o momento, disposição para defender Lula refletir um pouquinho. E não melhora nada quando se argumenta que estamos em campanha pela defesa de Lula e esquecemos centenas de milhares de presos que não têm advogados. É mesmo? E defender Trotsky nos anos trinta era, também, esquecer as centenas de milhares de presos nos julgamentos de Moscou? Não. O papel dos dirigentes conta.

A dimensão trágica da vida se revela, segundo os clássicos, quando a ação dos sujeitos tem como desenlace involuntário o contrário dos objetivos que perseguiam.

Lula no governo assumiu o lugar do líder popular contemporizador, negociador, conciliador. A criminalização que agora o vitima é uma demonstração irrefutável de que a classe dominante não merece qualquer confiança. Se prendem Lula poderão prender, por qualquer pretexto, qualquer um de nós.