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Os sentidos de uma prisão: Lula, democracia e as pessoas na sala de jantar

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Por: Felipe Demier

 “Mas aquele que blasfemar contra o Espírito Santo não terá, para sempre, perdão, visto que é réu de pecado eterno.” (Marcos 3:29)

Egresso das fileiras e lutas operárias, Lula, quando presidente, em nenhum momento, propôs reformas radicais na profundamente desigual formação social brasileira. Ao seguir pagando religiosamente a dívida externa, reproduzindo a concentração de renda, freando a reforma agrária, militarizando a vida social e esfacelando os serviços públicos (para garantir a taxa de lucro das grandes corporações financeiras, industriais e do agronegócio), seus governos, assim como o primeiro de sua sucessora, Dilma Rousseff, fizeram o que era para ser feito, do ponto de vista dos de cima.

Concomitantemente, Lula, no poder, reduziu significativamente o desemprego, aumentou o salário e o crédito para o mercado consumidor, ampliou expressivamente as políticas sociais focalizadas/compensatórias, abriu concursos públicos e avançou nas políticas de ação afirmativa. Por meio desta concertação social, dessa engenharia político-social, Lula ergueu uma máquina partidária que se mostrou capaz de gerir o capitalismo brasileiro melhor, e mais seguramente, do que as próprias representações políticas tradicionais da burguesia brasileira, e que, por isso, se tornou quase invencível no jogo eleitoral de nossa democracia liberal blindada. Não havia, àquela altura, naquela conjuntura, melhor forma de gestão da ordem capitalista num país atrasado, periférico e socialmente fraturado como o Brasil.

Ocorre que, a partir da segunda metade do primeiro mandato de Dilma Rousseff, os índices econômicos começaram a cair abruptamente. Confiante, a oposição de direita pôde reconquistar o amor de parcela significativa da “massa extraparlamentar da burguesia” brasileira, a qual, seduzida por orgias financeiras, havia resignadamente aceitado o PT à frente do seu Estado. Novamente enamorada com a direita neoliberal e flertando inclusive com tendências políticas autocráticas, grande parte da burguesia brasileira pôde, rapidamente, abdicar do sexo sem amor que fazia com o petismo durante aproximadamente dez anos (ainda que os chefes petistas sempre alimentassem o desejo de contrair matrimônio estável), e destilar contra o partido de Lula todo o seu ódio contido, um ódio, na verdade, muito mais explicado em função do que o PT já foi um dia do que propriamente pelo que ele se tornou no poder.

A derrubada do governo Dilma Rousseff significou, sem dúvida, o êxito da trama golpista arquitetada pelos setores mais reacionários da sociedade brasileira, dirigida pela então oposição de direita e seus aliados midiáticos e forenses. Na construção de uma hegemonia pró-impeachment, as editorias jornalísticas perderam todos os pudores, se é que um dia os tiveram. Azeitado pelo secular ódio de classe, em especial por aquele nutrido pelos setores médios demofóbicos, o golpe de governo teve como objetivo precípuo trocar os atuais mandatários por outros mais reacionários, os quais, não constrangidos por qualquer passado combativo e sindical, podem, agora, realizar o ajuste fiscal, aplicar as contrarreformas e calar o movimento social, tudo isso no grau, no ritmo e na intensidade exigidos pelo capitalismo brasileiro em crise. Assim, diferentemente das burguesias europeias, a classe dominante brasileira mostrou que, em momentos de crise econômica, não pode suportar no poder sequer a “ala esquerda” do partido da ordem, isto é, não pode suportar no poder os moderados do seu próprio partido.

A ofensiva dos golpistas, isto é, a retirada lancinante de direitos e elevação da austeridade fiscal ao seu grau máximo, tem que continuar. Não pode parar. No entanto, em sua sequiosa marcha contrarreformista, a burguesia brasileira, por questões que não derivam de muito mais do que as páginas de um calendário, se depara, este ano, com um singelo obstáculo constitutivo de sua própria forma de dominação política: as eleições. Como é sabido, mesmo para os democratas liberais minimalistas, a existência de eleições periódicas que possibilitem a escolha dos governantes é um critério inexpugnável de qualquer democracia liberal, incluindo suas versões mais limitadas e esquálidas. Tamanho o habitual controle do poder econômico e midiático sobre os processos eleitorais e tamanha a blindagem antipopular da atual democracia brasileira, o sufrágio universal, longe de ser um problema, sempre foi, nas últimas décadas, a forma de garantir legitimidade política para a dominação de classe no país. Agora, excepcionalmente, as coisas parecem ter mudado, o que parece exigir soluções excepcionais do ponto de vista do capital.

O programa do golpe precisa seguir sendo aplicado, porém, por meio de um governo respaldado pelas urnas. Aqui está o busílis, o x da questão. A burguesia não só considera Lula incapaz de aplicar tal programa nos moldes exigidos por ela, como não encontra nenhum candidato confiável capaz de seguramente derrotar o petista nas urnas. O básico critério de “uma cabeça, um voto” (seja aquela de um paulista dos Jardins ou de um nordestino do semiárido), aceito pelos nossos homens de cima há quarenta anos, lhes aparece hoje em suas cabeças como um horripilante fantasma. Assim, numa contradição histórica bem peculiar, a simples continuidade do regime democrático-liberal, isto é, as ordinárias eleições, aparece como um problema para a própria continuidade do regime democrático-liberal. A simples normalidade do regime – ou seja, o cumprimento de suas próprias leis, elaboradas para permitir sua continuidade – traduz-se, agora, em uma anormalidade política.

Paradoxalmente, a obediência às normas constitucionais parece conduzir à eliminação dessas mesmas normas, a observância à risca da Constituição parece levar inexoravelmente ao fim desta mesma Constituição e, finalmente, a realização de um simulacro de eleições (sem Lula) – ou mesmo a suspensão destas – aparece como a única forma de preservar, hoje, um regime político baseado em eleições. Numa era de desagregação social sem precedentes e de contrarreformas pletóricas, a preservação do regime do sufrágio universal parece só ser possível, para a burguesia, se o próprio sufrágio universal for maculado ou cassado, e se a eleição não for apenas uma contrafação. É isto o que explica, fundamentalmente, a condenação de Lula e sua prisão, decretada hoje pelo juiz Sérgio Moro. Apartamentos triplex, sítios e pedalinhos foram tão determinantes para as sentenças judiciais quanto pastas de dentes destampadas e roupas sujas fora do cesto o são para o término de uma relação.

Vertebrado subjetivamente pelos editoriais jornalísticos, o burguês comum, tomado isoladamente, com sua mentalidade tacanha e mesquinha, nunca se reconheceu na figura de um administrador de esquerda do capitalismo neoliberal, que outrora empunhava bandeiras vermelhas e dirigia greves. Agora ele sequer o tolera. O burguês ordinário porta-se, assim, com Lula tal qual um nobre o faz com um arrivista plebeu que cativou o coração de sua bela filha: não havendo opção, o galante pode até ser aceito na casa, mas não é da família e, na primeira crise conjugal, há que ser posto para fora de onde nunca deveria ter entrado. Por mais que tenha prestado enormes serviços à burguesia brasileira, Lula não é um lídimo filho dela e nunca o será. Do mesmo modo que uma empregada doméstica pode até frequentar, eventualmente, a sala de jantar, mas não deve dar pitacos nas conversas das pessoas ocupadas em nascer e morrer, Lula não deveria ter ousado mostrar aos políticos da nossa oligárquica classe dominante que era possível combinar alta lucratividade com redução da pobreza extrema.  Para nossos “ilustrados” setores médios conservadores, os nossos “homens de bem” e nossas dondocas da corte, o ex-torneiro mecânico jamais deveria ter permitido que seus shoppings virassem áreas de lazer e consumo para negros e negras, que seus aeroportos virassem rodoviárias, e que suas universidades abrissem as portas para a choldra ignara.

Lula adentrará a cela na condição de um político togado rejeitado pela própria burguesia que cortejara e que, no fundamental, ajudara. Nos tempos sombrios atuais, a burguesia brasileira se revela não só ingrata, como também vingativa e exclusivista. De agora em diante, ela volta a querer que só os seus lhe façam o bem. O Lula que será preso nos próximos instantes não é o Lula que se afastou de um projeto emancipatório da classe trabalhadora, mas sim aquele que se dispõe a tentar de novo oferecer três refeições diárias para ela dentro do capitalismo. O Lula que irá para atrás das grades é menos o adversário de um projeto socialista e mais o defensor de um capitalismo com menos miseráveis. Lula não está sendo castigado pelos trabalhadores em sua luta pela emancipação social, e sim pelos mais cruentos adversários desta. Assim, para a esquerda socialista, o momento é de derrota e, portanto, de preparar a resposta e a resistência. Deixemos que Merval Pereira e consortes procurem os seus para as histéricas libações nos grandes salões. Os anseios por um mundo sem corrupção e esquemas mafiosos não podem ser realizados pelos mesmos juízes que deixam em liberdade Collor, Sarney, Temer, Aécio e congêneres. Os nossos desejos não podem ser confundidos com os de outrem, sob pena de perdermos nossa própria identidade. Não pode haver substitucionismo político-jurídico nesse caso.  Lavar as mãos diante da punição de um adversário pelas mãos de um inimigo, como fazem alguns incautos na esquerda, não é senão alimentar uma reacionária sanha inquisitória que, ao fim e ao cabo, nos tem como alvo principal.

Marcado como:
prisão de lula